Nos últimos anos da década de oitenta, o Círculo Experimental de Teatro de
Aveiro (CETA) levou a efeito uma série de iniciativas (espectáculos de teatro,
exposições, debates, colóquios) sobre a região de Aveiro, “as suas terras
e as suas gentes”. Na realização daqueles eventos colaboraram destacadas
figuras da cultura aveirense. Os espectáculos de teatro basearam-se em textos
inéditos de conceituados autores, entre os quais Mário Castrim.
Natural de Ílhavo, onde passou a infância, conhecedor
profundo desta região, pela qual nutria especial afecto e onde contava muitos
amigos, Mário Castrim tinha também uma relação antiga com o CETA, cuja
actividade acompanhava com interesse, havendo já colaborado nas suas
iniciativas, por diversas ocasiões. Por tudo isso, e particularmente pela sua
qualidade de escritor de reconhecido talento, foi então convidado a escrever
uma peça de teatro para ser apresentada no âmbito do referido ciclo de
espectáculos.
Com a generosidade que o caracterizava, acedeu prontamente
ao “desafio”. À medida que ia produzindo os textos – que no seu conjunto
constituem a peça de teatro que intitulou “Contar e Cardar” – remetia-os
ao CETA para serem tratados no aspecto cénico.
O espectáculo, baseado nesses textos inéditos de Mário
Castrim, foi apresentado ao público, no Teatro de Bolso do CETA, em Junho de
1990. O autor esteve presente na estreia e foi com indisfarçável prazer que
assistiu à exibição da peça, encenada por Jorge Pinto, conhecido actor e
encenador portuense.
Foi certamente com sacrifício da vida pessoal que, no
curto espaço de cerca de dois meses, produziu os deliciosos textos de “Contar
e Cardar”. Durante esse período, deslocou-se várias vezes a Aveiro, para
acompanhar a encenação do espectáculo, sempre a suas expensas, sem aceitar
qualquer compensação pelo trabalho.
O menos que se poderia fazer era publicar a obra. Foi o
que logo ocorreu aos dirigentes e amigos da colectividade. Contudo, os anos
foram passando sem que alguém, decididamente, se empenhasse nessa tarefa. Mas a
ideia nunca foi posta de parte por alguns de nós que havíamos participado na
produção daquele espectáculo.
Em meados do corrente ano de 2002, na “Tertúlia João
Sarabando”, falou-se de Mário Castrim. Sabíamos do seu desejo de um dia se
juntar a nós, no convívio em memória do amigo e saudoso João. Veio à
conversa a peça de teatro que ele escrevera para o CETA em 1990. De novo se
afirmou a intenção de a publicar. Resolvemos “deitar mãos à obra”.
Contactámos Mário Castrim. Encontrámo-nos com ele, por
alturas duma sua deslocação a Aveiro. Uma manhã, no hotel onde ficara
hospedado, mostrámos-lhe os textos por ele dactilografados, há mais de 12
anos, em folhas A4, com timbre do “Diário de Lisboa”. Manifestámos-lhe o
desejo de os ver publicados.
Foi com evidente satisfação que aderiu aos nossos
propósitos e logo se ofereceu para fazer a revisão dos textos com a possível
brevidade. No dia seguinte, pela manhã, já nos comunicava que esse trabalho
estava feito.
Voltámos a encontrar-nos. Devolveu-nos os textos que
tinha revisto integralmente, durante a noite, corrigindo alguns primores de
redacção que o seu rigor e brio pessoal exigiam duma obra a publicar. E mais
uma vez demonstrou a sua simpatia e generosidade, vincando sempre que não
queria obter quaisquer proventos com a publicação do livro, prontificando-se a
abdicar dos seus direitos de autor em favor do CETA.
Desse encontro guardamos emotivas recordações. Foi um
privilégio podermos conversar demoradamente com o distinto jornalista, o arguto
crítico de televisão, o engenhoso criador de histórias e novelas para
crianças e jovens, o operário da escrita que brincava com as palavras, o
cidadão de fortes convicções e nobres ideais, empenhado na luta pela
construção duma sociedade mais justa e fraterna, em suma, o Homem extremamente
sensível e culto que admirávamos desde a nossa juventude. O seu corpo
franzino, debilitado pela doença e pela idade, escondia uma grande força
interior, um gosto pela vida que lhe transparecia no sorriso calmo e no olhar
vivo e atento. Ao invés do que as suas críticas de jornalista, irónicas e
contundentes, mas sinceras e imparciais, poderiam deixar supor a quem com ele
não privava, estávamos perante uma pessoa delicada, de trato afável.
Se já admirávamos Castrim, homem culto e cidadão
exemplar, agora também estimávamos Mário, o amigo. Retemos o que nos disse,
interrogando: "Haverá no mundo coisa melhor do que a amizade?"
Passámos a trabalhar na composição gráfica do livrinho
(como carinhosamente o Mário se lhe referia). Em fins de Julho ficou
praticamente pronto. Faltava apenas que ele o visse e desse a opinião sobre a
capa e o aspecto final.
Quando tínhamos em perspectiva marcar um novo encontro,
fomos surpreendidos com a notícia do seu internamento hospitalar, por força de
doença grave. Ficámos a aguardar que o seu estado de saúde melhorasse, para
obtermos o seu acordo e avançar com a publicação. A esposa, a escritora Alice
Vieira, transmitiu-nos a vontade do Mário de lhe enviarmos o livro para ele
ver. Era o que íamos fazer, quando fomos abalados com a notícia da sua morte.
O Mário não chegou a ver o “livrinho” publicado,
como gostaria, e isso deixa-nos magoados. Mas, em sua memória, não podemos nem
queremos deixar de o fazer. Com o consentimento dos herdeiros, tudo o que
escreveu com denodado carinho para os amigos do CETA vai ser finalmente
publicado.
O Mário estará sempre entre nós.
António Poiares Bastos