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Sessão de Lançamento do Livro
8 de Fevereiro de 2003

COMO CAMINHOS DIFERENTES SE CRUZAM


Em meados de 2001, quando andava na companhia de um alferes miliciano, já a meio de um terceiro volume, a registar-lhe as aventuras de dois anos de guerra colonial, vi-me bruscamente separado dele. Convidaram-me para ser o líder do Prof2000 na Escola Secundária José Estêvão.

Pesei os prós e os contras antes da resposta. Previ e bem! — que o protagonista iria ficar irremediavelmente perdido no meio de uma operação, sem regresso ao destacamento. Mas a recusa do convite poderia trazer também consequências negativas, impedindo-me de colocar as minhas capacidades ao serviço da comunidade.

Uma das obrigações enquanto líder era o de criar e colocar na NET uma página pessoal. Cumpri a obrigação. Mas ficara-me um minúsculo cálculo no sapato a arranhar-me a consciência: qual o interesse para os outros de uma página pessoal colocada na Internet? Não seria mais útil e proveitosa a reconversão dessas páginas para um projecto colectivo relacionado com a região aveirense e a cultura em geral?

Nasceu o «Aveiro e Cultura»! Com ele, nasceu também uma série de problemas: que conteúdos aí colocar? Nesse conjunto de páginas será certamente indispensável incluir tudo quanto tenha interesse para a comunidade: associações culturais, contributos científicos e literários diversos, trabalhos práticos de índole pedagógica, em suma, tudo o que apresente verdadeiramente interesse cultural e pedagógico e que os colaboradores façam chegar ao responsável por este «site».

- Mas qual o interesse do «Aveiro e Cultura» neste preciso momento? Que relação tem com a obra que agora se publica? - Estão seguramente a perguntar-se!

- Tem!... Tem! E muito! Sem o aparecimento destas páginas, talvez nunca caminhos diferentes se viessem a cruzar!

E porque caminhos diferentes frequentemente se cruzam, a perda de um amigo e vizinho, que frequentava o mesmo café onde as páginas do «Aveiro e Cultura» passavam das ideias para o papel, fez com que esse caminhos se cruzassem.

A perda de um amigo e vizinho levou ao encontro e consolidação de amizades. Pessoas que apenas se conheciam de vista, passaram a juntar-se regularmente, às segundas-feiras, no café frequentado pelo amigo que tinham em comum. Nascera a Tertúlia em memória de João Sarabando, que podemos observar, hoje e sempre, na companhia de Mário Castrim e Clara Sacramento, no final da estreia, em Junho de 1990, de Contar e Cardar, graças a uma fotografia inserida no final da obra que se publica.

E como é que ela nasceu em formato impresso?

Entre os que frequentam o café que permite um agradável convívio em memória de João Sarabando contam-se alguns elementos do CETA. Através deles, especialmente do António Bastos, tivemos acesso às folhas dactilografadas por Mário Castrim da obra Contar e Cardar.

Lemos os textos. Gostámos! As peças aí incluídas tinham para nós um interesse muito especial. Além de falarem da região que amamos tanto ou mais do que a terra em que nascemos, além de referirem problemas sociais que são de ontem, de hoje, e continuarão seguramente a ser de amanhã, constituem um excelente material pedagógico para motivação dos nossos alunos, constituem um excelente meio para os interessarmos pelas coisas que são nossas, para os interessarmos pelas coisas que nos rodeiam e às quais nem sempre damos a devida atenção.

Em breve, os cinco textos que constituem o Contar e Cardar estavam na Internet, à disposição de todos os que gostam de teatro. E daqui para a obra impressa foi um pequeno salto. Há muito que o CETA estava em dívida de gratidão com Mário Castrim. Que melhor forma de pagar-lhe o carinho pela terra e o empenho desinteressado na produção dos cinco textos do que publicar-lhe o trabalho?

Mário Castrim teve ainda a oportunidade de corrigir a versão que colocáramos na Internet. Leu-a e corrigiu-a de um dia para o outro, por altura de uma breve estadia em Aveiro, meses antes do funesto acontecimento que o levou fisicamente do nosso convívio. A partir das correcções  por ele efectuadas, compusemos e montámos graficamente a obra que hoje publicamente se apresenta.

Infelizmente, já não pudemos contar com a visita prometida do Mário à Tertúlia João Sarabando.

Infelizmente, não podemos hoje pedir ao autor que coloque uma dedicatória e um autógrafo nos livros que escreveu. Mas ele continuará sempre entre nós.

Ele continuará sempre na companhia do João Sarabando, cuja confissão nunca deixará de desconcertar o Diabo, sempre que efectuarmos a leitura da cena VI do “Auto dos Moliceiros” (pág. 89):

DIABO -

Confessa, João, confessa. Tu disseste que ias confessar.

SARABANDO

Confesso que amei a minha terra.

DIABO -

Isso é uma agravante.

SARABANDO

Confesso que só pensei nela toda a vida.

DIABO -

Tás pior, rapaz. Quanto mais falas, mais te enterras.

SARABANDO

Confesso que nunca fui capaz de respirar outros ares senão estes.

DIABO -

Estás a pedir cacetada nesse lombo.

SARABANDO

Confesso que só tenho voz e memória para estas ruas... estas águas... estas casas... esta gente... este teatro em que estamos...

DIABO -

Por isso é que tens esta claque toda, esta malta...

SARABANDO

A malta que eu amo. Porque o teatro é cultura, é arte, espelha a vida do passado, do presente e do porvir que amanhece...

DIABO -

Que não viesse a piadinha política... Mas ao castigo é que tu não foges.

SARABANDO

Porquê?

DIABO -

Porque foste um grandecíssimo tolo, um ingénuo, um idealista, uma erva rasteira...

SARABANDO

Sim, erva rasteira, para ficar mais perto do meu chão...

DIABO -

Ouve lá. É verdade que te convidaram para altos cargos e que os recusaste?

SARABANDO

Assim foi.

DIABO -

E que podias ganhar muito dinheiro e recusaste...

SARABANDO

Recusei.

DIABO -

Que te ofereceram lugar e trabalho longe daqui e disseste que não...

SARABANDO

Isso mesmo.

DIABO -

Foste um parvalhão.

SARABANDO

Mereço castigo?

DIABO -

Claro. Para o inferno vão os maus e os parvos. (Trocista) A GLÓRIA DE SER AVEIRENSE! E como é que Aveiro te tem pago?

SARABANDO

Aveiro não me deve nada. O amor também se paga?

DIABO -

Tu ainda és desse tempo, João?! Fidalgo sem comedoria... Por isso é que hás-de vir comigo para o meu reino. Além do mais, cá em baixo estragas-me o negócio. Virás, sim, nem o anjo te vale.

SARABANDO

Não preciso que ninguém me valha: (Declamando)
Bicho sujo te esconjuro
para a água te afogar.
Vai para longe, porco sujo,
pra onde a água te levar...

(...   ...   ...   ...)

                                        Aveiro, 8 de Fevereiro de 2003
                                      Henrique José Coelho de Oliveira


NOTA: Para finalizar, foram passados os três primeiros minutos da gravação do programa de Carlos Pinto Coelho, ACONTECE, relativo ao dia do falecimento de Mário Castrim.

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