Sessão de Lançamento do
Livro 8 de Fevereiro de 2003 PALAVRAS DE CLARA SACRAMENTO |
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De como Mário Castrim, o nosso querido amigo, aqui deixou, indelevelmente, um pedaço de céu, um pedaço de mar e ria, uma cidade, uma praia, um barco, uma duna, uma estrada e tudo, tudo com gente dentro. Gente com palavras, ternura, risos e erros. Com o Mal e o Bem, o Bom e o Mau, o Grande e o Pequeno, o Riso e o Choro. O riso. O riso e o sorriso. E quem é, quem foi Mário Castrim? Apenas Manuel Nunes da Fonseca, que nasceu em Ílhavo, em 1920. Filho de um oficial da marinha mercante, cedo se apercebeu das particularidades dessa terra, então quase totalmente ligada à longínqua pesca do bacalhau. Terra de saudade e sofrimento, de mulheres sábias e homens ausentes, de coragem e trabalho, de muitos e muitos artistas, na cerâmica, nas rendas, nos bordados, no artesanato, enfim, quase tudo. E o sorriso do Mário quando cá vinha e recordava esses saberes: o café da manhã, o folar da Páscoa, o sotaque da Senhora Marquinhas, o chinelar irrequieto das moçoilas na lide, os becos muito lavadinhos, tudo escufenado, as peixeiras da Costa Nova, a Senhora da Saúde, a Senhora do Pranto, a Feira de Março, o carrossel, o arroz de «cricos». O pião na escola. A infância de Mário, recordada sempre que se deslocava à Costa Nova, a Ílhavo, ou a Aveiro. Infância feliz, sobretudo se for comparada com a sua adolescência sofrida, amarrada a um tabuleiro de gesso, crucificada por uma doença durante longos anos, até à idade adulta. Esse facto foi determinante na sua presença tutelar e sábia. Estávamos sempre perante alguém que, com a sua inteligência e sensibilidade, parecia ter algo de profeta. Um dia elogiei os filhos (o André e a Catarina) por serem tão dotados intelectualmente. Respondeu-me: «Não gosto deles por serem bons alunos, cultos e vencedores. Gosto deles, sobretudo porque são bondosos. Era esta perspectiva que mais admirava em Mário Castrim — ele sabia exactamente. Nunca encontrei ninguém em que isso fosse tão evidente. A família de Mário era, de certo modo, o espelho da sua sabedoria e do modo inaudito como se apagava para dar lugar à Alice, à Catarina e ao André. Eles confirmam. O trabalho de crítico de televisão, que fez exaustivamente durante cerca de quarenta anos, revela-nos o seu lado mais rigoroso, criando um estilo completamente novo no jornalismo, pleno de sátira, ironia, humor, sem complacência com a falta de qualidade. Quem ler Mário Castrim, do "Diário de Lisboa" e do "Tal e Qual" deste quase meio século, poderá encontrar exageros, alguns equívocos, mas nunca conformismo. Sempre, mas sempre, coragem, coerência, estilo, preparação, humanismo, ironia, exigência... AMOR! O trabalho que exerceu, juntamente com a sua mulher, Alice Vieira, ela também grande escritora, no Suplemento Juvenil do "Diário de Lisboa", foi muitíssimo importante na gestação de uma juventude que seria fundamental na viragem civilizadora que ocorreu no País. Todos nós, que gostamos de livros, aprendemos muito com ele. E a disponibilidade que sempre tinha com quem era seu amigo, ou até conhecido, levou entre muitos, muitos trabalhos, a esta colaboração com o CETA, grupo de teatro cuja actividade ia acompanhando, desde há muito. Um dia surgiu esta ideia, que ele apanhou com alegria e simplicidade: Contar e Cardar (cardar < de cardador, figura típica de Ílhavo), cinco momentos teatrais, baseados na realidade da região aveirense: a ria, o mar, os valores civilizacionais do antes e do agora, as dificuldades, as corrupções, os problemas da terra que tão bem conhecia. Os textos que compõem este livro, tão oportunamente editado pelo CETA, com a participação fundamental do António Bastos e do Dr. Henrique de Oliveira, são o espelho do amor que tinha em si para dar à nossa terra, do espírito crítico, sentido irónico, lúdico, irreverência, espiritualidade, exigência social... necessidade de contar, pôr a ternura no contar, pôr a razão no cardar — A Ria de Aveiro — A Mãe Ria — esta expressão de afecto dá inclusivamente o título ao segundo texto. É, aliás, a principal personagem do mesmo: «...das estrelas, sim é isso das estrelas... por causa da luz...» Ainda na página 26: o carpir das carpideiras é ainda um carpir de amor. A fala da MARIA SALINA: que «é a Ria desprezada e estragada. A outra personagem, O MOLICEIRO — também tem queixas de amor em conversa com a Mãe Ria, lamentando o que lhe tiraram com o processo do moliço: um recordar de belas coisas do passado com a deterioração que a Ria foi tendo. Na página 29, as CARPIDEIRAS acompanham estas queixas de amor ferido. A personagem seguinte, o PALHEIRO, tem igualmente um recordar saudoso. O diálogo da Ria com o público, no final: «Eu não preciso de quem me chore, preciso de quem me defenda». Temos aqui evidenciada a esperança do Autor na fala da Ria. «Os olhos de Portugal ficariam mais cegos se a luz desaparecesse». Neste momento, os CARDADORES vêm trazer a esperança, cheios de força, para acabar com tudo o que se tornou agressão à beleza da Ria. O ARRAIS ANÇÃ, o rei que não usava coroa, mas barrete. Mais uma vez a ternura, a sua meninice, a sua infância. A história de um herói que ficou perpetuado num busto, não por ser rei, mas por ser um arrais — rei do mar. Não me vou alongar e, propositadamente, dou a deixa ao Henrique, para nos falar do processo que levou à edição deste livro. Aveiro, 8 de
Fevereiro de 2003 |
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