Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                               QUADRO XIV

 

(Em Leiria. Em cena, a Mulher de Gomes de Carvalho prepara uma mesa de aniversário. Sobre a mesa, um bolo com velas. Entra Gomes de Carvalho, precocemente envelhecido, doente e desleixado no vestir.)

GOMES DE CARVALHO

(Enquanto se dirige com alguma dificuldade para um cadeirão.)  
Que é que estás a fazer, Maria Francisca?

MARIA FRANCISCA

Estou a preparar-te uma surpresa!...

GOMES DE CARVALHO

Surpresa?!... A mim já nada me surpreende, mulher...

MARIA FRANCISCA

Sabes que dia é hoje?

GOMES DE CARVALHO

Sei... É o dia 17 de Junho de 1826.

MARIA FRANCISCA

Isso quer dizer que fazes hoje 56 anos de idade!

GOMES DE CARVALHO

Sim! É verdade. Mas também quer dizer que, de hoje a 4 dias, faz três anos que fui... Ou que fomos, expulsos de Aveiro...

MARIA FRANCISCA

Só que hoje é o dia dos teus anos e vamos festejar o dia dos teus anos. Depois, Aveiro não foi só o dia 21 de Junho de 1823. Aveiro foram quase dezanove anos e meio da nossa vida.

E um dia só, por mais negro que tenha sido, e este, foi-o, não pode apagar dezanove anos de juventude, de amor, de sonhos...

GOMES DE CARVALHO

É verdade... De sonhos... De entusiasmos... De luta! Foram os melhores anos da nossa vida, Maria Francisca! Em Aveiro nasceram os nossos filhos. Em Aveiro realizei a minha obra. Em Aveiro venci,... e fui derrotado!

MARIA FRANCISCA

Mas não vencido, Luís!

GOMES DE CARVALHO

O futuro o dirá. O futuro o dirá...

MARIA FRANCISCA

Não digas disparates, Luís!...

GOMES DE CARVALHO

Digo, mulher, digo, porque, num dia só, roubaram-me tudo, roubaram-me o Passado e roubaram-me o Futuro... Roubaram-me a própria terra... porque Aveiro é minha terra! Não foi lá que eu nasci, é certo, mas foi lá que eu ganhei raízes... e cresci!

Cortaram-me as raízes!... E um homem pode viver sem pés, sem mãos... sem muita coisa, mas não pode viver sem raízes!...

Sem raízes, definha, morre!...

MARIA FRANCISCA

Cala a boca, homem! É sempre a mesma coisa... Todos os dias a mesma conversa... A vida ainda tem muito para nos dar! E nós temos, ainda, muito para dar à vida. A vida não acaba em nós. Somos um elo. Percebeste, Luís? Somos um elo...

GOMES DE CARVALHO

Nunca pedi dinheiro, nem cargos, nem poder. O que fiz foi o que devia ter feito, mas sempre esperei que, ao menos, fosse reconhecido, publicamente, que cumpri o meu dever...

Mas nem isso... O povo...

MARIA FRANCISCA

Está ser enganado... E vai continuar a sê-lo. Durante muitos anos, vai continuar a ser joguete nas mãos dos Almeidas Coimbras, que vão mudando só de nome!

Mas o teu rei não está a ser enganado... O teu rei sabe que tu foste a alma da barra de Aveiro e que aquilo que te fizeram e te estão a fazer é uma profunda injustiça. Ele sabe. E que é que ele fez ou faz? Nada!

O povo tem desculpa, Luís, mas o rei não! O teu rei é um covarde! E pronto!

GOMES DE CARVALHO

És capaz de ter razão, Maria Francisca!... És capaz de ter razão!...

(batem à porta)

Quem será?

MARIA FRANCISCA

(surpreendida e agressiva.)

Não faço a menor ideia...

GOMES DE CARVALHO

Não gosto nada de ouvir bater à porta... Estamos num tempo em que só bater à porta é já uma ameaça...

MARIA FRANCISCA

É o tempo do Medo... Que temos de vencer! (Tornam a bater.)

Vou ver quem é...

GOMES DE CARVALHO

(falando sozinho)

É o tempo do Medo...

MARIA FRANCISCA

(Reentrando, muito satisfeita.)

Adivinha quem é?

GOMES DE CARVALHO

Pela maneira como perguntas, parece que é gente de bem!...

MARIA FRANCISCA

É o Cláudio, Luís... O Cláudio... Entre Sr. Cláudio, faça o favor de entrar...

ENCARREGADO

(Já velho, entrando e cumprimentando à militar.)

V. Excelência, meu coronel, dá-me licença?

GOMES DE CARVALHO

(levantando-se com dificuldade.)

Cláudio!...

ENCARREGADO

Ó Sr. engenheiro!...

(Abraçam-se longamente, emocionados.)

GOMES DE CARVALHO

Estava tão longe de te voltar a ver, meu malandro!...

ENCARREGADO

Pois eu tinha a certeza de que nos havíamos de voltar a encontrar, Sr. engenheiro...

Quando soube que depois da

(hesita)

GOMES DE CARVALHO

Diz... diz... Depois da “corrida”...

ENCARREGADO

Depois dessa grande injustiça.., o Sr. engenheiro tinha fixado residência aqui em Leiria, disse logo cá para comigo: qualquer dia meto-me a caminho e vou dar-lhe um abraço.

Porque, Sr. engenheiro, não julgue que a gente o esqueceu...

GOMES DE CARVALHO

Eu sei que tu és dos poucos amigos que não me traíram...

ENCARREGADO

E há mais, Sr. engenheiro! E há mais!

GOMES DE CARVALHO

Muito poucos... Muito poucos, Cláudio... Por medo, por engano... Por cobardia, é isso, por cobardia calam-se, encolhem-se... Eu até percebo... Eu até percebo...

Mas, conta-me coisas de Aveiro! Conta-me coisas da barra!

ENCARREGADO

Desde que o Sr. engenheiro saiu ainda não arranjaram ninguém para dirigir as obras!...

GOMES DE CARVALHO

O quê? Há quatro anos sem direcção técnica?!

ENCARREGADO

É verdade, Sr. engenheiro... Uma pouca vergonha. Ninguém sabe nada de nada. É o reino da incompetência.., a arrotar postas de pescada, e tudo cada vez pior!

GOMES DE CARVALHO

E como é que se “desenrascam”?

ENCARREGADO

Ó Sr. engenheiro, a gente vai fazendo conforme o Sr. nos ensinou.., só que às vezes as situações são diferentes... e sai asneira!

GOMES DE CARVALHO

A conservação, melhor: a continuação dos obras da barra, a valação dos esteiros, a navegabilidade dos rios, a drenagem dos campos, tudo isto exige um conjunto de conhecimentos técnicos e uma capacidade de coordenação que se não compadecem com artes de curiosos, por mais boa vontade que tenham! Estou farto de dizer isto...

ENCARREGADO

Só que eles não têm ninguém capaz, Sr. engenheiro. É só pesporrência e ignorância. E a gente a ver.., e a ter de calar!

GOMES DE CARVALHO

Vão dar cabo de tudo!...

ENCARREGADO

O Almeida Coimbra diz mesmo que o melhor é deixar que o mar destrua o que está feito, para se fazer tudo, outra vez, de novo.

GOMES DE CARVALHO

Esse Almeida Coimbra é burro, é mau e é ignorante...

ENCARREGADO

Mau é, Sr. engenheiro, agora burro e ignorante... desculpe, mas tenho as minhas dúvidas. Ele sabe muito bem o que faz e o que quer. E o que ele quer é demonstrar a toda a gente que a obra do “jacobino”— que é V. Exª. — nada vale e que o nome de Luís Gomes de Carvalho tem de ser esquecido.., para sempre!...

GOMES DE CARVALHO

E é capaz de o conseguir, Cláudio, e é capaz de o conseguir...

MARIA FRANCISCA

Consegue nada! Não falemos agora de coisas tristes.
Sr. Cláudio, faça o favor de se sentar... E beba connosco... Estávamos a festejar...

(oferece-lhe um copo que ele aceita.)

GOMES DE CARVALHO

(sorrindo.)

À minha “corrida” de Aveiro...

MARIA FRANCISCA

Meu marido está a brincar. Estávamos a festejar o seu aniversário...

ENCARREGADO

Eu não me esqueci, Senhora D. Maria Francisca... Por isso trouxe uma prenda: esta barrica de enguias da Murtosa!

(Tira a barrica de um saco e entrega-a a Gomes de Carvalho.)

GOMES DE CARVALHO

No vinte, maroto! Acertaste no vinte!... Maria Francisca, desculpa, mas tira lá para trás esses bolos. Abre esta barrica... Põe vinho. Traz pão, mulher. Traz pão! Vamos festejar.

MARIA FRANCISCA

(executa)

Vamos festejar, pois!

ENCARREGADO

Se V. Excelência me permitir, eu abro a barrica...

GOMES DE CARVALHO

Abre!... Abre depressa!...

ENCARREGADO

(executa)

Já está! Que cheirinho!...

GOMES DE CARVALHO

Chega cá!... Chega cá!...

(O encarregado entrega a barrica. Gomes de Carvalho pega nela como se fosse um cálice ungido. Cheira-a demoradamente, com unção.)

Que cheirinho!... Que cheirinho!... Cheira à nossa terra, mulher!...

(Fica a chorar emocionado)

MARIA FRANCISCA

Luís, não te emociones tanto! Faz-te mal!

ENCARREGADO

Sr. Engenheiro... Não vale a pena ficar dessa maneira... É só uma barrica de enguias!

GOMES DE CARVALHO

(furioso)

Não! Não! É a barra, é a ria, é o mar que me roubaram...

Ladrões! Ladrões!...

(Tem um esgar, deixa cair a barrica e tomba morto!)

MARIA FRANCISCA

(abanando-o)

Luís! Luís!... Luís!

ENCARREGADO

Ó Sr. Engenheiro!... Ó Sr. Engenheiro!...

(Dobre de finados. Vai escurecendo... Na contra-luz da tardinha um padre tocando uma sineta e empunhando uma cruz. Atrás, uma carreta com uma urna puxada pelo  ENCARREGADO. A acompanhar, apenas a ESPOSA, D. MARIA FRANCISCA. Longo tempo de marcha para o esquecimento!)

FIM

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