(Em
Leiria. Em cena, a Mulher de Gomes de Carvalho prepara uma mesa de aniversário.
Sobre a mesa, um bolo com velas. Entra Gomes de Carvalho, precocemente
envelhecido, doente e desleixado no vestir.)
GOMES
DE CARVALHO
(Enquanto
se dirige com alguma dificuldade para um cadeirão.)
Que é que estás a
fazer, Maria Francisca?
MARIA
FRANCISCA
Estou
a preparar-te uma surpresa!...
GOMES
DE CARVALHO
Surpresa?!...
A mim já nada me surpreende, mulher...
MARIA
FRANCISCA
Sabes
que dia é hoje?
GOMES
DE CARVALHO
Sei...
É o dia 17 de Junho de 1826.
MARIA
FRANCISCA
Isso
quer dizer que fazes hoje 56 anos de idade!
GOMES
DE CARVALHO
Sim! É verdade. Mas também quer dizer que, de hoje a 4 dias, faz três anos
que fui... Ou que fomos, expulsos de Aveiro...
MARIA
FRANCISCA
Só
que hoje é o dia dos teus anos e vamos festejar o dia dos teus anos.
Depois, Aveiro não foi só o dia 21 de Junho de 1823. Aveiro foram quase
dezanove anos e meio da nossa vida.
E
um dia só, por mais negro que tenha sido, e este, foi-o, não pode apagar
dezanove anos de juventude, de amor, de sonhos...
GOMES
DE CARVALHO
É
verdade... De sonhos... De entusiasmos... De luta! Foram os melhores anos da
nossa vida, Maria Francisca! Em Aveiro nasceram os nossos filhos. Em Aveiro
realizei a minha obra. Em Aveiro venci,... e fui derrotado!
MARIA
FRANCISCA
Mas
não vencido, Luís!
GOMES
DE CARVALHO
O
futuro o dirá. O futuro o dirá...
MARIA
FRANCISCA
Não
digas disparates, Luís!...
GOMES
DE CARVALHO
Digo,
mulher, digo, porque, num dia só, roubaram-me tudo, roubaram-me o Passado e
roubaram-me o Futuro... Roubaram-me a própria terra... porque Aveiro é
minha terra! Não foi lá que eu nasci, é certo, mas foi lá que eu ganhei
raízes... e cresci!
Cortaram-me
as raízes!... E um homem pode viver sem pés, sem mãos... sem muita coisa,
mas não pode viver sem raízes!...
Sem
raízes, definha, morre!...
MARIA
FRANCISCA
Cala
a boca, homem! É sempre a mesma coisa... Todos os dias a mesma conversa...
A vida ainda tem muito para nos dar! E nós temos, ainda, muito para dar à
vida. A vida não acaba em nós. Somos um elo. Percebeste, Luís? Somos um
elo...
GOMES
DE CARVALHO
Nunca
pedi dinheiro, nem cargos, nem poder. O que fiz foi o que devia ter feito,
mas sempre esperei que, ao menos, fosse reconhecido, publicamente, que
cumpri o meu dever...
Mas
nem isso... O povo...
MARIA
FRANCISCA
Está
ser enganado... E vai continuar a sê-lo. Durante muitos anos, vai continuar
a ser joguete nas mãos dos Almeidas Coimbras, que vão mudando só de nome!
Mas
o teu rei não está a ser enganado... O teu rei sabe que tu foste a alma da
barra de Aveiro e que aquilo que te fizeram e te estão a fazer é uma
profunda injustiça. Ele sabe. E que é que ele fez ou faz? Nada!
O
povo tem desculpa, Luís, mas o rei não! O teu rei é um covarde! E pronto!
GOMES
DE CARVALHO
És
capaz de ter razão, Maria Francisca!... És capaz de ter razão!...
(batem
à porta)
Quem
será?
MARIA
FRANCISCA
(surpreendida
e agressiva.)
Não
faço a menor ideia...
GOMES
DE CARVALHO
Não
gosto nada de ouvir bater à porta... Estamos num tempo em que só bater à
porta é já uma ameaça...
MARIA
FRANCISCA
É
o tempo do Medo... Que temos de vencer! (Tornam a bater.)
Vou
ver quem é...
GOMES
DE CARVALHO
(falando
sozinho)
É
o tempo do Medo...
MARIA
FRANCISCA
(Reentrando,
muito satisfeita.)
Adivinha
quem é?
GOMES
DE CARVALHO
Pela
maneira como perguntas, parece que é gente de bem!...
MARIA
FRANCISCA
É
o Cláudio, Luís... O Cláudio... Entre Sr. Cláudio, faça o favor de
entrar...
ENCARREGADO
(Já
velho, entrando e cumprimentando à militar.)
V.
Excelência, meu coronel, dá-me licença?
GOMES
DE CARVALHO
(levantando-se
com dificuldade.)
Cláudio!...
ENCARREGADO
Ó
Sr. engenheiro!...
(Abraçam-se
longamente, emocionados.)
GOMES
DE CARVALHO
Estava
tão longe de te voltar a ver, meu malandro!...
ENCARREGADO
Pois
eu tinha a certeza de que nos havíamos de voltar a encontrar, Sr.
engenheiro...
Quando
soube que depois da
(hesita)
GOMES
DE CARVALHO
Diz...
diz... Depois da “corrida”...
ENCARREGADO
Depois
dessa grande injustiça.., o Sr. engenheiro tinha fixado residência aqui em
Leiria, disse logo cá para comigo: qualquer dia meto-me a caminho e vou
dar-lhe um abraço.
Porque,
Sr. engenheiro, não julgue que a gente o esqueceu...
GOMES
DE CARVALHO
Eu
sei que tu és dos poucos amigos que não me traíram...
ENCARREGADO
E
há mais, Sr. engenheiro! E há mais!
GOMES
DE CARVALHO
Muito
poucos... Muito poucos, Cláudio... Por medo, por engano... Por cobardia, é
isso, por cobardia calam-se, encolhem-se... Eu até percebo... Eu até
percebo...
Mas,
conta-me coisas de Aveiro! Conta-me coisas da barra!
ENCARREGADO
Desde
que o Sr. engenheiro saiu ainda não arranjaram ninguém para dirigir as
obras!...
GOMES
DE CARVALHO
O
quê? Há quatro anos sem direcção técnica?!
ENCARREGADO
É
verdade, Sr. engenheiro... Uma pouca vergonha. Ninguém sabe nada de nada.
É o reino da incompetência.., a arrotar postas de pescada, e tudo cada
vez pior!
GOMES
DE CARVALHO
E
como é que se “desenrascam”?
ENCARREGADO
Ó
Sr. engenheiro, a gente vai fazendo conforme o Sr. nos ensinou.., só que às
vezes as situações são diferentes... e sai asneira!
GOMES
DE CARVALHO
A
conservação, melhor: a continuação dos obras da barra, a valação dos
esteiros, a navegabilidade dos rios, a drenagem dos campos, tudo isto exige
um conjunto de conhecimentos técnicos e uma capacidade de coordenação que
se não compadecem com artes de curiosos, por mais boa vontade que tenham!
Estou farto de dizer isto...
ENCARREGADO
Só
que eles não têm ninguém capaz, Sr. engenheiro. É só pesporrência e
ignorância. E a gente a ver.., e a ter de calar!
GOMES
DE CARVALHO
Vão
dar cabo de tudo!...
ENCARREGADO
O
Almeida Coimbra diz mesmo que o melhor é deixar que o mar destrua o que
está feito, para se fazer tudo, outra vez, de novo.
GOMES
DE CARVALHO
Esse
Almeida Coimbra é burro, é mau e é ignorante...
ENCARREGADO
Mau
é, Sr. engenheiro, agora burro e ignorante... desculpe, mas tenho as minhas
dúvidas. Ele sabe muito bem o que faz e o que quer. E o que ele quer é
demonstrar a toda a gente que a obra do “jacobino”— que é V. Exª.
— nada vale e que o nome de Luís Gomes de Carvalho tem de ser
esquecido.., para sempre!...
GOMES
DE CARVALHO
E
é capaz de o conseguir, Cláudio, e é capaz de o conseguir...
MARIA
FRANCISCA
Consegue
nada! Não falemos agora de coisas tristes.
Sr. Cláudio, faça o favor de se sentar... E beba connosco... Estávamos a
festejar...
(oferece-lhe
um copo que ele aceita.)
GOMES
DE CARVALHO
(sorrindo.)
À
minha “corrida” de Aveiro...
MARIA
FRANCISCA
Meu
marido está a brincar. Estávamos a
festejar o seu aniversário...
ENCARREGADO
Eu
não me esqueci, Senhora D. Maria Francisca... Por isso trouxe uma prenda:
esta barrica de enguias da Murtosa!
(Tira
a barrica de um saco e entrega-a a Gomes de Carvalho.)
GOMES
DE CARVALHO
No
vinte, maroto! Acertaste no vinte!... Maria Francisca, desculpa, mas tira lá
para trás esses bolos. Abre esta barrica... Põe vinho. Traz pão, mulher.
Traz pão! Vamos festejar.
MARIA
FRANCISCA
(executa)
Vamos festejar, pois!
ENCARREGADO
Se
V. Excelência me permitir, eu abro a barrica...
GOMES
DE CARVALHO
Abre!...
Abre depressa!...
ENCARREGADO
(executa)
Já
está! Que cheirinho!...
GOMES
DE CARVALHO
Chega
cá!... Chega cá!...
(O
encarregado entrega a barrica. Gomes de Carvalho pega nela como se fosse um
cálice ungido. Cheira-a demoradamente, com unção.)
Que
cheirinho!... Que cheirinho!... Cheira à nossa terra, mulher!...
(Fica
a chorar emocionado)
MARIA
FRANCISCA
Luís,
não te emociones tanto! Faz-te mal!
ENCARREGADO
Sr.
Engenheiro... Não vale a pena ficar dessa maneira... É só uma barrica de
enguias!
GOMES
DE CARVALHO
(furioso)
Não!
Não! É a barra, é a ria, é o mar que me roubaram...
Ladrões!
Ladrões!...
(Tem
um esgar, deixa cair a barrica e tomba morto!)
MARIA
FRANCISCA
(abanando-o)
Luís!
Luís!... Luís!
ENCARREGADO
Ó
Sr. Engenheiro!... Ó Sr. Engenheiro!...
(Dobre
de finados. Vai escurecendo... Na contra-luz da tardinha um padre tocando
uma sineta e empunhando uma cruz. Atrás, uma carreta com uma urna puxada
pelo ENCARREGADO. A acompanhar, apenas a ESPOSA, D. MARIA FRANCISCA.
Longo tempo de marcha para o esquecimento!)
FIM
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