Estávamos em 1955/1956. Respirava-se na
fábrica de papel o clima de arranque iniciado em 1954.
Nessa altura existia apenas um desfibrador,
situado no 2.º piso da secção de Preparação. Era para lá que todos os
dias se tinham de transportar algumas centenas de fardos de pasta e
sacos de caulino.
Trabalho duro, esse: os fardos pesavam à
volta de 200 quilos e os sacos 100. Tudo transportado em carros de mão
até ao monta-cargas. Não havia pausas e as refeições eram tomadas à
porfia, em contra-relógio, um olho no prato outro na goela do
desfibrador.
Para endurecer os músculos dos portugueses,
lá tínhamos os «mestres» ingleses, sempre exigentes, sem dar minuto de
descanso.
Mister Smith – um inglês (aliás escocês)
muito activo, era, como diz o nosso povo, um «patrão» duro demasiado
exigente; considerava os portugueses uns animais de carga, de raça
inferior. Não tinha contemplações.
Um dia a máquina de papel, por avaria,
esteve parada um turno inteiro. Esse facto terá contribuído para um
abrandamento no trabalho de transporte de matérias primas para o
desfibrador.
Mr. Smith, como de costume, inventariou o
trabalho feito, não obstante a máquina ter estado inactiva. E porque os
fardos transportados não atingiram os quantitativos tidos como média,
escreveu no livro diário o seguinte:
– MUITO POCO PASTA PASSAR ONTEM MAQUINA
PARADA PARA 10 HORAS CHEF TURNO PRECISA MAIS ATENÇÃO ATÉ MONTA CARGAS
PORQUE POUCO PASSAR.
A gramática não era muito boa, mas não é de
admirar, pois mr. Smith aprendeu a falar e a escrever a nossa língua em
pouco mais de dois anos! Era quase como os telegramas, mas nós
percebíamos bem o que ele queria dizer.
Relacionado com disciplina também me recordo
de uma nota do mr. Smith que rezava assim, textualmente:
– CHEFS DE TURNO PRECISA SEMPRE VER HOMENS
TRABALHO BEM. ENG. LOPES DIZER HOJE ELE NÃO CONTENTE CON ESTA SECÇÃO
PORQUE ELE TEM INFORMAÇÃO HOMENS DE DESFIBRADOR DE PREPARAÇÃO NÃO
TRABALHO SEMPRE. E DENTRO DO GABINETE VER HOMENS FUMAR. ELE DISSE OUTRA
VEZ IGUAL CASTIGAR TODOS.
Claro está que éramos várias vezes
repreendidos pelos nossos superiores portugueses.
Eu, por achar que certas admoestações ao
pessoal eram muitas vezes injustas, tive com mr. Smith muitas conversas
azedas.
Num certo dia, perguntei a mr. Smith:
– Lá na Inglaterra também se trabalha assim?
Com ar de surpresa, limpou e ajeitou nervosamente os óculos para melhor
me fixar e respondeu-me secamente:
– INGLATERRA PAÍS RICO. NÃO SE FAZER PAÍS
RICO SEM TRABALHA. INGLATERRA TER GRANDES FABRICAS. NÃO SE FAZER GRANDE
FABRICA SEM TRABALHA. INGLATERRA TER HA POUCAS ANOS GUERRA, VOCÊ
CONHECE, AGORA NÃO FICA POBRE PORQUÊ?
Esta resposta tapou-me a boca. E se a razão
das minhas contestações se justificavam em muitas discussões que tive
com o mr. Smith, desta vez, talvez a única em que uma verdade se me
revelou tão concreta, tão evidente e frontal, eu apenas olhei para ele.
Os olhos de mr. Smith luziam de vitória, olhando-me por cima das lentes
dos seus óculos, para ver bem o efeito que em mim fazia, a verdade que
disse.
Baixei a cabeça. Resmunguei qualquer coisa,
fui para o trabalho. E hoje, que os tempos são antípodas, eu penso
muitas vezes na verdade de mr. Smith: – Não se faz um país rico sem
trabalho!
FLORINDO RAMOS
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* Técnico Papeleiro do Centro - CACIA
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