O PÓRTICO RETÁBULO
No alçado poente da igreja, abre-se o pórtico principal,
desenhado como um verdadeiro retábulo de pedra deslocado para o
exterior, ou melhor, para o limiar do exterior. O discutível
revestimento azulejar da parede, levado a cabo no séc. XIX, acentuou a
independência da peça relativamente ao coro da igreja. Mas,
primitivamente, a unanimidade da pedra, teria certamente produzido um
diálogo mais complementar do que antitético. Diálogo, portanto, entre o
pórtico e o corpo da igreja. Diálogo, também, como já aflorámos, com o
interior do templo, nomeadamente com o arco-cruzeiro e com o retábulo do
altar-mor, e com o exterior, isto é, com o envolvimento urbanístico, em
especial, com o largo de S. Miguel, a que sucedeu a Praça da República.
O desenho do pórtico, dramatizando o acto de franquear a
entrada, sublinharia o edifício no espaço urbanístico do largo/praça.
Para compreender integralmente as funções do portal da Misericórdia
aveirense, há, no nosso entender, que equacionar a sua presença num
espaço que, como vimos, esteve desde o séc. XVI até quase ao séc. XX,
saturado de referenciais religiosos, sobretudo organizados em torno da
igreja de S. Miguel. O pórtico da Misericórdia, justificado, por assim
dizer, num quadro de emulação, teria pois possibilitado um maior peso
visual da Santa Casa no espaço "acanhado" do largo/praça.
Um outro aspecto que decorre do desenho retabular do
pórtico diz respeito ao relacionamento entre exterior e interior, entre
profano e sagrado.
A propósito de arquitectura retabular, Elídio Salteiro
escreve que «o retábulo podendo ser uma fachada exterior no interior,
com suportes para a presença constante de imagens, torna-se fachada
interior aberta para um 'outro exterior', onde 'janelas' nos deixam
antever essas outras realidades de um mundo pensado, reflectido e
desejado.» (36) Elídio Salteiro refere-se obviamente aos
retábulos interiores, que interpreta, pois, como fachadas deslocadas
para dentro do templo; ora, o retábulo frontispicial não é tanto um
regresso da fachada ao "topos" legítimo, mas mais uma nova deslocação,
para fora, de uma fachada transformada. Não é a fachada que recupera a
sua posição, identificando-se com o alçado principal da igreja, mas sim
a fachada corrigida, refeita, portadora de uma nova carga simbólica, que
agora se desloca para o exterior. Por isto, ela não se pode identificar
com o alçado principal, mas apenas ser-lhe adossada. Por isto, também,
os retábulos frontispiciais inauguram uma outra relação entre exterior e
interior, marcada por uma diferente linha divisória e por uma teia mais
ambígua. A relação entre exterior e interior, entre profano e sagrado,
desenrola-se, por assim dizer, segundo um jogo interminável, na
Misericórdia aveirense acentuado pela feitura do retábulo do altar-mor à
semelhança do pórtico de entrada.
Está este estruturado em dois andares, aproximadamente na
relação de 4:3, segundo a fórmula de sobreposição das ordens, no
primeiro coríntia, no segundo compósita. As colunas, caneladas nos dois
terços superiores e relevadas no restante, dividem-no em três secções,
na relação de 1:2:1. A porta ocupa toda a secção central do plano
inferior, enquanto a meia altura dos intercolúnios se abrem nichos, onde
se albergam as imagens de S. Pedro e de S. Paulo, encimados por "cartouches"
com duas cabeças, uma masculina, outra feminina. No segundo plano, duas
janelas correspondem aos ditos nichos, abrindo-se, na secção intermédia,
um terceiro, mais amplo, enquadrado por pilastras, albergando a imagem
de Nossa Senhora da Conceição. Por remate, eleva-se, ao centro, um
escudo nacional, com coroa régia entre volutas, ladeado por dois
conjuntos de três elementos (urna/cruz/urna e urna/esfera armilar/urna).
Vejamos o modo como o pórtico se referencia relativamente
a peças similares noutros edifícios. O problema da sua classificação
estilística tem sido invariavelmente posto por todos aqueles que têm
escrito sobre a igreja da Misericórdia. Marques Gomes, por exemplo,
escrevia, no início do século, que "este pórtico, sem ser uma obra de
grande carácter artístico, é um apreciável modelo da
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arquitectura do Renascimento, quando este pendia para o seu ocaso, no
período da degeneração".
(37) Mais tarde, Alberto Souto
escreveria que "a ideia dos retábulos frontispiciais deste género teve
muita voga na Renascença e no Barroco, devendo ter vindo até nós de
Itália, onde Andrea Sansovino (1460-1529) a aplicou no mausoléu do
Cardeal Ascânio Sforza, em Santa Maria dei Pópulo, em Roma."
(38)
Segundo Nogueira Gonçalves, no pórtico da Misericórdia aveirense
desenha-se "exemplar coimbrão da última renascença, já de influência
clássica, pela adopção dos arcos triunfais da antiguidade";
(39) acrescenta este autor que a sua principal novidade está no
desenvolvimento do segundo corpo, "quando em comum era substituído pelo
remate, como o exigia o habitual e limitado espaço, tal acontecendo na
universitária porta-férrea".
(40) Amaro Neves, no seu
Aveiro: História e Arte, considera que "quer a frontaria,
quer o
corpo da igreja denotam, claramente, a adopção da gramática maneirista".
(41)
De uma maneira geral, verifica-se unanimidade: primeiro,
na consideração deste pórtico integrado na tipologia dos retábulos;
segundo, na sua subsequente classificação no período final do
Renascimento, ou no Maneirismo.
Ora, o pórtico frontispicial da Misericórdia aveirense
não é peça isolada na arquitectura portuguesa. Já vimos, a partir da
sugestão de Nogueira Gonçalves, que é este uma evolução do modelo de um
único andar, exemplificado pela porta férrea da Universidade de Coimbra.
Evolução no mesmo sentido – isto é, para dois andares – se encontra, por
exemplo, na igreja da Misericórdia de Guimarães e na catedral de Miranda
do Douro, bem como no pórtico lateral de S. Gonçalo de Amarante (com um
terceiro andar, claramente barroco).
Germain Bazin propõe um quadro de evolução do retábulo
português, considerando, no séc. XVII, duas tipologias principais: o
retábulo "maneirista" ou "proto-barroco" e o retábulo clássico,
respectivamente subsidiários do tipo plateresco e do tipo
Contra-Reforma, do séc. XVI-XVII. Neste sistema, o pórtico da
Misericórdia aveirense situar-se-ia na tipologia do retábulo clássico,
por sua vez na tradição da reforma arquitectural da escola de
Portalegre. Segundo Bazin, os retábulos da capela-mor da catedral de
Portalegre e da capela-mor do convento das carmelitas de Coimbra "sortent
résolument des proportions Renaissance pour adopter celles de
Ia Contre-Réforme, inaugurées dans Ia péninsule ibérique par Juan de
Herrera". (42)
Esta inflexão ter-se-ia traduzido também por um
regresso à madeira, abandonada pelos escultores renascentistas em favor
da pedra: "Ia pierre, chère aux sculpteurs de Ia Renaissance, sera
abandonnée pour le bois.
C'est Ia ligne de départ d'un art nouveau qui va se développer
parallèlement à I'architecture, puisant en elle ses inspirations ou lui
en fournissant, parfois en contradiction avec elle".
(43)
Com efeito, durante os séculos XVI e XVII, os dois
materiais de construção, que são a pedra e a madeira, travaram entre si
um diálogo extremamente estimulante, que necessariamente se teria
reflectido na arquitectura retabular. A madeira e a pedra deram corpo ao
esquema tese – antítese – síntese, onde esta funciona como uma outra
tese a que se oporá uma nova antítese...
O pórtico da Misericórdia de Aveiro prolongando,
pois, o
movimento quinhentista de substituição do entalhador pelo escultor,
(44) não exclui as novidades classicistas da talha de Portalegre do
final desse século.
É, pois, o pórtico uma síntese que, deslocada para a
entrada da igreja, suscita, como já sugerimos, uma nova experiência de
interioridade num espaço que, pela amplidão da nave única, poderia ser
lido como um prolongamento da praça; para o crente, é também uma nova
experiência do sagrado, porventura tecida segundo uma outra rede de
ambiguidades.
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NOTAS
(36)
– Arquitectura retabular no séc. XVI (tese de mestrado); Lisboa. U.N.L.;
1986; p. 24.
(37)
– Artigo publicado no jornal "Campeão das Províncias”; republ. em
3/Março/1923; n.º 6834.
(38)
– A Arte em Portugal; Porto, Marques Abreu. 1952.
(39)
– Inventário Artístico de Portugal (...); voI. VI; (...); p. 105.
(40)
– Ibidem.
(41)
– Aveiro, ADERAV, 1984; p.37.
(42)
– "Morfologie du RetabuIo portugais", Boletim da Academia Nacional de
Belas Artes; Lisboa, 2.ª série, 5. 1953; p. 6.
(43)
– lbidem.
(44)
– Ilídio Salteiro refere-se a esta substituição na primeira metade do
século XVI: "Deste modo estes imaginários-escultores substituirão os
entalhadores das molduras-retábulos de expressão gótica, e por
conseguinte a pedra substituirá a madeira, nas formas dos retábulos da
primeira metade deste século." (ob. cit., p. 156).
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S. Miguel de Aveiro no século XVIII" in “Arquivo do distrito de Aveiro”,
voI. VII, 1941.
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Câmara desta cidade, de 1840.
(– in “Arquivo do distrito de Aveiro”, voI. XIX, 1953).
Documentos de Arquivo
Pasta contendo cartas dirigidas à Santa Casa da
Misericórdia provenientes de diversas Misericórdias do reino, da índia,
China e Brasil (1603-1645).
262 do cat. do Arq. da Santa Casa da Misericórdia de
Aveiro.
Pasta contendo cartas, sentenças e provisões relativas à
Santa Casa da Misericórdia (1533-1865).
264 do cat. do Arq. da Santa Casa da Misericórdia de
Aveiro.
Livro do dinheiro e gastos da Nova Casa da Misericórdia
(1599-1601).
365 do cat. do Arq. da Santa Casa da Misericórdia de
Aveiro.
Daniel Tércio Ramos Guimarães
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