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Boletim n.º 19 - Ano X - 1992

O PÓRTICO RETÁBULO


No alçado poente da igreja, abre-se o pórtico principal, desenhado como um verdadeiro retábulo de pedra deslocado para o exterior, ou melhor, para o limiar do exterior. O discutível revestimento azulejar da parede, levado a cabo no séc. XIX, acentuou a independência da peça relativamente ao coro da igreja. Mas, primitivamente, a unanimidade da pedra, teria certamente produzido um diálogo mais complementar do que antitético. Diálogo, portanto, entre o pórtico e o corpo da igreja. Diálogo, também, como já aflorámos, com o interior do templo, nomeadamente com o arco-cruzeiro e com o retábulo do altar-mor, e com o exterior, isto é, com o envolvimento urbanístico, em especial, com o largo de S. Miguel, a que sucedeu a Praça da República.

O desenho do pórtico, dramatizando o acto de franquear a entrada, sublinharia o edifício no espaço urbanístico do largo/praça. Para compreender integralmente as funções do portal da Misericórdia aveirense, há, no nosso entender, que equacionar a sua presença num espaço que, como vimos, esteve desde o séc. XVI até quase ao séc. XX, saturado de referenciais religiosos, sobretudo organizados em torno da igreja de S. Miguel. O pórtico da Misericórdia, justificado, por assim dizer, num quadro de emulação, teria pois possibilitado um maior peso visual da Santa Casa no espaço "acanhado" do largo/praça.

Um outro aspecto que decorre do desenho retabular do pórtico diz respeito ao relacionamento entre exterior e interior, entre profano e sagrado.

A propósito de arquitectura retabular, Elídio Salteiro escreve que «o retábulo podendo ser uma fachada exterior no interior, com suportes para a presença constante de imagens, torna-se fachada interior aberta para um 'outro exterior', onde 'janelas' nos deixam antever essas outras realidades de um mundo pensado, reflectido e desejado.» (36) Elídio Salteiro refere-se obviamente aos retábulos interiores, que interpreta, pois, como fachadas deslocadas para dentro do templo; ora, o retábulo frontispicial não é tanto um regresso da fachada ao "topos" legítimo, mas mais uma nova deslocação, para fora, de uma fachada transformada. Não é a fachada que recupera a sua posição, identificando-se com o alçado principal da igreja, mas sim a fachada corrigida, refeita, portadora de uma nova carga simbólica, que agora se desloca para o exterior. Por isto, ela não se pode identificar com o alçado principal, mas apenas ser-lhe adossada. Por isto, também, os retábulos frontispiciais inauguram uma outra relação entre exterior e interior, marcada por uma diferente linha divisória e por uma teia mais ambígua. A relação entre exterior e interior, entre profano e sagrado, desenrola-se, por assim dizer, segundo um jogo interminável, na Misericórdia aveirense acentuado pela feitura do retábulo do altar-mor à semelhança do pórtico de entrada.

Está este estruturado em dois andares, aproximadamente na relação de 4:3, segundo a fórmula de sobreposição das ordens, no primeiro coríntia, no segundo compósita. As colunas, caneladas nos dois terços superiores e relevadas no restante, dividem-no em três secções, na relação de 1:2:1. A porta ocupa toda a secção central do plano inferior, enquanto a meia altura dos intercolúnios se abrem nichos, onde se albergam as imagens de S. Pedro e de S. Paulo, encimados por "cartouches" com duas cabeças, uma masculina, outra feminina. No segundo plano, duas janelas correspondem aos ditos nichos, abrindo-se, na secção intermédia, um terceiro, mais amplo, enquadrado por pilastras, albergando a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Por remate, eleva-se, ao centro, um escudo nacional, com coroa régia entre volutas, ladeado por dois conjuntos de três elementos (urna/cruz/urna e urna/esfera armilar/urna).

Vejamos o modo como o pórtico se referencia relativamente a peças similares noutros edifícios. O problema da sua classificação estilística tem sido invariavelmente posto por todos aqueles que têm escrito sobre a igreja da Misericórdia. Marques Gomes, por exemplo, escrevia, no início do século, que "este pórtico, sem ser uma obra de grande carácter artístico, é um apreciável modelo da / 26 / arquitectura do Renascimento, quando este pendia para o seu ocaso, no período da degeneração". (37) Mais tarde, Alberto Souto escreveria que "a ideia dos retábulos frontispiciais deste género teve muita voga na Renascença e no Barroco, devendo ter vindo até nós de Itália, onde Andrea Sansovino (1460-1529) a aplicou no mausoléu do Cardeal Ascânio Sforza, em Santa Maria dei Pópulo, em Roma." (38) Segundo Nogueira Gonçalves, no pórtico da Misericórdia aveirense desenha-se "exemplar coimbrão da última renascença, já de influência clássica, pela adopção dos arcos triunfais da antiguidade"; (39) acrescenta este autor que a sua principal novidade está no desenvolvimento do segundo corpo, "quando em comum era substituído pelo remate, como o exigia o habitual e limitado espaço, tal acontecendo na universitária porta-férrea". (40) Amaro Neves, no seu Aveiro: História e Arte, considera que "quer a frontaria, quer o corpo da igreja denotam, claramente, a adopção da gramática maneirista". (41)

De uma maneira geral, verifica-se unanimidade: primeiro, na consideração deste pórtico integrado na tipologia dos retábulos; segundo, na sua subsequente classificação no período final do Renascimento, ou no Maneirismo.

Ora, o pórtico frontispicial da Misericórdia aveirense não é peça isolada na arquitectura portuguesa. Já vimos, a partir da sugestão de Nogueira Gonçalves, que é este uma evolução do modelo de um único andar, exemplificado pela porta férrea da Universidade de Coimbra. Evolução no mesmo sentido – isto é, para dois andares – se encontra, por exemplo, na igreja da Misericórdia de Guimarães e na catedral de Miranda do Douro, bem como no pórtico lateral de S. Gonçalo de Amarante (com um terceiro andar, claramente barroco).

Germain Bazin propõe um quadro de evolução do retábulo português, considerando, no séc. XVII, duas tipologias principais: o retábulo "maneirista" ou "proto-barroco" e o retábulo clássico, respectivamente subsidiários do tipo plateresco e do tipo Contra-Reforma, do séc. XVI-XVII. Neste sistema, o pórtico da Misericórdia aveirense situar-se-ia na tipologia do retábulo clássico, por sua vez na tradição da reforma arquitectural da escola de Portalegre. Segundo Bazin, os retábulos da capela-mor da catedral de Portalegre e da capela-mor do convento das carmelitas de Coimbra "sortent résolument des proportions Renaissance pour adopter celles de Ia Contre-Réforme, inaugurées dans Ia péninsule ibérique par Juan de Herrera". (42) Esta inflexão ter-se-ia traduzido também por um regresso à madeira, abandonada pelos escultores renascentistas em favor da pedra: "Ia pierre, chère aux sculpteurs de Ia Renaissance, sera abandonnée pour le bois. C'est Ia ligne de départ d'un art nouveau qui va se développer parallèlement à I'architecture, puisant en elle ses inspirations ou lui en fournissant, parfois en contradiction avec elle". (43)

Com efeito, durante os séculos XVI e XVII, os dois materiais de construção, que são a pedra e a madeira, travaram entre si um diálogo extremamente estimulante, que necessariamente se teria reflectido na arquitectura retabular. A madeira e a pedra deram corpo ao esquema tese – antítese – síntese, onde esta funciona como uma outra tese a que se oporá uma nova antítese...

O pórtico da Misericórdia de Aveiro prolongando, pois, o movimento quinhentista de substituição do entalhador pelo escultor, (44) não exclui as novidades classicistas da talha de Portalegre do final desse século.

É, pois, o pórtico uma síntese que, deslocada para a entrada da igreja, suscita, como já sugerimos, uma nova experiência de interioridade num espaço que, pela amplidão da nave única, poderia ser lido como um prolongamento da praça; para o crente, é também uma nova experiência do sagrado, porventura tecida segundo uma outra rede de ambiguidades.

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NOTAS

(36) – Arquitectura retabular no séc. XVI (tese de mestrado); Lisboa. U.N.L.; 1986; p. 24.

(37) – Artigo publicado no jornal "Campeão das Províncias”; republ. em 3/Março/1923; n.º 6834.

(38) – A Arte em Portugal; Porto, Marques Abreu. 1952.

(39) – Inventário Artístico de Portugal (...); voI. VI; (...); p. 105.

(40) – Ibidem.

(41) – Aveiro, ADERAV, 1984; p.37.

(42) – "Morfologie du RetabuIo portugais", Boletim da Academia Nacional de Belas Artes; Lisboa, 2.ª série, 5. 1953; p. 6.

(43) – lbidem.

(44) – Ilídio Salteiro refere-se a esta substituição na primeira metade do século XVI: "Deste modo estes imaginários-escultores substituirão os entalhadores das molduras-retábulos de expressão gótica, e por conseguinte a pedra substituirá a madeira, nas formas dos retábulos da primeira metade deste século." (ob. cit., p. 156).

 

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FONTES PRIMÁRIAS

Documentos transladados

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(– A memória sobre Aveiro de Pinho Queimado in “Arquivo do distrito de Aveiro”, voI. III, 1937).

– Relação que ao Illmo., e Revmo. Sñr Vigario Capitular do Bispado de Coimbra dá Fr. Felix Mendes de Ramos, Beneficiado Coadjutor, e Vigario encomendado da Paroquial Igra. Colegiada Matriz da Cidade de Aveiro de 1760 (?) ou 1775 (?).

(– "Uma descrição das igrejas e capelas da freguesia de S. Miguel de Aveiro no século XVIII" in “Arquivo do distrito de Aveiro”, voI. VII, 1941.

– Auto da arrematação da obra que se vai a fazer no sítio da Igreja e adro da extinta freguesia de S. Miguel, defronte da casa da Câmara desta cidade, de 1840.

(– in “Arquivo do distrito de Aveiro”, voI. XIX, 1953).

 

Documentos de Arquivo

Pasta contendo cartas dirigidas à Santa Casa da Misericórdia provenientes de diversas Misericórdias do reino, da índia, China e Brasil (1603-1645).

262 do cat. do Arq. da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro.

Pasta contendo cartas, sentenças e provisões relativas à Santa Casa da Misericórdia (1533-1865).

264 do cat. do Arq. da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro.

Livro do dinheiro e gastos da Nova Casa da Misericórdia (1599-1601).

365 do cat. do Arq. da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro.

Daniel Tércio Ramos Guimarães
 

 

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