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Boletim n.º 19 - Ano X - 1992

A IGREJA DA MISERICÓRDIA DE AVEIRO


Pinho Queimado escreveu que, em todo o reino, não havia igreja da Misericórdia a igualar, em beleza e majestade, a da vila de Aveiro. Mais tarde, na Relação (...) das construções religiosas aveirenses remetida ao bispado de Coimbra, Fr. Félix Mendes dos Ramos, seu autor, refere-se-lhe nos seguintes termos: «A igreja da Mizericordia he edificio sumptuoso de pedraria, seu tecto da mesma arqueado, e quartejado; cuja instituição, e completo estabelecimento, que consiste em rendas de bens imóveis, não pude saber; mas só que dão comprimento a muitos legados, de que, dão contas ao Provedor da Comarca: está decentemente, e com aseio paramentada com paramentos de todas as cores, calices, patenas, galhetas, missaes, toalhas, corporaes, bolsas, e sanguinhos; tudo perfeito.»

No conjunto edificado da Santa Casa aveirense, a igreja, pela sua majestade essencial, ocupa posição nuclear. Vimos que, a ter-se verificado o programa representado pelo desenho B, ela se posicionaria no eixo do sistema das relações funcionais entre os diversos corpos. Em qualquer dos casos, a igreja era, e é, a peça dominante nas relações da Santa Casa com o envolvimento urbanístico. No plano religioso, chegou a ser Sé Episcopal, de 1775 a 1822. No plano arquitectónico, a sua presença impunha-se sobretudo graças ao concurso de dois aspectos: a "desmesurada altura", (27) a que já nos referimos, e o pórtico, integrado numa tipologia retabular, que analisaremos adiante.

O exterior impressionaria pela simplicidade matemática, porventura mais flagrante quando apreciada pela banda da Rua da Corredoura (actual R. do Batalhão de Caçadores 10). A ordem e a austeridade da peça, associadas a um grande sentido pragmático e de integração no conjunto, que procurámos analisar no ponto anterior, inscrevem-na, na nossa perspectiva, numa arquitectura chão.

Basicamente, a igreja é constituída por dois volumes paralelipipédicos, o maior correspondendo ao corpo e o mais pequeno à capela-mor. Em ambos, os cunhais estão trabalhados como pilastras toscanas, sobre os quais correm cimalhas adinteladas. Sobre cada beirado do corpo maior, a partir das esquinas, erguem-se quatro pirâmides embasadas, num ritmo regular, quebrado, no lado esquerdo, pela presença da sineirita. Nas duas esquinas da capela-mor, em vez de pirâmides, existem bolas sobre plintos. Os alçados do corpo maior são rematados por frontões triangulares com cruzes nas empenas.

No interior, a igreja apresenta uma única e ampla nave, sem capelas laterais, com cobertura de abóbada de berço, toda em pedra da região da Ançã, e assenta sobre o entablamento denticulado com ressaltos sugestionando mísulas, que corre por todo o perímetro; a abóbada, por sua vez, está dividida em onze séries de sete quartelas.

Sensivelmente a meio da nave, abrem-se duas portas, iguais e muito bem lavradas, das quais, / 21 / a do lado do Evangelho dá acesso ao pátio. Exteriormente, estas portas são enquadradas por pilastras de feição dórica, sobre as quais assenta um entablamento decorado com métopas e triglifos, encimado por frontão curvo, de tímpano liso.

A igreja apresenta coro alto, sobre abóbada de asa-de-cesto. arrancando de cornija saliente que coroa um entablamento ritmado em três vãos, apoiado por mísulas. A dita abóbada é dividida em duas séries de sete quartelas. O coro é superiormente definido por elegante balaustrada ritmada em cinco séries de quatro balaústres de vulto pleno ladeados por dois adossados. Liga-se à Casa do Despacho graças à serventia do pátio, a que antes nos referimos.

Estes aspectos permitem inscrevê-la na tipologia das igrejas das Misericórdias nacionais.

Por outro lado, a solução da capela-mor, com profundidade ligeiramente superior à largura, afasta-a desta tipologia, que é a das igrejas de topo plano, com três altares justapostos.

Todavia, quando, por volta de 1609, o templo ficou concluído, a solução apontava neste sentido. A demonstrá-lo existe um requerimento no Arquivo da Misericórdia, que já citámos anteriormente, no qual o provedor e demais confrades dizem ter "acabado a Casa nova da d(ita) s(anta) M(isericórd)ia & feito nella seu Altar com a prefeição / 22 / q(ue) se requere". Portanto, é possível que não tenha sido apenas por razões financeiras (como no capítulo precedente sugerimos) que se iniciou a construção da capela-mor somente em 1651, mas também por efeito de outros ventos estéticos. O novo programa, de orientação barroca, posto em prática por Manuel de Azenha, natural de Ançã, contou com as contribuições de Bartolomeu Fragoso, mestre das obras do retábulo, Domingos Alves, João Fernandes e Francisco Roiz, entalhadores, João da Mota, marceneiro, Francisco da Rosa, carpinteiro, e João Dias, "mestre". (28)

Parece-nos que a capela-mor apresenta planta quadrada. O alçado é mais baixo do que o do corpo da igreja. Sensivelmente a dois terços da altura, apresenta frisos e cornijas ressaltadas muito decoradas. Destas arranca a abóbada de canhão como a da nave, mas bastante mais rica, formando três séries de cinco quartões. O quartão do meio é dominado pela representação do escudo régio, enquadrado por cartela barroca. Na parede, do lado do Evangelho, rasga-se uma porta de acesso à sacristia, a que corresponde, do outro lado, uma porta em "trompe I'oeil", integrada em pintura do séc. XVIII.

Também o dourado do retábulo do altar-mor data de setecentos, sendo a sua construção anterior, do terceiro quartel do séc. XVII. Marques Gomes informa que, por deliberação da Mesa, de 10 de Agosto de 1653, houve a preocupação de seguir a traça do pórtico da fachada. (29) Com efeito, é ele estruturalmente idêntico ao pórtico: desenvolve-se em dois andares, numa relação de 4:3, e em três secções, definidas por colunas coríntias. O segundo plano é dominado pela representação central da Nossa Senhora da Misericórdia. Esta pintura segue o modelo das "Misericórdias" – composição simétrica, o manto da Virgem aberto por dois anjos, de um lado abrigando os nobres, do outro clero – tal como o encontramos nos retábulos em pedra da igreja da Varziela e no da igreja paroquial de Cantanhede. Esta tela é ladeada por outras duas, representando a "Anunciação" e a "Visitação". No plano inferior, o sacrário está ladeado por dois pares de telas, onde estão representados St.ª Ana e S. Raimundo (do lado do Evangelho) e St.º António e St.ª Teresa (do lado da Epístola).

A sacristia, que dá para o pátio, apresenta também abóbada de canhão, bastante mais simples e mais baixa, formada por quatro séries de cinco caixotões. As paredes são revestidas a azulejo, proveniente de Lisboa e aplicado, em 1652, pelo mestre João Roiz. (30)

É também do séc. XVII o revestimento azulejar das paredes do corpo e das partes livres do arco-cruzeiro; recentemente, completou-se o dito revestimento aplicando azulejos com o mesmo padrão na parede acima do coro alto. Nogueira Gonçalves considera que "aquilo que mais impressiona nesta igreja, a seguir à arquitectura, é o revestimento de azulejos, policromos, dos padrões do séc. XVII e de fabrico Iisbonense". (31)

Com efeito, na aplicação azulejar manifestou-se, a nível nacional, desde o começo do séc. XVII, uma intenção renovadora da própria arquitectura. José Fernandes Pereira, em artigo incluído no vol. a da História da Arte em Portugal, escreve que o azulejo se revelou "um modo de dinamizar espaços que já não correspondiam ao novo gosto em formação. Mas terá gerado, por seu turno, um discurso próprio, que progressivamente tende a impor-se". (32) A Misericórdia de Aveiro é, pois, nesta matéria, exemplo da pesquisa de um sentido novo sem alterar as estruturas edificadas, à semelhança da igreja da Misericórdia de Óbidos, da igreja da Marvila, em Santarém, da igreja de Jesus, em Setúbal, da igreja do Carmo, em Coimbra, etc..

No interior da igreja, há ainda que destacar o arco-cruzeiro, concebido como um arco do triunfo, de sugestão serliana, que teria em alguns templos nortenhos, como a igreja jesuítica dos Grilos, no Porto, solução equivalente. Na Misericórdia aveirense, desenvolve-se simples até às impostas, facilitando pois a aposição dos dois altares colaterais. Erguem-se, depois, duas pilastras jónicas, decoradas, enquadrando, por fora, o arco de volta perfeita. Estas pilastras do arco-cruzeiro suportam o entablamento geral, ritmado por quatro ressaltos misulados. Acima deste, forma-se, a meio, nicho rectangular, com uma pintura representando Cristo na Cruz, enquadrado por pilastras sobre o qual corre entablamento encimado por frontão curvo interrompido; duas urnas sobre pedestais, no seguimento das primeiras pilastras jónicas, unem-se através de finas aletas contra-curvadas ao entablamento do dito nicho.

Os altares colaterais, em pedra, acomodam--se aos espaços deixados pelo arco cruzeiro. Sobre estes, escreveu Fr. Félix Mendes dos Ramos, na sua Relação (...):

«Nos dous altares, q sómte. tem encostados a face do arco cruzeiro, com retabolos de pedra pintada, e dourada estão, no do lado do Evangelho a imagem do Snr Ecce-Homo de vulto inteira, e perfeitíssima, e no da Epistola a de Nossa Snri! da Conceição de vulto inteira, e perfeita, ambas de / 23 / baixo de vidraça, e cortina". É, pois, de crer que as imagens foram trocadas depois do séc. XVIII.

Acerca da imagem do Ecce-Homo, Pinho Queimado diz ser ela "a suspensão de nacionaes, e estrangeiros, que entendem de escultura, a qual foi traz ida de Inglaterra, e escondida aos desacatos da heresia quando lá governava Henrique VIII, que abraçou a diabólica doutrina de um frade da ordem dos Agostinhos descalços, digo dos Agostinhos calçados, que se chamam Gracianos, o qual frade se chamava Luthéro, que depois se casou segundo dizem com uma freira professa: aquella santa imagem tem servido de modelo a outras, mas ainda não foi possível imital-a: muitos milagres se lhe atribuem, e certamente não tem o reino outra similhante.»

A iluminação de toda a igreja é generosa, mas não excessiva: rasgam-se nas paredes da nave quatro janelas rectangulares, duas de cada lado, dispostas simetricamente; na parede da fachada principal, portanto, na zona do coro alto, abrem-se outras duas mais pequenas, rectangulares, pelo exterior, no pórtico da entrada. A capela-mor é iluminada graças ao óculo, funcionando como remate do retábulo principal, e às três janelas rasgadas na parede do lado da Epístola, a que correspondem, do outro lado, três janelas cegas.

Já noutros pontos deste estudo mencionámos certas semelhanças estruturais entre a igreja da Misericórdia de Aveiro e as igrejas dos Colégios da Rua da Sofia, em Coimbra. Para compreender cabalmente tal similitude, importa equacionar o facto de Aveiro ter estado dentro dos limites da diocese de Coimbra, desde os tempos de reconquista cristã até ao terceiro quartel do séc. XVIII; a nova divisão paroquial da freguesia de S. Miguel foi promovida justamente por D. Frei João Soares, bispo de Coimbra a partir de 1545, que esteve presente na última fase do Concílio de Trento. De resto, é de crer que Aveiro fora sensível à nova mentalidade, não só pela proximidade do renascimento coimbrão, como também pela presença no burgo de alguns notáveis humanistas, como Cata Ido Sículo (c. 1490) (33) e Aires Barbosa (1530-1540). (34)

Em 1536, rasgava-se, em Coimbra, uma nova artéria que, inspirada nos modelos urbanísticos renascentistas, propunha uma escala por assim dizer mais racional e uma ambiência mais arejada; referimo-nos à Rua da Sofia que, saindo de St.ª Cruz, evolui como plataforma intermédia entre a Baixa e a Alta da cidade. Foi nesta nova artéria que se implantaram os Colégios do Carmo, da Graça e de S. Pedro, integrados na reforma joanina do ensino e, em Coimbra, associados à reforma de St.ª Cruz, da iniciativa de Frei Brás de Barros. Interessa-nos, sobretudo, esclarecer a tipologia das igrejas destes colégios, de forma a avaliar as semelhanças estruturais que a igreja da Misericórdia de Aveiro manifesta.

A primeira igreja a ser finalizada foi a do Colégio da Graça, em 1555. É esta de uma só nave, com seis capelas laterais, duas das quais servem de transepto. O coro alto ocupa cerca de dois quintos da nave, sobre abóbada de canhão, formada por seis séries de oito caixotões, de pedra. A igreja apresenta abobadamento geral, de cantaria, também semi-cilíndrico, definido, até ao arco-cruzeiro, por catorze séries de oito caixotões, e na capela-mor por quatro séries de oito. É esta da mesma largura da nave e de planta quadrada.

A igreja do Colégio de Nossa Senhora do Carmo data de 1597, tendo cabido a Francisco Fernandes a direcção dos trabalhos de construção e muito provavelmente os planos da mesma. Francisco Fernandes é, como já noticiámos, um dos "candidatos" à autoria do de bucho da Misericórdia aveirense, cuja construção seria iniciada em 1600. Em 1605, a Câmara de Coimbra nomeá-lo-ia mestre das obras de pedraria da cidade, nomeação confirmada quatro anos mais tarde, por Filipe II. Ora, a igreja colegial do Carmo manifesta estrutura idêntica à do Colégio da Graça: nave única, com seis capelas nos flancos, duas em função do transepto; abobadamento geral; capela-mor com a mesma altura e a mesma largura da nave; arco-cruzeiro comportando-se como saliente. As diferenças mais notórias são: o ritmo das abóbadas, alcançado, na nave, por dezasseis séries de nove quartelas e, na capela-mor, por caixotões quadrados e rectangulares resultantes do agrupamento dos arcos aos pares; o coro alto sobre abóbada em arco abatido, segmentada em quartelas e lájeas decoradas.

Finalmente, a igreja do Colégio de S. Pedro, cuja construção principiou em 1621, apresenta "o mesmo esquema das outras igrejas dos Colégios vizinhos, mas mais pobre, concretamente no abobadamento que não atinge o nível da Graça ou do Carmo. (35)

Ora, a Misericórdia de Aveiro parece ser, como a igreja de S. Pedro, uma simplificação das outras duas igrejas colegiais da Rua da Sofia. Só que, enquanto nesta a abóbada simples indica um empobrecimento extremo conjugado com dimensões mais humildes, na igreja aveirense a inexistência das capelas nos flancos parece vir acentuar o carácter majestoso do edifício.

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NOTAS

(27) – A expressão é de Alberto Souto, por exemplo, em A Arte em Portugal, Porto, M. Abreu, 1952, p. 12.

(28) – Informações retiradas de Amaro Neves; Aveiro - História e Arte, Aveiro, ADERAV, 1984, p.40.

(29) – “Campeão das Províncias”, 3/Março/1923, n.º 6834, p. 4.

(30) – Amaro Neves, ob. Cit., p. 40.

(31)Inventário Artístico de Portugal - Distrito de Aveiro, zona sul; voI. VI; Lisboa, Tip. da E.N.P., 1959, p. 106.

(32) – Lisboa, publ. Alfa, 1986, p. 12.

(33) – O mestre italiano Cataldo Sículo, tendo vindo para Portugal por convite de D. João II, foi nomeado professor de D. Jorge, filho bastardo do Rei, e com ele veio viver para Aveiro; para esta vila, também D. João II mandou os dois filhos de Rodrigo de Sousa, para com o mestre se instruírem em Latim. Sobre este assunto, vide M. Gonçalves Cerejeira; O Renascimento em Portugal (...); Coimbra, Coimbra ed., 1975.

(34) – Aires Barbosa é exemplo de humanista, mestre de grego e de latim, professor na Universidade de Salamanca; em 1523, abandonou a cátedra salamanquina e regressou a Portugal; demorou-se pela Corte até 1530, altura em que veio para Aveiro (Esgueira), onde se instalou até à data da morte (1540). Sobre este assunto, vide M. G. Cerejeira; Ob. Cit.

(35) – Pedro Dias; "Rua da Sofia"; Mundo de Arte; 6; Coimbra, Maio de 1982, p. 33.

 

 

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