A IGREJA DA MISERICÓRDIA
DE AVEIRO
Pinho Queimado escreveu que, em todo o reino, não havia
igreja da Misericórdia a igualar, em beleza e majestade, a da vila de
Aveiro. Mais tarde, na Relação (...) das construções religiosas
aveirenses remetida ao bispado de Coimbra, Fr. Félix Mendes dos Ramos,
seu autor, refere-se-lhe nos seguintes termos: «A igreja da Mizericordia
he edificio sumptuoso de pedraria, seu tecto da mesma arqueado, e
quartejado; cuja instituição, e completo estabelecimento, que consiste
em rendas de bens imóveis, não pude saber; mas só que dão comprimento a
muitos legados, de que, dão contas ao Provedor da Comarca: está
decentemente, e com aseio paramentada com paramentos de todas as cores,
calices, patenas, galhetas, missaes, toalhas, corporaes, bolsas, e
sanguinhos; tudo perfeito.»
No conjunto edificado da Santa Casa aveirense, a igreja,
pela sua majestade essencial, ocupa posição nuclear. Vimos que, a ter-se
verificado o programa representado pelo desenho B, ela se posicionaria
no eixo do sistema das relações funcionais entre os diversos corpos. Em
qualquer dos casos, a igreja era, e é, a peça dominante nas relações da
Santa Casa com o envolvimento urbanístico. No plano religioso, chegou a
ser Sé Episcopal, de 1775 a 1822. No plano arquitectónico, a sua
presença impunha-se sobretudo graças ao concurso de dois aspectos: a "desmesurada altura",
(27) a que já nos
referimos, e o pórtico, integrado numa tipologia retabular, que
analisaremos adiante.
O exterior impressionaria pela simplicidade matemática,
porventura mais flagrante quando apreciada pela banda da Rua da
Corredoura (actual R. do Batalhão de Caçadores 10). A ordem e a
austeridade da peça, associadas a um grande sentido pragmático e de
integração no conjunto, que procurámos analisar no ponto anterior,
inscrevem-na, na nossa perspectiva, numa arquitectura chão.
Basicamente, a igreja é constituída por dois volumes
paralelipipédicos, o maior correspondendo ao corpo e o mais pequeno à
capela-mor. Em ambos, os cunhais estão trabalhados como pilastras
toscanas, sobre os quais correm cimalhas adinteladas. Sobre cada beirado
do corpo maior, a partir das esquinas, erguem-se quatro pirâmides
embasadas, num ritmo regular, quebrado, no lado esquerdo, pela presença
da sineirita. Nas duas esquinas da capela-mor, em vez de pirâmides,
existem bolas sobre plintos. Os alçados do corpo maior são rematados por
frontões triangulares com cruzes nas empenas.
No interior, a igreja apresenta uma única e ampla nave,
sem capelas laterais, com cobertura de abóbada de berço, toda em pedra
da região da Ançã, e assenta sobre o entablamento denticulado com
ressaltos sugestionando mísulas, que corre por todo o perímetro; a
abóbada, por sua vez, está dividida em onze séries de sete quartelas.
Sensivelmente a meio da nave, abrem-se duas portas,
iguais e muito bem lavradas, das quais,
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a do lado do Evangelho dá acesso ao pátio. Exteriormente, estas portas
são enquadradas por pilastras de feição dórica, sobre as quais assenta
um entablamento decorado com métopas e triglifos, encimado por frontão
curvo, de tímpano liso.
A igreja apresenta coro alto, sobre abóbada de
asa-de-cesto. arrancando de cornija saliente que coroa um entablamento
ritmado em três vãos, apoiado por mísulas. A dita abóbada é dividida em
duas séries de sete quartelas. O coro é superiormente definido por
elegante balaustrada ritmada em cinco séries de quatro balaústres de
vulto pleno ladeados por dois adossados. Liga-se à Casa do Despacho
graças à serventia do pátio, a que antes nos referimos.
Estes aspectos permitem inscrevê-la na tipologia das
igrejas das Misericórdias nacionais.
Por outro lado, a solução da capela-mor, com profundidade
ligeiramente superior à largura, afasta-a desta tipologia, que é a das
igrejas de topo plano, com três altares justapostos.
Todavia, quando, por volta de 1609, o templo ficou
concluído, a solução apontava neste sentido. A demonstrá-lo existe um
requerimento no Arquivo da Misericórdia, que já citámos anteriormente,
no qual o provedor e demais confrades dizem ter "acabado a Casa nova da
d(ita) s(anta) M(isericórd)ia & feito nella seu Altar com a prefeição
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q(ue) se requere". Portanto, é possível que não tenha sido apenas por
razões financeiras (como no capítulo precedente sugerimos) que se
iniciou a construção da capela-mor somente em 1651, mas também por
efeito de outros ventos estéticos.
O novo programa, de orientação
barroca, posto em prática por Manuel de Azenha, natural de Ançã, contou
com as contribuições de Bartolomeu Fragoso, mestre das obras do
retábulo, Domingos Alves, João Fernandes e Francisco Roiz,
entalhadores,
João da Mota, marceneiro, Francisco da Rosa, carpinteiro, e João Dias,
"mestre".
(28)
Parece-nos que a capela-mor apresenta planta quadrada. O
alçado é mais baixo do que o do corpo da igreja. Sensivelmente a dois
terços da altura, apresenta frisos e cornijas ressaltadas muito
decoradas. Destas arranca a abóbada de canhão como a da nave, mas
bastante mais rica, formando três séries de cinco quartões. O quartão do
meio é dominado pela representação do escudo régio, enquadrado por
cartela barroca. Na parede, do lado do Evangelho, rasga-se uma porta de
acesso à sacristia, a que corresponde, do outro lado, uma porta em "trompe
I'oeil", integrada em pintura do séc. XVIII.
Também o dourado do retábulo do altar-mor data de
setecentos, sendo a sua construção anterior, do terceiro quartel do séc.
XVII. Marques Gomes informa que, por deliberação da Mesa, de 10 de
Agosto de 1653, houve a preocupação de seguir a traça do pórtico da
fachada. (29) Com efeito, é ele estruturalmente idêntico ao
pórtico: desenvolve-se em dois andares, numa relação de 4:3, e em três
secções, definidas por colunas coríntias. O segundo plano é dominado
pela representação central da Nossa Senhora da Misericórdia. Esta
pintura segue o modelo das "Misericórdias" – composição simétrica, o
manto da Virgem aberto por dois anjos, de um lado abrigando os nobres,
do outro clero – tal como o encontramos nos retábulos em pedra da igreja
da Varziela e no da igreja paroquial de Cantanhede. Esta tela é ladeada
por outras duas, representando a "Anunciação" e a "Visitação". No plano
inferior, o sacrário está ladeado por dois pares de telas, onde estão
representados St.ª Ana e S. Raimundo (do lado do Evangelho) e St.º
António e St.ª Teresa (do lado da Epístola).
A sacristia, que dá para o pátio, apresenta também
abóbada de canhão, bastante mais simples e mais baixa, formada por
quatro séries de cinco caixotões. As paredes são revestidas a azulejo,
proveniente de Lisboa e aplicado, em 1652, pelo mestre João Roiz.
(30)
É também do séc. XVII o revestimento azulejar das paredes
do corpo e das partes livres do arco-cruzeiro; recentemente,
completou-se o dito revestimento aplicando azulejos com o mesmo padrão
na parede acima do coro alto. Nogueira Gonçalves considera que "aquilo
que mais impressiona nesta igreja, a seguir à arquitectura,
é o
revestimento de azulejos, policromos, dos padrões do séc. XVII e de
fabrico Iisbonense".
(31)
Com efeito, na aplicação azulejar manifestou-se, a nível
nacional, desde o começo do séc. XVII, uma intenção renovadora da
própria arquitectura. José Fernandes Pereira, em artigo incluído no vol.
a da História da Arte em Portugal, escreve que o azulejo
se revelou "um modo de dinamizar espaços que já não correspondiam ao
novo gosto em formação. Mas terá gerado, por seu turno,
um discurso
próprio, que progressivamente tende a impor-se".
(32) A
Misericórdia de Aveiro é, pois, nesta matéria, exemplo da pesquisa de um
sentido novo sem alterar as estruturas edificadas, à semelhança da
igreja da Misericórdia de Óbidos, da igreja da Marvila, em Santarém, da
igreja de Jesus, em Setúbal, da igreja do Carmo, em Coimbra, etc..
No interior da igreja, há ainda que destacar o
arco-cruzeiro, concebido como um arco do triunfo, de sugestão serliana,
que teria em alguns templos nortenhos, como a igreja jesuítica dos
Grilos, no Porto, solução equivalente. Na Misericórdia aveirense,
desenvolve-se simples até às impostas, facilitando pois a aposição dos
dois altares colaterais. Erguem-se, depois, duas pilastras jónicas,
decoradas, enquadrando, por fora, o arco de volta perfeita. Estas
pilastras do arco-cruzeiro suportam o entablamento geral, ritmado por
quatro ressaltos misulados. Acima deste, forma-se, a meio, nicho
rectangular, com uma pintura representando Cristo na Cruz, enquadrado
por pilastras sobre o qual corre entablamento encimado por frontão curvo
interrompido; duas urnas sobre pedestais, no seguimento das primeiras
pilastras jónicas, unem-se através de finas aletas contra-curvadas ao
entablamento do dito nicho.
Os altares colaterais, em pedra, acomodam--se aos espaços
deixados pelo arco cruzeiro. Sobre estes, escreveu Fr. Félix Mendes dos
Ramos, na sua Relação (...):
«Nos dous altares, q sómte. tem encostados a face do arco
cruzeiro, com retabolos de pedra pintada, e dourada estão, no do lado do
Evangelho a imagem do Snr Ecce-Homo de vulto inteira, e perfeitíssima, e
no da Epistola a de Nossa Snri! da Conceição de vulto inteira, e
perfeita, ambas de
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baixo de vidraça, e cortina". É, pois, de crer que as imagens foram
trocadas depois do séc. XVIII.
Acerca da imagem do Ecce-Homo, Pinho Queimado diz ser ela
"a suspensão de nacionaes, e estrangeiros, que entendem de escultura, a
qual foi traz ida de Inglaterra, e escondida aos desacatos da heresia
quando lá governava Henrique VIII, que abraçou a diabólica doutrina de
um frade da ordem dos Agostinhos descalços, digo dos Agostinhos
calçados, que se chamam Gracianos, o qual frade se chamava Luthéro, que
depois se casou segundo dizem com uma freira professa: aquella santa
imagem tem servido de modelo a outras, mas ainda não foi possível
imital-a: muitos milagres se lhe atribuem, e certamente não tem o reino
outra similhante.»
A iluminação de toda a igreja é generosa, mas não
excessiva: rasgam-se nas paredes da nave quatro janelas rectangulares,
duas de cada lado, dispostas simetricamente; na parede da fachada
principal, portanto, na zona do coro alto, abrem-se outras duas mais
pequenas, rectangulares, pelo exterior, no pórtico da entrada. A
capela-mor é iluminada graças ao óculo, funcionando como remate do
retábulo principal, e às três janelas rasgadas na parede do lado da
Epístola, a que correspondem, do outro lado, três janelas cegas.
Já noutros pontos deste estudo mencionámos certas
semelhanças estruturais entre a igreja da Misericórdia de Aveiro e as
igrejas dos Colégios da Rua da Sofia, em Coimbra. Para compreender
cabalmente tal similitude, importa equacionar o facto de Aveiro ter
estado dentro dos limites da diocese de Coimbra, desde os tempos de
reconquista cristã até ao terceiro quartel do séc. XVIII; a nova divisão
paroquial da freguesia de S. Miguel foi promovida justamente por D. Frei
João Soares, bispo de Coimbra a partir de 1545, que esteve presente na
última fase do Concílio de Trento. De resto, é de crer que Aveiro fora
sensível à nova mentalidade, não só pela proximidade do renascimento
coimbrão, como também pela presença no burgo de alguns notáveis
humanistas, como Cata Ido Sículo (c. 1490) (33) e Aires Barbosa
(1530-1540).
(34)
Em 1536, rasgava-se, em Coimbra, uma nova artéria que,
inspirada nos modelos urbanísticos renascentistas, propunha uma escala
por assim dizer mais racional e uma ambiência mais arejada; referimo-nos
à Rua da Sofia que, saindo de St.ª Cruz, evolui como plataforma
intermédia entre a Baixa e a Alta da cidade. Foi nesta nova artéria que
se implantaram os Colégios do Carmo, da Graça e de S. Pedro, integrados
na reforma joanina do ensino e, em Coimbra, associados à reforma de St.ª
Cruz, da iniciativa de Frei Brás de Barros. Interessa-nos, sobretudo,
esclarecer a tipologia das igrejas destes colégios, de forma a avaliar
as semelhanças estruturais que a igreja da Misericórdia de Aveiro
manifesta.
A primeira igreja a ser finalizada foi a do Colégio da
Graça, em 1555. É esta de uma só nave, com seis capelas laterais, duas
das quais servem de transepto. O coro alto ocupa cerca de dois quintos
da nave, sobre abóbada de canhão, formada por seis séries de oito
caixotões, de pedra. A igreja apresenta abobadamento geral, de cantaria,
também semi-cilíndrico, definido, até ao arco-cruzeiro, por catorze
séries de oito caixotões, e na capela-mor por quatro séries de oito. É
esta da mesma largura da nave e de planta quadrada.
A igreja do Colégio de Nossa Senhora do Carmo data de
1597, tendo cabido a Francisco Fernandes a direcção dos trabalhos de
construção e muito provavelmente os planos da mesma. Francisco Fernandes
é, como já noticiámos, um dos "candidatos" à autoria do de bucho da
Misericórdia aveirense, cuja construção seria iniciada em 1600. Em 1605,
a Câmara de Coimbra nomeá-lo-ia mestre das obras de pedraria da cidade,
nomeação confirmada quatro anos mais tarde, por Filipe II. Ora, a igreja
colegial do Carmo manifesta estrutura idêntica à do Colégio da Graça:
nave única, com seis capelas nos flancos, duas em função do transepto;
abobadamento geral; capela-mor com a mesma altura e a mesma largura da
nave; arco-cruzeiro comportando-se como saliente. As diferenças mais
notórias são: o ritmo das abóbadas, alcançado, na nave, por dezasseis
séries de nove quartelas e, na capela-mor, por caixotões quadrados e
rectangulares resultantes do agrupamento dos arcos aos pares; o coro
alto sobre abóbada em arco abatido, segmentada em quartelas e lájeas
decoradas.
Finalmente, a igreja do Colégio de S. Pedro, cuja
construção principiou em 1621, apresenta "o mesmo esquema das outras
igrejas dos Colégios vizinhos, mas mais pobre, concretamente no
abobadamento que não atinge o nível da Graça ou do Carmo.
(35)
Ora, a Misericórdia de Aveiro parece ser, como a igreja de S. Pedro, uma
simplificação das outras duas igrejas colegiais da Rua da Sofia. Só que,
enquanto nesta a abóbada simples indica um empobrecimento extremo
conjugado com dimensões mais humildes, na igreja aveirense a
inexistência das capelas nos flancos parece vir acentuar o carácter
majestoso do edifício.
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NOTAS
(27)
– A expressão é de Alberto Souto, por exemplo, em A Arte em Portugal,
Porto, M. Abreu, 1952, p. 12.
(28)
– Informações retiradas de Amaro Neves; Aveiro - História e Arte,
Aveiro, ADERAV, 1984, p.40.
(29)
– “Campeão das Províncias”, 3/Março/1923, n.º 6834, p. 4.
(30)
– Amaro Neves, ob. Cit., p. 40.
(31)
– Inventário Artístico de Portugal - Distrito de Aveiro, zona
sul; voI. VI; Lisboa, Tip. da E.N.P., 1959, p. 106.
(32)
– Lisboa, publ. Alfa, 1986, p. 12.
(33)
– O mestre italiano Cataldo Sículo, tendo vindo para Portugal por
convite de D. João II, foi nomeado professor de D. Jorge, filho bastardo
do Rei, e com ele veio viver para Aveiro; para esta vila, também D. João
II mandou os dois filhos de Rodrigo de Sousa, para com o mestre se
instruírem em Latim. Sobre este assunto, vide M. Gonçalves Cerejeira;
O Renascimento em Portugal (...); Coimbra, Coimbra ed., 1975.
(34)
– Aires Barbosa é exemplo de humanista, mestre de grego e de latim,
professor na Universidade de Salamanca; em 1523, abandonou a cátedra
salamanquina e regressou a Portugal; demorou-se pela Corte até 1530,
altura em que veio para Aveiro (Esgueira), onde se instalou até à data
da morte (1540). Sobre este assunto, vide M. G. Cerejeira; Ob. Cit.
(35)
– Pedro Dias; "Rua da Sofia"; Mundo de Arte; 6; Coimbra, Maio de 1982,
p. 33.
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