A Santa Casa da Misericórdia
de Aveiro
Daniel Tércio Ramos
Guimarães
NOTA PRÉVIA
A Santa Casa da Misericórdia de Aveiro constitui a
matéria de reflexão do presente estudo, levado a cabo durante o ano de
1990 no âmbito de uma das disciplinas curriculares do curso de Mestrado
em História da Arte na Universidade Nova de Lisboa.
É o edifício da igreja referência obrigatória nos
roteiros artísticos aveirenses, juntamente com o mosteiro de Jesus, a
igreja de S. Domingos, actual Sé, o conjunto formado pela igreja de S.
Francisco e pela igreja do convento de Santo António, os edifícios que
restam do convento das carmelitas descalças, a igreja do convento do
Carmo e um grupo de interessantes templos poligonais (S. Gonçalo, Nossa
Senhora das Areias, Nosso Senhor da Barrocas, etc.). Assim, a
investigação actual sobre esta matéria tem a facilitá-la a existência de
estudos já concluídos que fornecem ideias definidas. A este respeito, há
que destacar a obra monumental Inventário Artístico de Portugal, cujo
vol. VI, dirigido pelo Padre Nogueira Gonçalves, é justamente dedicado
ao património edificado em Aveiro.
Em comparação com aquilo que sobre a matéria está
publicado, procurámos explorar, com a inestimável orientação do Prof.
Horta Correia, novas abordagens, a saber:
– "ampliação" da problemática da igreja para a
problemática de toda a casa;
– entendimento da Misericórdia na sua implantação e
envolvimento urbanístico;
– comparação das soluções aveirenses com soluções noutros
pontos do país, nomeadamente em Coimbra.
Três vias que se nos afiguram indispensáveis para
alcançar aquele grau de originalidade obrigatório numa monografia de
História da Arte.
Três vias que, no entanto, não desenvolvemos por igual
até ao mesmo ponto e que, portanto, no seu conjunto, ficam por
completar.
Por completar fica também uma pesquisa demorada ao
arquivo da Santa Casa, onde só tivemos ocasião de consultar um dos nove
livros de obras (n.º 356 do cat.), uma pasta contendo cartas, sentenças
e provisões datadas entre 1533 e 1865 (n.º 264 do cat.), e uma outra de
correspondência trocada com as diversas. Misericórdias do Reino entre
1603 e 1645 (n.º 262 do cat).
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Usámos ao longo do presente trabalho alguns dos documentos compulsados,
mesmo quando incompletamente decifrados.
Tivemos também a preocupação de encontrar um equilíbrio
entre a imagem e o texto, na convicção de que as imagens podem
funcionar, elas próprias, como propostas de leitura e análise dos
objectos de arte.
Nesta matéria, tivemos o privilégio de ter acesso a uma
colecção fotográfica (col. Tércio Guimarães), em parte inédita, onde
encontrámos elementos preciosos para o estudo do desenvolvimento
urbanístico de Aveiro.
Quanto aos edifícios da Misericórdia, procurámos colmatar
a inexistência de plantas e alçados rabiscando alguns desenhos, também
incluídos no presente estudo.
INTRODUÇÃO
Quem entra em Aveiro pela banda de oeste, vê o recorte da
cidade espraiando-se para lá dos montes brancos do sal.
É ainda uma cidade plana, de luz.
No perfil urbano, se nos abstrairmos daqueles corpos
estranhos que se enquistaram recentemente no corpo da cidade, podemos
vislumbrar as cruzes que rematam os frontões triangulares das fachadas
anterior e posterior da igreja da Misericórdia. Assim, entrevemos a
importância que ela teve no passado, naquele tempo, não muito recuado,
em que a cidade ainda não se perdia em ânsias de altura.
Até há poucos anos, a presença tranquila da igreja da
Misericórdia acima do horizonte urbano funcionaria, por assim dizer,
como um farol, simultaneamente nas suas dimensões temporal e espiritual.
Ora, esta presença assumiria – podemos adivinhá-lo – um efeito ordenador
na experiência da urbe.
Como é que a Santa Casa da Misericórdia de Aveiro se
implantou na malha urbana?, qual o seu grau de "visibilidade"?,(1)
como é que esse grau evoluiu?, são questões que permitem delinear uma
problemática urbanística. Neste ponto, parece-nos especialmente
interessante abordar o desenvolvimento da actual Praça da República,
enquanto espaço de implantação dos edifícios da Misericórdia. Que
relações se foram desenhando entre estes edifícios e outros edifícios
notáveis da praça, nomeadamente, o edifício da Câmara Municipal e a
demolida igreja de S. Miguel? Como é que o conjunto edificado da
Misericórdia interveio na definição da própria praça?
É também no domínio da articulação de espaços e de
volumes que se levanta o estudo dos diversos edifícios da Santa Casa. O
observador comum, situado na Praça da República, será naturalmente
atraído pelo corpo da igreja, em cuja fachada se destaca o pórtico. Para
a sua compreensão formal e funcional, é, no entanto, imprescindível
esclarecer o lugar que o referido corpo ocupa em toda a fábrica.
De bastante interesse se nos afiguram, neste ponto, o
pátio Interior, sugestionando edifício conventual, a casa do despacho,
muito recentemente restaurada, e o edifício adossado a sul, possível
lugar do desaparecido hospital.
O conjunto edificado transmite, no seu despojamento
decorativo, um rigor matemático de formas, onde se adivinha uma cultura
arquitectónica, de pendor renascentista. Clareza, ordem, proporção e
simplicidade, características reconhecidamente presentes no conjunto
edificado da Santa Casa aveirense, constituem, afinal, traços
delineadores de um "estilo chão".
Simultaneamente, a igreja relaciona-se, de modo muito
claro, com as igrejas colegiais da Rua da Sofia, em Coimbra. A
organização do espaço interior numa nave única, a abóbada semi-circular,
de cantaria, composta por séries de caixotões, o próprio sistema de
implantação do coro alto, permite situar a "nossa" igreja na mesma
família de formas a que pertencem as coimbrãs igreja do Colégio de Nossa
Senhora da Graça e igreja do Colégio de Nossa Senhora do Carmo.
O Padre Nogueira Gonçalves é peremptório nesta filiação
ao considerar que na estrutura, composição, elementos e perfis a
Misericórdia aveirense lembra as igrejas colegiais da Sofia "a que se
tivessem suprimido as capelas da nave e reduzido aos elementos
essenciais". (2) A própria autoria da fábrica aveirense,
resolve-a Nogueira Gonçalves a favor de Francisco Fernandes, mestre de
obras da cidade de Coimbra, também autor dos planos e construtor da
igreja do Carmo. Quanto ao portal, considera-o "exemplar coimbrão da
última renascença, já de influência clássica, pela adopção das fórmulas
dos arcos triunfais da antiguidade".
(3)
O portal levanta justamente problemas muito
interessantes, quer no domínio do seu impacto sobre a praça, quer no
domínio da relação com os espaços interiores, nomeadamente com o arco
cruzeiro e com o altar-mor, quer finalmente na sua morfologia
intrínseca. Para o tratamento destas questões, partimos do seguinte
postulado: a solução do portal vai no sentido da construção de um
retábulo frontispicial que, antecipando, por assim dizer, a fronteira
entre o sagrado e o profano, acentua a possibilidade de franquear essa
linha divisória.
Interessa, também, neste ponto, esclarecer e enquadrar
esta solução no sistema, de arquitectura retabular, a uma escala
regional e nacional. Nomeadamente, importa determinar o grau de
originalidade que a opção da Misericórdia aveirense patenteia.
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A completar esta teia de problemas, coloca-se
obrigatoriamente o da autoria da traça original da igreja, questão que
tem feito correr alguma tinta, gerando respostas contrárias. Não nos
atrevemos, no presente estudo, a uma resposta conclusiva, se é que a há,
nesta matéria. Entre a hipótese de autoria de Filipe Terzi e a de
autoria de Francisco Fernandes, inclinamo-nos para esta última,
justamente pela filiação que a aveirense manifesta relativamente às
igrejas colegiais coimbrãs. Por outro lado, atrevemo-nos a ampliar o
problema, acrescentando ao rol de arquitectos "candidatos" à referida
autoria o nome de Gregório Lourenço, até à data reconhecido apenas como
mestre de obras de pedraria, vindo da cidade do Porto para trabalhar em
Aveiro.
DO LARGO DE S. MIGUEL À PRAÇA DA REPÚBLICA
No início do séc. XV, o primeiro sinal de transformação
de Aveiro é também índice da importância crescente da vila; trata-se da
construção da muralha, iniciada por impulso de D. João I, em data
anterior a 1513 (4) e mandada continuar pelo Infante D. Pedro, a
quem coube o senhorio de Aveiro. No final do século, é possível que a
cerca estivesse concluída, formando um hexágono irregular, no qual se
abriam oito portas e quatro postigos. A primeira porta, chamada da Vila,
posicionava-se a meio do lado sudeste; sobre o mesmo lado, abriam-se, a
poente, a Porta do Sol e a porta do Campo, e a nascente a porta de
Vagos.
Sobre os lanços da muralha virados a norte, ficavam os
postigos, apenas para serventia de peões. Ainda a norte, mas junto do
canal, duas portas, a do Côjo e a da Ribeira, sendo esta a mais
importante, por permitir a ligação com os bairros piscatórios do outro
lado do canal. Finalmente, no lanço de oeste, ficavam a porta do Alboi e
a de Rabães.
A cerca, que protegia a parte mais nobre da vila,
antecipava também o crescimento urbano, incluindo áreas menos povoadas,
situadas a sul e sudeste. Seria, justamente, em terrenos nas imediações
do lanço sudeste da muralha, da banda de dentro, que viria a ser
edificado o convento dos frades de S. Domingos, fundado pelo Infante D.
Pedro, em 1423. Defronte, igualmente no interior da muralha, ficaria
instalado o Real Mosteiro de Jesus das religiosas dominicanas
–
1461, é a data da bula papal autorizando a respectiva fundação aonde se
recolheria, a partir de 1472, a Princesa D. Joana.
Mais próximo da ribeira, em ambas as margens,
concentrava-se o maior número de fogos: na parte noroeste, a partir das
marinhas de sal, habitavam os marnotos, pescadores e mareantes,
associados na Confraria de Santa Maria de Sá, legalmente constituída em
meados do séc. XV; do outro lado do canal, vencida a ligeira encosta que
subia da porta da Ribeira, ficava a enorme e vetusta igreja de S.
Miguel, verdadeiro coração do burgo muralhado.
Seria nas proximidades desta, com portal para o adro de
S. Miguel, que se viria a construir, nos começos de seiscentos, a igreja
e demais dependências da Santa Casa da Misericórdia. Nas circunstâncias
da instalação desta, há pois que equacionar a presença "forte" da outra,
mais antiga, que era matriz da vila.
Não há notícia segura sobre a data da antiguidade da
igreja de S. Miguel, nem é já possível chegar a conclusões a partir da
análise do edifício, já que foi este demolido no segundo quartel do séc.
XIX. As informações que Cristóvão Pinho Queimado redigiu em 1687, sob o
título de Memória sobre a vila de Aveiro, bem como a "Relação"
das construções religiosas escrita por Fr. Félix Mendes dos Ramos no
terceiro quartel do séc. XVIII, referem-se-lhe minuciosamente, sem
todavia adiantar a data da fundação. Em duas vistas de Aveiro, ambas do
séc. XVIII, actualmente expostas no Museu local, surge nitidamente a
representação (parcial) desta nas imediações da igreja da
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Misericórdia; ou, preferível seria dizer o contrário, isto é, que a
Misericórdia surge nas imediações da igreja de S. Miguel, já que é esta
anterior àquela seguramente em mais do que um século. A partir das
referidas fontes escritas e destes elementos iconográficos podemos
conceber com alguma nitidez a velha e demolida igreja matriz da vila,
que era "colegiada com Vigário, e cinco beneficiados; hum Thezoureiro,
providos todos pela Mesa da Consciência, e Ordens" (Relação...
de Mendes dos Ramos).
Quanto ao edifício, era ele "grande, sem naves, de pedra,
e cal; o tecto com forma arqueada divididos em quadros pintados de ramos
azuis em madeira" (Relação...).
A capela-mor, pequena, de pedra e cal, com abóbada de
tijolo, apresentava quatro capelas de forma arqueada, imbuídas na parede
do fundo; tinha ainda uma capela do lado do Evangelho a que respondia,
do lado da Epístola, a escada para o coro. Adossadas à capela-mor, por
lados opostos, ficavam duas sacristias. O frontispício do arco cruzeiro
era revestido de "azulejo antigo" com "hum painel de S. Miguel com
moldura dourada colocado no meio" (Relação...). Dois
altares colaterais, respectivamente do Santíssimo Sacramento, do lado do
Evangelho, e de Nossa Senhora da Graça, do lado da Epístola, completavam
a zona da cabeceira.
Ao longo da nave abria-se um conjunto de capelas «muito
antigas e redondas entre as quaes a de S. Braz, que possue D. Thomaz de
Noronha a de S. Vicente que pertence aos Pinhos, e de outros morgados;
tem muitos túmulos, entre os quaes sobresae os dos morgados de Balacó
que estão na sua antiga capela de arquitectura gothica do lado do
evangelho. Tem esta egreja muitas inscripções gothicas, e duas
inscripções de letras arábicas, uma das quaes está à entrada da porta
lateral por onde se entra pelo lado do sul, todas esculpidas em pedra, e
varias sepulturas muito antigas com armas, e inscripções de famílias
nobilíssimas» (Memória sobre Aveiro de Pinho Queimado). Frei
Félix Mendes dos Ramos descreve-as pormenorizadamente na citada Relação,
embora sem atender especialmente às respectivas características
arquitectónicas.
Um dos elementos mais curiosos do edifício era a torre,
adossada à zona da cabeceira, do lado do Evangelho. Frei Mendes dos
Ramos descreve a como «hua torre arruinada com relógio, trez sinos, e
hua garrida.» (Relação...). Nas vistas de Aveiro, que
atrás referimos, é ela claramente visível, apresentando varandim ameado
e uma cobertura em pirâmide bastante aguda, certamente mais recente do
que a própria torre.
Funcionava como um autêntico farol do burgo, cuja altura
almejava vencer a extensa planície por onde corriam os esteiras e as
marinhas.
Ora, a implantação próxima da igreja da Misericórdia,
perfeitamente visível nas gravuras, ia no sentido de ombrear, em altura,
com a matriz da vila. Interpretando com alguma liberdade esta relação,
podemos afirmar que era o diálogo entre o novo, representado pela
arquitectura da Santa Casa e o velho, representado pela arcaica igreja
de S. Miguel, que, a partir do séc. XVII, se projectava no espaço da
planície. Quando em 12 de Abril de 1840, a Câmara Municipal arrematou a
obra de demolição da vetusta igreja e consequente rectificação do Largo
Municipal, o gesto, que estava obviamente marcado pelos decretos da
década de trinta, simbolizava também a opção de preservar o novo e
enterrar o velho, (5) encerrando definitivamente o diálogo de que falamos.
Mas, voltemos atrás, a finais do séc. XV. A relação entre
a Misericórdia e a matriz da vila começa no facto de a Confraria da
Misericórdia de Aveiro (fundada por volta de 1499) ter estado instalada,
praticamente durante um século, na capela de St.º Ildefonso que,
juntamente com a capela de Santa Catarina, estava erguida no adro da
igreja de S. Miguel, "ambas com porta para ella" (Relação...).
A capela a St.º Ildefonso era edifício «de pedra, e cal, o tecto de
madeira de forma arqueada» (Relação...), não existindo
elementos seguros sobre a sua fundação e instituição.
Aberta para o adro, no lugar do actual Liceu, portanto
igualmente em estreita relação com a igreja matriz, ficava a albergaria
de S. Brás. Fora esta fundada, em 1457, por Fernando Brás de Agomide,
contador-mor de D. Duarte e de D. Afonso V,
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possuindo seis camas e dando medicamentos.
(6) Sobre esta, escreveria Pinho
Queimado: «Tem annexa e vizinha da egreja huma albergaria muito boa, em
que todo o peregrino por três dias se hospeda» (Memória...).
Parece-nos que o largo da igreja de S. Miguel constituiu,
pois, já desde o séc. XVI, a matriz ordenadora do urbanismo da vila de
Aveiro. Especialmente significativa é a posição do largo no principal
eixo de circulação a atravessar a área muralhada do burgo, constituído
pela "Rua Direita" e pela "Rua da Costeira", que uniam a "Porta da Vila"
à "Porta da Ribeira"; ora, o largo de S. Miguel situava-se (e situa-se)
justamente no fim de uma das ruas e no princípio da outra.
O crescimento populacional da povoação, relacionado com
as condições transitoriamente
(7) favoráveis de navegabilidade na
zona da barra e nos canais da laguna, obrigaria à divisão da única
freguesia em quatro freguesias: a de S. Miguel (que conservava, pois, o
nome da primitiva), a do Espírito Santo; a de Nossa Senhora das Candeias
(depois, de S. Gonçalo) e a da Vera-Cruz,
(8) isto em 1572, sob
impulso do Bispo de Coimbra, D. João Soares.
Em, 8 de Agosto de 1599, o provedor da Santa Casa da
Misericórdia de Aveiro, Pedro de Tavares, recebeu de Filipe II um
subsídio proveniente dos crescimentos da renda das entradas desta vila,
para ajudar à edificação de uma nova casa.
(9) Um ano depois,
iniciou-se a construção. Enriquecia-se, assim, o largo de S. Miguel com
um edifício de arquitectura nova, cujo grau de inovação seria acentuado,
em meados do séc. XVII, com a aposição do portal que hoje lhe
conhecemos.
O passo seguinte na transformação urbanística deste
espaço aconteceu nos finais do séc. XVIII, com a construção de nova Casa
da Câmara e cadeia no flanco sudoeste do adro de S. Miguel. Aveiro fora
elevada a cidade, em 1759, na sequência da condenação do duque, D. José
de Mascarenhas, implicado no atentado régio; ora, reunida a população e
os diversos poderes instituídos na igreja de S. Miguel, em 6 de Janeiro
de 59, «depuseram um protesto solene contra aquele atentado, declarando
que não queriam que esta povoação continuasse sob a tutela de donatários
mas que desejavam que ficasse imediatamente sob o governo de D. José I,
a quem prestaram juramento de fidelidade.»
(10) O novo edifício
dos Paços do Concelho, concluído em 1797, viria assim coroar, da melhor
maneira, esta promoção. A frontaria do edifício desenvolve-se em 3
planos, divididos em 5 sectores por pilastras de feição toscana.
Destaca-se, sobre o plano superior, a torre. O piso térreo funcionava,
primitivamente, como cadeia, podendo os presos assistir aos ofícios
divinos na capela defronte, situada no extremo sul do adro de S. Miguel.
Na Relação..., Frei Félix Mendes dos Ramos refere-se a
esta capela nos seguintes termos:
«A capela de S. António dos Prezos cita de fronte da
cadeia desta cidade, no adro da Paróquia he dedicada ao mesmo Sancto:
não consta da sua instituição; he de pedra e calo tecto de abobeda
arqueada com porta da mesma largura, e altura pª poderem os prezos ouvir
missa todos os domingos, e dias sanctos, e esta de esmola de cento e
vinte reis, que por obrigação manda dizer a confraria do Santíssimo
Sacramento da freguesia d'Presentação desta cidade, pª o que tem hu
legado importo na dita Confraria, que satisfaz esta obrigação.»
No seu conjunto, o largo de S. Miguel não foi certamente
até ao séc. XIX a praça desafogada que hoje conhecemos.
Como já referimos, este espaço, por assim dizer, ainda
atravancado, seria transformado numa moderna Praça, no segundo quartel
do séc. XIX. Transformação alcançada à custa da demolição da igreja de
S. Miguel e da capela de Santo António, como consta na condição primeira
do auto de arrematação da obra:
«O arrematante receberá toda pedra extraída das ruínas do
edifício demolido e bem assim da capela de Santo António, excepto o
cruzeiro e a pedra que se acha à porta do teatro.»
Ficou ainda encarregado o arrematante, na circunstância,
o aveirense Simeão Ribeiro de Paula, de reparar «ruínas de muros,
guardas, escadas e diferença de nivelamento.» (Auto de arrematação...),
bem como obrigado a proceder à transladação das ossadas para o novo
cemitério.
Também em meados do século passado, dois novos edifícios,
alinhados, estabeleciam definitivamente o limite poente da Praça:
trata-se do edifício do Liceu, mandado construir em 1855 e concluído em
1860, e o Teatro Aveirense, cuja
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construção principiou em 1857. Já mais próximo do fim do séc. XIX, a
estátua de José Estêvão era colocada no exacto local da desaparecida
igreja de S. Miguel.
A última grande transformação operada na Praça da
República teve lugar em consequência do novo plano director da cidade,
implementado a partir dos anos sessenta deste século. Na prática, foram
demolidos um conjunto de prédios a norte e noroeste, de modo a abrir ao
canal central um espaço, até então contido. A opção, que nos parece
interessante, sobretudo no sistema de terraços sugestionando varandas
sobre a ria, é menos agradável na arquitectura do edifício do turismo
que fecha (ou melhor, que deixa de fechar) a Praça, a norte.
Vimos, pois, como é que as novas instalações da Santa
Casa foram implantadas neste espaço. Podemos ainda acrescentar que as
inevitáveis transformações que o antigo largo de S. Miguel foi sofrendo
até chegar à actual Praça da República, transformações de que fizemos
rápida resenha, não afectaram a qualidade arquitectónica da
Misericórdia. Há, naturalmente, variações do impacto visual de uma peça
como o pórtico da igreja. A sua leitura altera-se consoante, por
exemplo, a possibilidade de recuo do observador. É possível que, no
antigo largo, a fachada da Misericórdia parecesse mais
surpreendentemente imponente; hoje, a possibilidade de a olhar
desafogadamente de pontos mais longínquos, combinada com a nova escala
da Praça, fazem-na "ganhar" tranquilidade visual.
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NOTAS
(1) – Utilizamos o conceito de "visibilidade", tal como
ele é exposto por Kevin Lynch na obra L'image de la Cité (trad. do
Inglês) Paris, Ounod, 1976.
(2)
– Inventário Artístico de Portugal, Distrito de
Aveiro – zona sul; vol. VI; Lisboa, impr. na tip. da E.N.P.; 1959; p.
103.
(3) – ldem; p.105.
(4) – Maria João Marques da Silva veio trazer novos e
preciosos dados sobre, entre outros assuntos, a muralha de Aveiro, na
obra Aveiro Medieval; Aveiro, C.M.A., 1991.
(5) – Consideramos que existem três momentos na história
de Aveiro em que a opção moderna é claramente dominante. O primeiro leve
lugar em 1840 e resultou, como referimos, na demolição da Igreja de S.
Miguel; os dois outros tiveram lugar no início do séc. XX: a amputação
de parte do claustro e da igreja das Carmelitas Descalças, para a
abertura da Praça Marquês de Pombal, e a abertura da Avenida Central
(Av. Dr. Lourenço Peixinho) com a imprescindível Correcção de canais.
(6) – Vida, por exemplo, A. Nogueira Gonçalves;
Inventário Artístico de Portugal (...); p. 102.
(7) – A relação entre a barra e as condições de vida da
população aveirense tem sido destacada por diversos autores como Amorim
Girão, António Nascimento Leitão, Luís S. Lucci, Padre João Gonçalves
Gaspar, etc.. No passado, o problema principal residia na necessária
fixação da barra, de forma a evitar o seu fechamento por acção do
assoreamento. Este problema é já referido por Pinho Queimado na Memória
da Vila de Aveiro.
(8) – Em 1835, a freguesia de S. Miguel e a do Espírito
Santo seriam aglutinadas na actual freguesia de Nossa Senhora da Glória;
as duas restantes ficariam na actual freguesia da Vera-Cruz.
(9) – "Resebeo o provedor Pe(dro) de Tavares em houtes de
Aguosto de noventa e nove quatro mil cruzados dos cresim(en)tos da renda
das entradas desta villa de Av(eiro), e de q(ue) EIRey fez merce a
Misericordia, p(ara) eleito de se fazer hua nova casa da Misericordia".
Arq. da Santa Casa, LIVRO 356; fl.
(10) – João Gonçalves Gaspar; Aveiro - notas históricas;
Aveiro, C.M.A., 1983; p. 111.
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