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Boletim n.º 15-16 - Ano VIII - 1990


UMA PRINCESA A QUEM O POVO CHAMOU SANTA

Palavras proferidas pela Dr.ª D. Albertina Valentim Oliveiros, na cerimónia da oferta ao Museu de Aveiro de uma imagem de Santa Joana, pelo Lions Clube de Santa Joana Princesa – 23 de Abril de 1990.

 

Sem deixar de, primeiramente, invocar o nome de D. João Evangelista de Lima Vidal, 1.º Arcebispo de Aveiro, e os nomes de Rocha Madahil, Ferreira Neves, Marques Gomes; antes de começar, quero dizer-vos que todo o trabalho que vou ler é fundamentado em fontes históricas fidedignas, procurando ter sido imparcial e escrupulosa na sua análise e crítica. Eis as principais:

– O códice quinhentista existente neste Museu de Aveiro;

– A crónica da fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro e memorial da Infanta Santa Joana, filha de El-Rei D. Afonso V e dos cronistas: Gomes Eanes de Azurara, Rui de Pina, Garcia de Resende e Damião de Góis.

 

Oferecida pelo Lions Clube, que para seu nome adoptou o nome da Padroeira da cidade, filha de D. Afonso V, rei de Portugal, e que aqui viveu e morreu, em odor de santidade, é entregue, hoje, a este Museu de Aveiro, uma imagem preciosa e rara da Princesa Santa Joana.

Um dos objectivos do Lionismo é "interessar-se, activamente, pelo bem-estar público, cultural, social e moral da Comunidade. – Está cumprido.

Convidada pela Presidente para dizer algumas palavras sobre a excelsa figura da Infanta, acedi com muito aprazimento, pois desde que vim para esta região – e já lá vão largos anos – me apaixonei pela figura singular da Princesa e pela milenária cidade da Ria de poentes fantásticos de oiro fundido em luz única e deslumbrante.

Ficar-me-ei pela sua chegada ao convento.

Os Santos vivem o amor de Deus, e, por vivê-lo, são inacessíveis à corrosão do tempo e às limitações do espaço.

Passam, na fragilidade mortal da sua carne, mas ficam perenemente na perpetuidade do amor que, em certo modo, cristificando-os, os humaniza.

A vida do Santo mergulha as suas raízes no mistério da fé. Quem não possuir o sentido religioso da existência humana não pode compreender e sentir o Santo, no que ele tem de mais alto e transcendente.

Mas mesmo para quem não tenha fé, mas possua a nobre sensibilidade dos altos ideais e das acções generosas, os santos constituem uma dinastia de almas superiores, que alumiam e enriquecem o mundo, com suas virtudes e suas mortificações heróicas.

Neste sentido escreveu Antero «que a santidade é a mais alta forma de personalidade, termo último da evolução Universal e a própria finalidade do ser». Estas palavras significam bem o apreço do filósofo e poeta pela santidade.

(Mas) Aquele que fala sobre um Santo, deve ser pessoa de fé: sem experiência religiosa não pode falar-se, com verdade, sobre experiência religiosa.

Não quero, de forma alguma, fazer-vos acreditar que tudo na vida desta Santa se passa em atmosfera de milagres. Todos os Santos sofreram, dolorosamente, o espinho da tentação; é, então, que a graça triunfa, vencendo-se a carne em mortificação austera, que arrepia a nossa embotada sensibilidade.

Hoje, é mais difícil compreender a vida duma Santa do século XV, e Princesa, pois o nosso século XX está marcado por uma cultura hedonista em que o valor supremo é a busca desenfreada do prazer.

É certo que o hedonismo e a paixão de gozar, não são fenómenos novos, na história da sociedade; o que é novo é que a cultura moderna tenha erigido a satisfação dos prazeres em valor supre-mo do indivíduo.

Todavia, o coração humano continua a ser misteriosamente solicitado por uma felicidade maior que o próprio homem.

É o apelo do Espírito que se faz sentir muitas vezes, até, sob a forma dum vazio ou duma nostalgia.

É de louvar, portanto, a resposta a este apelo do Espírito, do Lions Clube de Santa Joana Princesa que assim satisfaz, hoje, o sétimo preceito do Código de Ética do Lionismo:

«Ter sempre presentes os meus deveres para com o meu Deus e a minha Pátria... dedicando-lhes o meu tempo, o meu trabalho e os meus recursos.»

 

Acabada esta introdução, comecemos, então, a falar duma "Princesa que se chamou Joana, e que entrou neste Convento».

«Nasceu esta Infanta na mui nobre cidade de Lisboa, aos seis dias do mês de Fevereiro da era do Senhor de 1452» – diz o cronista.

Rui de Pina repete e acrescenta «que sempre se chamou Princesa, até ao ano em que o Príncipe D. João nasceu, e depois se chamou Infanta.»

Nasceu, pois, esta "Singular Princesa" como a intitula Garcia de Resende na "Crónica de El-Rei D. João II", nos meados do século XV, quando Portugal tem aventurado os primeiros passos, nos mares desconhecidos, na dilatação da Fé e do Império, lançando-se numa gigantesca epopeia marítima que ficará a assinalar uma época na história e civilização de todos os povos; quando em Itália floresce a fulgurante cultura de humanismo fecundo e eterno; quando o resto da Europa se arruína e retalia em lutas sangrentas, e enquanto o Turco prepara o golpe mortal, que há-de abater a velha cidade de Constantino, baluarte fronteiro da civilização latina.

Surge esta Princesa "de muitas virtudes, bondades e perfeições, muito devota, católica e amiga de Deus" como ainda a qualifica o mesmo Garcia de Resende – como figura luminosa desta época e cuja vida é uma epopeia calada senão silenciosa – mas eloquente, na projecção que teve sobre o mundo e a sociedade em que viveu e que, após quinhentos anos passados, nos faz ainda recolher em saudosa meditação.

 

E, para melhor se compreender todo o valor desta alma de eleição, seria acertado, se não se tornasse longo, dar uma sucinta resenha de como vivia a Europa deste século e até de Portugal especialmente: seria a moldura adequada para esta figura.

Melhor se avaliaria do sacrifício e da renúncia desta filha de D. Afonso V que no dizer do cronista – «solteira, sem casar, com vida e obras de mui virtuosa e católica Princesa, se finou no Mosteiro de Jesus de Aveiro» e a quem os seus contemporâneos chamavam Santa Princesa.

Toda a Europa vivia sob o fogo da rebelião religiosa mais radical que se tem conhecido e que trouxe a mais dolorosa divisão da Cristandade.

Só nesta ponta ocidental da Península, Portugal se afirmava já uma nacionalidade, com as fronteiras que ainda hoje tem, plena de vigor, transbordante de vitalidade, uma nacionalidade forte, / 40 / ansiosa de expansão e de «fazer cristandade».

Passada a crise de crescimento, há paz e há grandeza.

Portugal entra assim no século XV marcando uma posição de destacada preponderância, numa Europa inquieta e atormentada por numerosas guerras de predomínio e cisões religiosas.

O primeiro passo da expansão portuguesa – a conquista de Ceuta – é o marco miliário duma Idade Nova duma Idade Oceânica – em que Portugal representa o primeiro papel; ela foi a precursora imediata dos descobrimentos marítimos portugueses, a determinante duma viragem da História.

Foi de Ceuta que se partiu para a grande Rota – que substituiu a concêntrica civilização mediterrânica, pela excêntrica civilização atlântica.

É neste momento histórico que em Lisboa nasce a Princesa D. Joana, filha de El-Rei D. Afonso V de Portugal e de sua mulher a Rainha D. Isabel.

Por morte de sua mãe – poucos anos depois – e por ordem de El-Rei, toda a casa da Rainha, com suas damas, donzelas e outros oficiais, passou para D. Joana, sem em nada se mudar.

Assim, cresceu esta Princesa e passou a sua meninice, servida com todo o estado que a uma rainha pertence.

D. Afonso V, rei muito ilustrado e grande impulsionador da cultura portuguesa – "o primeiro que em seus paços teve livraria" – isto é biblioteca, deu uma grande importância à educação dos filhos.

A Infanta teve por aia D. Beatriz de Menezes, senhora de alta linhagem e uma das principais do Reino, pela ilustração e dotes de espírito.

Os primeiros anos de D. Joana, nos seus paços de Rainha, deslizaram suaves e iguais entre a vigilância de D. Beatriz de Menezes, e a ternura de D. Filipa, sua tia – filha do malogrado infante D. Pedro, e que junto dos dois principezinhos, substituiu a mãe que tão cedo perderam.

Ela guiou a infância da sobrinha, e até do Príncipe, e este meio culto e intensamente religioso em que se formou a alma da Princesa alargou-lhe o espírito e abriu-o à beleza mística.

El-Rei não deixou de proporcionar a seus filhos livros e mestres, de modo a desenvolverem-lhes a inteligência e a darem-lhes vasta cultura.

A predilecção de D. Joana pelas letras e pelos livros manifestou-se sempre, até quando, esquecida do mundo, vivia apagada e humilde no convento, cuja biblioteca enriqueceu.

 

Aos 9 anos, além de escrever e ler fluentemente a sua língua materna, falava, com correcção, o latim.

"Quando foi de maioridade, foram-lhe entregues todas as jóias e quanto ficou da Rainha sua mãe, para que, mui magnificamente, fosse servida em todo o seu estado e excelência.

Vivendo em seu paço e casa de Rainha, o Rei vinha com frequência à sua corte, trazendo o Príncipe, e com eles duques, marqueses e condes e todos os outros senhores e fidalgos, os quais segundo dizem os cronistas – "como a paço duma Rainha, não tendo outra, vinham a se desenfadar".

A Princesa saía a recebê-los, vestida com pomposos e magnificentes trajes de ouro e pedrarias, adornada de colares e firmais de ouro e pedras preciosas, conquistando todos pela sua graça e formosura.

Era muito formosa e esbelta – dizem os cronistas coevos; bastante alta e delgada. Tinha o porte airoso e de grande majestade; a pele era branca e levemente rosada, e uns grandes olhos verdes, de expressão infantil, davam vida ao rosto de linhas puras e correctas.

Os cabelos, louros, cor de ouro esmaecido, lisos, e que costumava trazer caídos, com simplicidade, emolduravam-lhe a fronte alta e inteligente.

Foi considerado crime de lesa-majestade o corte destes lindos cabelos, seu mais belo e precioso enfeite, quando já estava no convento e tomou hábito: o povo da vila clama contra o que se fez, chorando em altos brados; os fidalgos mandaram chamar a prioresa e mostraram-lhe o seu desagrado; e o Príncipe imediatamente se pôs a caminho de Aveiro e, asperamente, falou à superiora.

A testemunhar a sua beleza peregrina, lembrando uma virgem iluminada a ouro, num livro de Horas, está a tábua quatrocentista existente neste Museu, e sobre a qual, muito, também haveria a dizer.

Desde bastante nova mostrou um gosto pronunciado pelo recolhimento, e, com surpresa das suas aias, afastava-se das turbulências e jogos da Corte.

Neste século de transição, em que os costumes se iam corrompendo cada vez mais, atingindo até a classe eclesiástica duma maneira geral, cujo luxo e vida nem sempre edificante era mau exemplo para o povo cristão, a princesa começou a dar-se a muito fervorosas e devotas orações, amiudadas e secretas disciplinas, e assim na sua alma nasceu a íntima vocação de se entregar totalmente a Deus.

No paço, a ocultas, começou, então, a fazer vida de áspera penitência: a princípio, iludindo a vigilância das donas e donzelas de seu serviço, apenas jejuava e passava a noite em vigília, rezando no Oratório mas, depois, tomando por confidentes duas das suas aias e o tesoureiro de sua casa, mandou que lhe arranjassem cilícios e disciplinas.

Sob os ricos vestidos de brocado e oiro, usava cilício permanente e grosseiras camisas de estamenha e, diz o cronista, "curtas de mangas e estreitas de corpo, por tal, que trazendo-as debaixo das mui grandes e ricas todas lavradas de ouro e seda, as de lá não pudessem ser vistas, enxergadas nem conhecidas".

Quando, de noite, todos a julgavam tranquilamente adormecida no majestoso leito de lençóis finíssimos e ricas colgaduras, colchas e dosséis, a Princesa, ou rezava, no Oratório, meditando nos mistérios da Paixão que, desde sempre, a fascinavam, ou descansava o corpo dorido do cilício, sobre um leito de cortiça, tendo por cobertores umas mantas de burel e repousando a cabeça num travesseiro duro.

Se a Paixão de Cristo foi o principal tema das suas meditações, pela coroa de espinhos tinha especial devoção. Assim, à maneira do que então costumavam fazer os príncipes, para testemunharem os seus cuidados e pensamentos, escolheu como símbolo da sua vida a coroa de espinhos "que por divisa e arma muito singular tinha tomado".

Esta insígnia mandou pintar em todos os seus aposentos, esmaltar em suas jóias e gravar na sua porta, e no seu próprio escudo em forma de losango, vê-se, ao lado das armas de Portugal, a mesma coroa de espinhos – refere Frei Luís de Sousa. E vemo-la nós, no escudo da Princesa, que neste Museu aparece nas portas, nas paredes e em lugares mais destacados. Bem haja a quem, com desvelado amor pela Arte e pelo Museu, teve tão significativa lembrança.

Jejuava muitos dias e durante a Quaresma observava este preceito rigorosamente, alimentando-se de pão e água, na quinta e sexta-feira santas, e, sempre em constante oração, guardava rigoroso silêncio; na noite de quinta-feira maior, a ocultas, mandava que fossem trazidas à sua presença doze das mulheres mais pobres que encontrassem e, à semelhança do que fizera Jesus aos apóstolos, de joelhos, lhes lavava os pés. Dava a todas avultada esmola, e no mesmo segredo em que tinham vindo, se tornavam, sem nunca saberem onde isto lhes fora feito, nem a pessoa que lho fizera.

Socorria todos os necessitados, auxiliava os presos, ajudava os doentes, e àqueles que por vergonha de mendigar sofriam miséria, a estes, principalmente, fazia chegar a sua generosidade.

Verdadeira despenseira dos pobres era esta Princesa, porque, tudo quanto propriamente lhe pertencia, fazia distribuir pelas cadeias, pelos hospitais e pelas casas religiosas mais pobres.

Todavia, mortificada e ciliciada como uma penitente, sabia, como ninguém, no seu palácio, exercer as funções / 41 / de Princesa, com requintada arte, e era a mais amável, a mais alegre e graciosa da sua pequena corte.

O dia em que ela haveria de partir, como penhor de qualquer aliança com outro Reino, aproximava-se. É que neste século, a mão de uma Princesa portuguesa não era pequeno peso na balança do equilíbrio europeu.

Seu Pai já se intitulava «D. Afonso, por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves, daquém e d'além-mar, em África!»

Foi pedida em casamento por Luís XI, rei de França, para o filho primogénito e herdeiro, que seria o rei Carlos VIII; por Frederico III, para Maximiliano, seu filho, que foi imperador da Alemanha; pelo rei de Inglaterra e ainda outros.

Mas a Infanta, habilmente, apresentava uma escusa formal e categórica: uma razão de Estado, pois o irmão era novo para se casar – ela era 3 anos mais velha que D. João – e não lhe parecia conveniente que ela – Princesa jurada herdeira – saísse do reino.

O rei, embora contrariado, concordava com estas razões, que lhe pareciam sensatas.

Porém, a verdadeira razão era que a Infanta queria recolher-se a um convento.

Através de D. Leonor de Menezes, ia a Infanta sabendo informações dos diferentes conventos do reino.

Do que tinha conhecimento mais perfeito e mais próximo era do de Odivelas, onde costumava recolher-se sua tia D. Filipa. Um dia, acompanhada das suas donzelas e damas, foi ela própria ao convento para se certificar da vida e ordem das monjas de S. Bernardo. Embora ocupadas no serviço de Deus, pareceu-lhe que não tinham aquele repouso e quietação de espírito, que a sua alma, "sempre propensa ao recolhimento, desejava. E pensou, de si para si, que não iria para Odivelas. D. Joana não queria encerrar-se na "claustra" como então se chamava a esta degeneração da disciplina, mas em apertada e austera clausura.

Foi nesta data que começou a tornar-se conhecido, pela aspereza de vida e austeridade de regra, um convento dominicano, havia pouco tempo fundado em Aveiro.

Era este mosteiro verdadeiro ermitério, nova Tebaida de penitência e oração.

Por D. Leonor de Menezes, soube a Infanta do rigor e pobreza do Convento, e logo resolveu que noutro não entraria, se alcançasse de El-rei permissão para abandonar o mundo e entregar-se a Deus.

Da história deste convento, nada direi; porque isso não cabe no âmbito, nem no tempo que me propus.

Referirei apenas, a título de coincidência curiosa, que, casualmente, em 15 de Janeiro de 1462, encontrando-se D. Afonso V, em Coimbra, foi com o Bispo a Aveiro, ao local das obras, e pegando numa "formosa pedra e muito bem lavrada, ele por um lado e o Bispo de Coimbra por outro a assentaram como firme fundamento do mosteiro". Sob a pedra D. Afonso V colocou uma dobra de ouro, que era a moeda principal e de mais valia naquela época e, profeticamente, disse: "poderia ser que ainda neste mosteiro teria e se meteria coisa sua".

Na verdade, 10 anos passados, a Infanta D. Joana, sua única filha e princesa jurada do Reino, deixando todas as pompas e vaidades do mundo, ali se veio encerrar.

A chegada do Rei e do Príncipe D. João do Norte de África, após as vitórias sobre Alcácer, Arzila e Tânger, pareceu à princesa ocasião propícia para fazer ao Pai o pedido de deixar o mundo e entrar no convento.

O povo de Lisboa preparou grandes festas para os receber, que se estenderam por todo o Reino e continuaram por muitos dias.

A Princesa, ricamente vestida de veludo verde, cor dos seus magníficos olhos e da esperança de alcançar, enfim, satisfação para os seus desejos, com a cabeça e o colo cobertos de ricos diademas e colares, acompanhada de todos os fidalgos e donzelas de sua casa, saiu a receber El-Rei.

Junto à carne, a rasgar profundos sulcos, o áspero cilício e a camisa de estamenha. Do seu coração subiam preces a Deus.

Acompanhavam-na D. Leonor – a jovem esposa do Príncipe – a que mais tarde foi "A Princesa Perfeitíssima" – a tia e o velho Duque de Bragança; seguia-a luzido cortejo, montando esbeltos e nervosos cavalos, que ostentavam valiosos xaireis, ia a nobreza que ficou em Portugal com D. Joana – princesa regente na ausência do Rei, segundo alguns cronistas. / 42 /

Como sempre, o povo corre a vê-la, "todos, grandes e pequenos, velhos e moços e todas as mulheres saiam a ver sua formosura e gentileza".

Dotada pela natureza de graça e bondade, bastava o seu aspecto para lhe valer a admiração geral. Ela sabia ganhar todos os corações, porque nunca se mostrava arrogante de vera soberania, e porque, com a simplicidade natural que lhe era própria, fazia esquecer a grandeza do seu nascimento.

O rei é recebido em triunfo, e, feitas as costumadas cortesias, a Princesa adianta-se para implorar a D. Afonso, generoso e magnânimo, uma mercê; o que recusaria à "sua muito amada e prezada filha" aquele dadivoso rei, naquela hora de apoteose e de glória?

Confiante, ela pede: lhe faça mercê de a oferecer, em holocausto, a Deus.

O estranho pedido surpreende a todos e a infanta, aproveitando a emoção que os invade e lhes não permite falar, continua: "tal como os reis antigos depunham no altar das oferendas, como sacrifício aos falsos deuses a quem atribuíam suas vitórias, as mais raras jóias que possuíam e suas amadas filhas, ele, não menos que eles, devia fazer ao verdadeiro e mui poderoso Senhor, o qual o fizera sempre e, então muito mais, o mais vitorioso e louvado Rei.

Se foi grande o espanto pelas palavras da Princesa, não foi menor a tristeza de todos, quando o Rei, abraçando-a, e com lágrimas, que bem demonstravam a amargura do coração, concedeu a graça pedida: "Fosse em tudo o que Deus, por seu serviço, tivesse em bem ordenar; nas suas mãos punha todos os seus feitos, e este sobre todos, que a ele mais relevava".

Mas logo aí os fidalgos e quantos estavam presentes protestaram, por parte do Reino – cuja segunda Princesa jurada era – contra tal determinação.

Os protestos não se ficaram por aqui: os procuradores das cidades e vilas, que estavam reunidos em cortes, quiseram dissuadir a Princesa desta resolução e pensaram, até, recorrer ao Santo Padre, se ela se mantivesse naquele propósito, que não compreendiam.

Tão estranha lhes pareceu a decisão da Princesa, que chegaram a supor que El-Rei não pudesse acudir com meios bastantes à sustentação do seu estado, e em requerimento dos Povos, dirigido à Infanta, com data de 22 de Dezembro de 1471, ofereceram-se para suprir o que faltasse...

D. Afonso lembrou o Convento de S. Clara, em Coimbra, "que era mui excelente e sumtuoso"...

As imensas riquezas acumuladas nos Mosteiros levavam muitas senhoras a entrar no claustro, sem vocação.

Neste convento estavam muitas mulheres nobres e fidalgas – continuava el-rei, para a convencer, "e poderiam ir vê-la muitas vezes, e tomar prazer e consolação com ela".

Todavia, a Princesa, pensava em Aveiro, "porque queria pobreza e humildade".

Por um lado, o Rei anunciou à abadessa do rico mosteiro das claristas a próxima chegada da Infanta. Porém, D. Joana escreveu a D. Brites Leitoa, para o Convento de Jesus de Aveiro.

Em Julho do ano de 1472, acompanhada de D. Afonso V e do príncipe D. João, com todos os da sua Corte, cobertos de luto e muito tristes, seguiam a caminho de Coimbra; mas, antes de chegar à cidade, a Princesa pediu, humildemente, ao Pai que a deixasse ir para Aveiro.

E El-Rei mandou – contra vontade e parecer de todos – "que endereçassem suas jornadas para a vila de Aveiro".

O que era Aveiro, no século XV já rodeada de um cinto de muralhas de sólida construção, em hexágono irregular, emoldurada pela estranha beleza da sua singular laguna?

Daria para muito tempo fazer referência, ainda que breve, a esta vila, que na opinião do Príncipe Perfeito, "mais parecia ilha de desterro que vila", mas a Princesa chamava-lhe terna e carinhosamente "a sua Lisboa, a pequena".

Ela queria o convento pobre e humilde, pois só procurava religião "onde estivesse com Cristo pobre e pequenino".

Escolheu este mosteiro dominicano para sepultar a sua radiosa beleza, renunciando voluntariamente e com alegria, aos esplendores da Corte, à majestade dum Trono.

"Aos 4 dias do mês de Agosto do ano do Senhor, de 1472, entrou a dita Senhora Princesa to Senhora Infanta, Dona Joana, Nossa Senhora, neste mosteiro de Jesus" – reza a crónica.

Estranha figura a desta mulher que desce os degraus magnificentes dum trono, e subir o caminho íngreme e pedregoso do Calvário, para, mortificada e penitente, abraçar a Cruz.

Este é o grande heroísmo!

Esta é a grande, a verdadeira vitória!

* * *

Saúdo e felicito todas as minhas companheiras e companheiros do Lions Clube de Santa Joana Princesa; Saúdo e felicito todas as minhas Irmãs e Irmãos, da Irmandade de Santa Joana Princesa;

Felicito todos os Aveiros e todos os Aveirenses pelo quase profético sobrenome com que a Princesa apelidou esta vila: "minha Lisboa, a pequena".

É que Aveiro, hoje a caminho do séc. XXI com a projecção europeia que os homens de boa vontade desta terra têm sabido imprimir-lhe, não desmerece da Lisboa de projecção universal que no séc. XV – o nosso século de oiro – tinha a, então, capital do Império.

Dr.ª D. Albertina Valentim Oliveiros

(Transcrição, em fac-símile, do "Boletim do Lions Clube de Santa Joana Princesa", n.º 4, Março/Abril de 1990, pgs. 14-17).

 

 

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