Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 15-16 - Ano VIII - 1990


A DECISÃO DA PRINCESA


Mons. João Gonçalves Gaspar


15 de Agosto de 1471. El-Rei D. Afonso V e o Príncipe D. João, seu filho, com fidalgos, cavaleiros e cerca de 30 000 homens, saíram a barra do Tejo, rumando para Marrocos; aí, na segunda quinzena do mês, os portugueses conseguiram não apenas a tomada de Arzila e Tânger, mas também o resgate dos restos mortais do Infante D. Fernando, o mártir de Fez. Nos finais de Setembro seriam acolhidos em Lisboa, com grande regozijo.

A Princesa D. Joana preparara-se, sobretudo ela, para receber o pai e o irmão com dignidade e em festa. Acompanhada pela tia materna, a Infanta D. Filipa, e por toda a sua Casa de donzelas, damas e fidalgos, desceu até junto do Tejo, para a cerimónia da recepção. "Mui guarnecida e aposta" – como refere Margarida Pinheira – talvez ao lado do Arcebispo de Lisboa, D. Jorge da Costa, enquanto esperava o pai, testemunhava uma mocidade em flor e uma consciência em paz e tornava-se o alvo das atenções da nobreza e do povo. Levava, contudo, no seu íntimo a decisão de pedir autorização ao Rei para deixar a Corte e recolher-se em qualquer convento do País. A altura era óptima e o discurso estava preparado.

Trocados os cumprimentos, D. Joana fez menção de falar; naturalmente as suas palavras seriam calmas, viriam carregadas de interioridade e traduziriam um longo sonho de vários anos. E, «cheia de graça divinal como de formosura corporal, abrindo a sua boca com eloquentes palabras e discretas» – como escreve a referida cronista sua contemporânea – falou nestes ou semelhantes termos:

– Esta hora que vivemos, meu pai e senhor, é de extraordinário júbilo para todos, pelo triunfo que Deus houve por bem conceder às vossas armas; mas também deve ser de profundo reconhecimento ao Todo-Poderoso. Em diversos livros de autores latinos aprendi ter sido costume – como Vossa Alteza muito bem sabe – que os antigos imperadores e reis gentios, ao regressarem a casa depois de alguma vitória em batalha infligida aos inimigos, ofereciam aos seus deuses e ídolos um grande dom e a melhor jóia que tinham ou podiam haver; essas jóias e dons, que doavam aos templos para o serviço dos deuses, eram as suas mui prezadas filhas. Vossa Alteza, que é rei cristão, não deve fazer menos do que eles em honra do verdadeiro e mui poderoso Senhor, o qual sempre vos concedeu – e nestes últimos dias muito mais – a graça de ser o mais vitorioso e louvado rei, como nunca acontecera com outro qualquer rei de Portugal, submetendo-vos os inimigos da fé e quebrantando, diante de vós, as suas forças e o seu grande poder, apesar de serem numerosos; e esta tão assinalada mercê, mais do que os outros Imperadores e Reis, Vossa Alteza a recebeu agora em tão breve tempo e sem nenhum trabalho e perigo para a vossa real pessoa, a do vosso filho e a de toda a restante Cavalaria. Por isso, Vossa Alteza tem maior obrigação em ser generoso na gratidão e na oferta a Deus; e não terá outra coisa melhor e maior com que mais serviço faça a Deus por tão assinalada vitória do que, seguindo o louvado costume dos Reis antigos, ainda que estivessem longe do verdadeiro conhecimento de Deus, oferecer-lhe a vossa única filha. Por esta razão, suplico encarecida e ardentemente a Vossa Alteza que não pense mais, durante toda a vossa vida, em cuidar ou falar-me de qualquer casamento. E, em troca de tanta alegria com que o Senhor Deus ordenara que Vossa Alteza, o Príncipe e toda a sua gente voltassem ao Reino, rogo que queira e me dê lugar e licença, como coisa dada e oferecida já a Deus, para me recolher em algum dos mosteiros do vosso Reino, onde esteja mais à minha vontade e, com mais descanso do meu espírito, me dedique a servir Aquele que por nos salvar todo Se deu e ofereceu na cruz.

Encheram-me de lágrimas os olhos do Rei, do Príncipe e dos que estavam com eles e ouviram a Princesa, «em seu falamento e arenga cheia de graça divinal». E, enquanto um rumor surdo de palavras, à mistura de troca de olhares, agitava D. João e a Corte, El-Rei D. Afonso V, não querendo contristar a filha, disse-lhe que "lhe prazia e outorgava o que tão sabedoramente soubera pedir; fosse em tudo o que Deus por seu serviço tivesse por bem ordenar, ao que ele não podia resistir e estorvar, nas suas mãos punha todos os seus feitos – e este sobre todos que a ele mais relevava».

O sonho encetara finalmente o caminho da concretização; depois de algumas dificuldades de percurso, numa noite de Dezembro de 1471, D. Joana, "acompanhada de poucas e assinadas pessoas, segundo pertencia a sua guarda e honestidade, sem outra gente de estado e pompa, saindo do seu paço, mui secretamente se foi ao Mosteiro de Odivelas, da Ordem de S. Bernardo" – conta Margarida Pinheira. A abadessa e as monjas de Cister receberam-na tão magnificamente como lhes foi possível, não deixando de se maravilhar pelo que significava «a vinda tão súpita e a desoras de uma tão grande Princesa». / 34 /

A notícia da retirada de D. Joana, transpondo naturalmente os limites do meio familiar e palaciano, alvoroçara rapidamente o ambiente citadino de Lisboa; as pessoas andavam inquietas e pediam providências, porque viam estar em perigo a sucessão ordinária e legítima do Reino.

Nesses dias, encontravam-se na capital os procuradores a Cortes das cidades e vilas, que tinham sido convocados por D. Afonso V, para tratarem de assuntos que lhe diziam respeito a si e ao bem e proveito dos povos; uma das matérias de interesse era a dotação da Casa do Príncipe D. João e um outro problema a discutir relacionava-se com o projecto de D. Joana. Os procuradores da Nação já antes haviam dado ao Rei o conselho de não deixar que a filha entrasse em mosteiro; contudo, tendo casado o Herdeiro, ele não se impusera, «porque, em semelhantes casos, se deve às pessoas menos embargo pôr de usarem da sua liberdade e livre alvedrio, e do que lhes Deus ministra e dá a entender» – como se lê no documento arquivado na Torre do Tombo.

Não se conformaram os procuradores. Diante da frouxidão do Monarca, protestaram oficialmente, no paço; foi no dia 22 de Dezembro de 1471. Da parte de Deus, porque outro superior não tinham a quem pudessem recorrer, instavam que El-Rei não autorizasse a entrada da filha em religião; e, se já lhe tivesse dado licença, que a revogasse, proibindo-lhe que o fizesse e a mandasse repousar com suas donzelas, no seu paço, como até então acontecera.

Quando os delegados do Povo julgavam o caso arrumado, eis que chegava ao seu conhecimento "que ela, dita Senhora, se mete em a dita religião, e que a isso o pai dava sua autoridade e consentimento; pelo qual nós, vossos povos, a que pertence, mais que a outra alguma pessoa, cujos suficientes procuradores somos, tal entrada de religião contradizemos e reclamamos, em maneira alguma nela não consentimos e protestamos ser nenhuma e de nenhum valor.

D. Afonso V pretendeu acalmar os ânimos; quis então fazer crer que apenas se limitara a "dar à filha, ora, lugar para haver de estar alguns dias no Mosteiro de Odivelas, sem filhar hábitos nem fazer outra mudança de si, para dali poder tomar melhor deliberação e considerar e ordenar o que sentisse por serviço de Deus e bem seu dela". Os procuradores não aceitaram tal explicação; voltando à carga, apresentaram o exemplo da Infanta D. Isabel, que D. João I seu pai, conservou consigo até aos trinta anos, apesar de ela insistir em entrar no claustro, mantendo-se no estado de largueza que lhe competia, como rainha que fosse, depois da morte da mãe, D. Filipa de Lencastre.

Começara já a correr em Lisboa o boato de que a resolução da Princesa teria obedecido a ressentimentos por falta de recursos financeiros; os procuradores também disso se fizeram eco e, concluindo pela existência de dificuldades materiais na sua Casa, aconselharam o Rei a que a filha, nas receitas, fosse tida como a Infanta D. Isabel.

Os delegados do Povo aventavam ainda que D. Joana, não sendo precisa para garantir a sucessão do trono, podia casar fora do Reino, com grande proveito para o País, em que Deus se houvesse "dela por mais servido que entrando em religião"; se o Monarca tinha diligenciado tão bons casamentos para as irmãs, ele não devia desprezar a filha, "mais chegada a vossa pessoa e real estado" – acrescentavam.

Contudo, não ficaram tranquilos os procuradores e, em 24 de Dezembro, deslocaram-se a Odivelas. Chegados ao Mosteiro, logo falaram com a Infanta D. Filipa, que aí acompanhava a sobrinha, e solicitaram-lhe que, com a abadessa, fizesse chegar à Princesa o requerimento com o pedido de os ouvir e lhes trouxesse a resposta. D. Joana resolveu não comparecer, desculpando-se que estava "retraída, em maneira que os não podia ouvir"; pela tia, limitava-se a dizer que "El-Rei, seu senhor e pai, a pusera em aquele Mosteiro, em o qual, prazendo a Deus, entendia de estar, com propósito de ser a toda a obediência, querer e ordenança sua". Em face da negação da Princesa, os delegados do Povo rogaram a D. Filipa que os atendesse, juntamente com a abadessa e todas as freiras do Convento; de facto, assim aconteceu. Concretizando as suas razões, eles repetiam então, com pormenor, o que já haviam exposto ao Rei, para que tudo fosse integralmente transmitido a D. Joana.

Por estes protestos oficiais, concluímos que o facto insólito do recolhimento claustral de Santa Joana perturbou enormemente a vida da Corte e teve vários reflexos na política do reino; ele frustrou possíveis alianças que laços matrimoniais poderiam cimentar ou fortalecer. E tanto assim foi que, logo em seu tempo, o acontecimento foi cuidadosamente registado, anotando-se tudo quanto se relacionava com ele. D. Joana, por seu lado, saberia aproveitar as contrariedades que sofrera, levando o Monarca a autorizar-lhe a troca do Mosteiro de Odivelas por outro mais afastado de Lisboa; mesmo assim, quando já estava em Aveiro, os protestos iriam continuar – o que penosamente a levaria, após consultas e recomendações, a não professar como religiosa, continuando a viver como "freira sem profissão" – no dizer de Frei Luís de Sousa.

Mas... porque motivo a filha de D. Afonso V se inclinou por Aveiro que, nesse tempo – como diz Margarida Pinheira – era uma "vila mui pobre e desapovoada de gente e moradas", ou – como opinava o Príncipe Prefeito – era um "lugar mui pequeno e desprezível e em edifícios pobre e pouco sumptuoso para tal Princesa haver de entrar nem estar um só dia".

Poderemos descobrir algumas razões. Encontrava-se já em Aveiro, no Mosteiro de Jesus, / 35 / desde Dezembro de 1471, decidida a prosseguir a vida claustral, D. Leonor de Meneses, filha do denodado D. Duarte de Meneses que, expondo a sua vida para salvar a de El-Rei, fora morto em Ceuta às mãos dos mouros, na segunda campanha de Marrocos. D. Leonor de Meneses fora e era a confidente de D. Joana; desde tenra idade, estabelecera-se entre ambas uma amizade tão estreita e tão singular que se encorajavam mutuamente no propósito comum de religião. Uma vez em Aveiro, ela comunicaria sem demora à Princesa o nível superior na observância das constituições conventuais, na piedade, na oração, na pobreza, no estudo e na caridade que o incipiente Mosteiro de Jesus atingira. Assim, o ambiente na comunidade das Irmãs, os laços que vinham de trás entre as duas, além da distância da Corte que D. Joana preferia para seu sossego, teriam sido as grandes razões da escolha de Aveiro.

Para mais, o convento fora recentemente fundado por D. Brites Leitoa que enviuvara de D. Diogo de Ataíde, virtuoso cavaleiro fidalgo da Casa do Infante D. Pedro e guarda-mor de D. Isabel, esposa do Duque de Coimbra e Senhor de Aveiro. Ferida a batalha de Alfarrobeira, o casal refugiara-se na sua quinta de Ouca, onde D. Diogo, atingido pela peste, acabaria por sucumbir. A ela juntara-se D. Mícia Pereira, também senhora de nobre linhagem, viúva de Martim Mendes de Berredo, diplomata de D. Afonso V.

Por tudo isto, já que o coração tem razões que a razão não compreende, a vila de Aveiro foi escolhida por D. Joana; a cronista anotaria que «outro lugar maior nem melhor não queria salvo este, ao qual chamava ‘minha Lisboa a pequena’».

*

*            *

O cronista Rui de Pina escreveu que D. Joana vivia em Lisboa «com tão grande Casa de donas e donzelas e oficiais, como se fora rainha», e atribuiu a iniciativa do seu enclausuramento em Odivelas ao próprio Monarca, seu pai, "porque fazia sem necessidade grandes despesas, e assim por se evitarem / 36 / alguns escândalos e prejuízos que em sua Casa, por não ser casada, se podiam seguir».

Antes de mais, devemo-nos pôr de sobreaviso ante as afirmações do cronista régio. De facto, há quem o acuse com fundamento de adaptar ao seu estilo histórico velhos manuscritos da livraria real e ocultar outros. Importa mesmo ter presente que Rui de Pina viveu numa altura em que o trabalho "histórico" começava a ter a finalidade de exaltar o monarca e o poder real. Assim, com uma tendência laudativa no cântico de glórias ligadas ao rei e no silêncio de mazelas que o comprometessem, a história, que fora para Fernão Lopes "a clara certidão da verdade" e para Eanes de Zurara uma exaltação do Infante D. Henrique e da Nobreza Senhorial, tornara-se para Rui de Pina um ofício remunerado ao serviço do monarca; ele próprio, no prólogo da Crónica de D. Duarte, considera-a como "mui liberal princesa" que, feita sobretudo compêndio de ética, dava força de ânimo aos leitores. Não admira, por isso, que a verdade possa sair um pouco minimizada da sua pena.

Rui de Pina, com efeito, erra frequentemente na cronologia, no apuramento da verdade, na seriação dos factos, na correlação destes com a história geral, na documentação que por vezes descura. No próprio texto alusivo a Santa Joana, há diversas inexactidões históricas que podiam ser evitadas, tanto mais que a Princesa foi contemporânea do cronista.

O passo de Rui de Pina, funcionário da Corte pago pelo Erário Real, quando diz que D, Afonso V meteu a filha no convento por fazer sem necessidade grandes despesas e para prevenir possíveis deslizes morais, porque desejava vê-la virtuosa e isenta de difamações, parece sobretudo registar a opinião comum das pessoas acerca das razões que levaram D. Joana a tomar aquela atitude. Tal opinião enquadra-se melhor na preocupação do suspeito cronista em amontoar motivos para engrandecer a pessoa de El-Rei, do que numa linha de fidelidade imparcial à verdade concreta. Mas... porque não se serviu Rui de Pina do documento onde constam os protestos escritos e as respostas da Princesa, quando os procuradores do Povo se insurgiram contra a ida da filha do Monarca para o convento?

O primeiro motivo – o das despesas – é inconsistente, em face da relativa modéstia da Princesa, que até evitava "jogos e vaidades, em que costumavam exercitar-se pessoas de semelhante estado e idade". E, para relembrar apenas o verão de 1471, na ausência do pai em Marrocos, D. Joana até se vestia com extrema simplicidade, deixando o que "pertencia ao seu real estado e o Rei queria e lhe mandava".

Onde está a prova de que Santa Joana fazia, perdulariamente e sem necessidade, grandes despesas?

Aliás, analisando o inciso do cronista, pode mesmo concluir-se, sem esforço, que ele talvez não se refira directamente à acção governativa da Princesa mas à exigência de se prover a uma Casa de tantas damas, donzelas e oficiais, cuja sustentação – como indica Damião de Góis, "se não podia fazer sem grande despesa".

Além disso, na hipótese de ter sido D. Afonso V a tomar a iniciativa de enclausurar a filha, como se explica que os procuradores do Povo tenham agido em Odivelas como se D. Joana – e não o Rei – fosse a primeira pessoa de todo este episódio? Mais: se o Monarca, tomando a iniciativa, raciocinasse em bases económicas, como se compreende que ele tenha provido à Casa do Príncipe Herdeiro, com tal esbanjamento que não passou despercebido tanto a Rui de Pina como a Damião de Góis? Aqueles procuradores viriam contrariá-lo, comprometendo-se a financiar os gastos da Casa da Rainha, agora da Princesa.

Rui de Pina apresenta outra razão para o enclausuramento de D. Joana, e esta de ordem moral: D. Afonso V desejaria evitar "alguns escândalos e prejuízos que em sua Casa, por não ser casada, se podiam seguir", Semelhante motivo, no caso de se referir a Santa Joana - o que não se pode asseverar apoditicamente – não se coaduna com a linha evolutiva do seu carácter íntegro. Falar do ambiente de virtude em que foi educada, cresceu e se fez senhora, do desinteresse pelos projectos de casamento que sempre manifestou, do entusiasmo pelas devoções litúrgicas, pelas leituras ascéticas, pelas práticas penitenciais e pelas obras de caridade, e do desejo, sempre crescente, pela vida consagrada falar de tudo isto seria repetir o que sabemos da sua juventude, Nela se desenvolveu todo um processo de vocação sincera e esclarecida, que não foi original porque vulgaríssimo na história da vida monástica.

Sobre aquelas descuidadas palavras, que, quando muito, apenas contêm uma hipótese futura e preventiva, e sobre duas referências genealógicas avulsas, houve quem modernamente arquitectasse um romance de amor falhado, na mira de explicar o recolhimento da Princesa em Odivelas e as renúncias que se lhe seguiram; tal versão é uma pura fantasia e uma afronta gratuita.

Nas Genealogias de Portugal – manuscrito do século XVI, arquivado na Academia das Ciências de Lisboa – diz-se que Duarte de Sousa, filho de Luís Álvares de Sousa e de sua mulher D. Filipa Coutinho, foi mandado degolar por D. Afonso V, "por entrar no paço de noite e lhe acharem um sapato que foi conhecido por seu".

Reflectindo sobre um texto tão impreciso, algumas perguntas ficam sem resposta: – Que paço era este? O do Rei ou o da Princesa? Qual a intenção do fidalgo ao entrar abusivamente no paço? E, ainda que fosse o paço da Princesa e o fim fosse de ordem amorosa, quem nos garante que a pessoa a atingir fosse D. Joana, uma vez que, em sua Casa, havia mais de trinta donzelas e damas nobres? A todas estas interrogações nada responde o linhagista.

Por outro lado, que grau de crédito pode merecer o autor das Genealogias, pois que, logo a seguir, escreve ter tido D. Afonso V dois filhos bastardos? É que não se conhece qualquer bastardo do / 37 / "Africano" que, aliás, foi "sobretudo de mui louvada continência" e "acerca de mulheres mui abstinente" – como testemunha Rui de Pina; depois da morte da Rainha, teve o "propósito de nunca jamais casar e (...) não ter mais filhos que esta Senhora e seu irmão, o Príncipe D. João" – no dizer de Margarida Pinheira. Além disso, sendo D. Afonso V dotado de feitio tão austero e D. Joana avessa ao casamento, como seria possível qualquer sombra de idílio ou aventura amorosa?

Henrique Lopes de Mendonça, em 1920 e, depois, em 1927, supôs que o aventureiro palaciano fosse João Fernandes de Sousa, sobrinho daquele Duarte, o qual teve, efectivamente, vida romanesca no paço com uma certa dama, que veio a desposar. Mas, embora sem atingir a honorabilidade da Princesa, Mendonça só faz palpites e suposições.

Da mesma forma, o Dr. Júlio Dantas, numa das suas cartas literárias, depois incluída no volume Arte de Amar, além de atribuir a vocação religiosa de D. Joana às influências de D. Leonor de Meneses, sem ultrapassar a mera hipótese, vai ao ponto de querer concluir ter sido aquela "tragédia de amor, mais do que um desgosto ou um despeito pela extinção da sua Casa principesca, a causa do recolhimento quase monástico da Infanta D. Joana em Odivelas e, mais tarde, da sua obstinada deliberação de professar em Aveiro no hábito de S. Domingos", e não é de surpreender "muito se amanhã, encontrados novos elementos de prova, a filha de D. Afonso V tiver de ser considerada, não apenas como uma grande santa dominicana, mas também como uma das grandes amorosas da nossa história".

Assim se pretendeu avolumar tal rumor que Marques Rosa, no "romance histórico" Princesa Santa, fez denodados esforços para o demonstrar como realidade. Este livro, porém, não pode ser tomado a sério, embora o autor, procurando em vão solidificar a sua tese ao longo de estiradas páginas, afirme que "averiguações posteriores tornaram absolutamente verosímil aquela hipótese". Infeliz como romance, pouco escrupuloso no respeito a factos históricos, semeado de erros e insinuações e irreverências, o trabalho passou despercebido. A virtude nada sofreu com o desaforo.

Também em Aveiro, no ano de 1901, numa ocasião em que o tema das Ordens Religiosas era um dos assuntos mais comuns nos ataques à Igreja Católica, a lembrança da Princesa foi infelizmente difamada e a sua virtude foi maldosamente posta em causa. No jornal Progresso de Aveiro; dirigido por Ernesto de Freitas, em edição de 16 de Maio, lia-se, entre outras coisas, que "Santa Joana, a formosa filha de D. Afonso V, a quem Luís XI de França envolveu nos seus costumados ardis, levando-o a solicitar a aliança do seu temível adversário Carlos o Temerário (...), veio, segundo reza a má-língua, residir em Aveiro, atraída pelos encantos de certo frade da Ordem de S. Domingos". Passados apenas dois dias, o “Campeão das Províncias”, igualmente de Aveiro, rebateu este consciente atropelo da história, repelindo-o com indignação e denominando-o de "baixo e infame". Não se calou o articulista do Progresso de Aveiro, o que deu ensejo ao erudito aveirógrafo João Augusto Marques Gomes de brilhantemente refutar tal amontoado de mentiras numa série de artigos, sob o título "Retalhos d'História".

Vou terminar. Durante alguns minutos, procurei lembrar como a Princesa soube ser firme na decisão que livremente tomou, defendendo a liberdade da sua consciência na escolha do estado de vida, perante tão grandes dificuldades, perante os protestos dos representantes do Povo e mesmo perante as razões políticas do irmão. Procurei lembrar também como a sua atitude, porque de ordem espiritual, logo desde então não é compreendida ou é mal interpretada por quem não tem a faculdade de descobrir e ver a vocação religiosa dentro do contexto da fé – o único onde ela se enquadra.

Porém, não devemos esquecer que os próprios cronistas definem Santa Joana como uma pessoa emoldurada por virtudes relevantes: – assim, Rui de Pina testemunha que ela "faleceu honestamente sem casar nem obrigação de religião no Mosteiro de Jesus de Aveiro", ou, noutro passo, que viveu em Aveiro, "onde, sem casar, com nome de honesta e mui virtuosa, acabou depois sua vida"; Garcia de Resende, falando da sua morte, anotou que viveu e se finou "solteira sem casar, com vida e obras de mui virtuosa e católica Princesa"; e Damião de Góis, em certa passagem, após a referência à sua ida para Odivelas, escreveu que "foi depois mudada para o Mosteiro de Jesus, de Aveiro, onde viveu até que Deus houve por seu serviço a chamar desta vida para a sempiterna, (...) deixando de si singular exemplo de virtudes, com nome de verdadeira e católica cristã". Estas expressões resumida e magistralmente condensam uma vida inteira, votada a um superior ideal de perfeição e de amor a Deus.

Para as gentes da Beira-Ria, no meio de quem a Princesa Santa Joana viveu, morreu e foi sepultada, as suas relíquias venerandas não podem ser apenas um mero objecto de museu; elas são, sobretudo, termo de piedosas peregrinações. Junto do seu magnífico túmulo, ouve-se murmúrio da prece de quem a considera como amiga e padroeira. Ela é uma daquelas personagens que, eminentes no passado, continuam a ser válidas no presente, pela sua memória inesquecível e pelo seu testemunho extraordinário.

João Gonçalves Gaspar

 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte

pp. 33-37