O primeiro bispo
português na Índia nasceu em Aveiro
Maria Lucília Lencart
Agora que levantamos do pó os arquivos e do esquecimento
todos aqueles que contribuíram para que Portugal, um pequeno pais no
extremo ocidental da Europa, tivesse podido lançar-se na senda dos
Descobrimentos, verifica-se que a Igreja teve um papel preponderante
que, para muitos, passa despercebido. É que, cada nau que partia, cada
frota que saía a barra das costas portuguesas e se fazia ao mar, levava
a bordo sacerdotes que iam sofrer, ao lado dos soldados e dos grandes
capitães, todas as vicissitudes de uma longa viagem às vezes sem
regresso.
Falo hoje do primeiro bispo português que partiu para a
Índia na armada que no ano de 1518 deixou Lisboa, a bordo da qual seguia
também o novo governador da Índia que ia por capitão-mor da armada e ia
suceder a Lopo Soares de Albergaria. O novo governador era Diogo Lopes
de Siqueira e o bispo que levava na nau capitaina era D. Fr. Duarte
Nunes, bispo titular de Laodiceia.
Natural de Aveiro, nessa altura Bispado de Coimbra, era
filho de Fernando Afonso e de sua esposa D. Mécia Nunes, filha de Nuno
Frz. de Gouveia e de D. Aldonça Vaz Cardiza. Tomara o hábito na Ordem
dos Pregadores no Convento de S. Domingos de Aveiro, onde professou.
Era um insigne pregador, erudito, cheio de zelo
apostólico e entusiasmo. Em 1503, o Rei D. Manuel I pedirá ao Papa
Alexandre VI e obterá para D. Fr. Duarte Nunes o título de bispo de
Laodiceia. Laodiceia seria na Frígia Capaciana, sufragânea do
Patriarcado da Constantinopla. Havia também uma Diocese episcopal de
Laodiceia na Síria, sufragânea ao Arcebispado de Damasco e ainda a
Metrópole de Laodiceia sujeita ao Patriarcado de Antioquia. Na Crónica
que consultei, era opinião do seu cronista que se trataria de Laodiceia
na Síria, sufragânea de Damasco, porque só esta cidade tinha o título de
Bispado e as outras de nome logravam a honra de Metrópoles.
Desta forma, tinha o bispo D. Fr. Duarte Nunes uma
situação que lhe permitia vir a tomar conta de um outro cargo de que não
fosse meramente titular. Assim, em 1516 a rogo de D. Diogo
Pinheiro, bispo do Funchal, teria partido para a Ilha da
Madeira e com comissão sua administrou o Sacramento do Crisma aos
moradores daquela Ilha e sagrou a Igreja Catedral da cidade do Funchal.
Teria então voltado ao Continente. D. Manuel I iria enviá-lo para a
Índia. Segundo a Crónica que tive a possibilidade de compulsar, não
levou este prelado jurisdição ordinária, pois esta pertencia então ao
bispo do Funchal D. Diogo Pinheiro, já que à Diocese do Funchal estavam
nesse tempo adstritas e sujeitas todas as conquistas de além-mar e da
Índia. Levou contudo autoridade delegada pela Sé Apostólica para
governar as Igrejas e Cristandades de todo o Estado da Índia,
administrando o Sacramento da Confirmação aos novos cristãos, sagrar
Santos Óleos e pedras de ara e desempenhar todas as demais funções
pertencentes à Ordem Episcopal. Chegado a Goa, principiou
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a exercer o seu múnus com grande gosto e foi muito bem
aceite por todos. Em Goa pregou com grande fruto e conversão de cristãos
e gentios da cidade e dos seus termos.
Encontrou em Goa os religiosos de S. Francisco e alguns
da sua mesma Ordem, que o receberam com inexplicável amor e benignidade
e foram seus coadjutores no exercício do seu ministério pastoral. No
mesmo ano fundaram estes religiosos franciscanos um convento da sua
Ordem, na cidade de Coulão, na costa de Cravanor, e erigiram a Custódia
de S. Tomé que constava então unicamente de três conventos que eram o de
Goa, o de Cananor e o de Coulão, tendo sido seu primeiro custódio o
Padre Fr. António Padrão que neste mesmo ano chegara de Portugal para
onde tinha ido da Índia, em 1507.
O ano de 1519 vai encontrar o bispo D. Fr. Duarte Nunes
na cidade de Cochim, onde a sua pregação do Evangelho atrai e converte
ao Cristianismo muitos gentios.
De Cochim a sua itinerância levou-o à cidade de Coulão,
onde os religiosos de S. Francisco tinham edificado cinco igrejas
paroquiais; nesta cidade e reino continuaram a ser muitos os gentios que
buscaram o seu Baptismo e se fizeram cristãos.
A Igreja cresce com a construção de muitas novas igrejas,
sendo consagrados muitos novos altares.
No ano de 1522, o bispo D. Fr. Duarte Nunes estava de
novo na cidade de Goa, ocupado com os seus antigos ministérios e
levando, por douta e sábia palavra, muitos gentios a reflectirem sobre a
sua vida. Tratava-se de um povo profundamente religioso no sentido amplo
da palavra; necessitava apenas que uma via, que correspondesse ao seu
espiritualismo natural, lhes fosse aberta pelos sacerdotes de Cristo.
Em Goa, juntaram-se-lhe outros religiosos da mesma Ordem
que a sua, entre os quais figuram nomes gravados para a posteridade:
Padres Fr. João de Haro e Fr. Luís de Vitória, que passaram à Índia em
1522 com autoridade do Sumo Pontífice Adriano VI e do Rei de Portugal D.
João III.
Em Setembro de 1522, chegou à barra de Goa uma nau das
três que naquele ano haviam saído de Portugal, da qual era capitão D.
Pedro de Castelo Branco. Trazia a notícia da morte de D. Manuel I,
sucedida em Lisboa a 13 de Dezembro de 1521. Foram necessários nove
longos meses para a notícia da morte do Rei de Portugal chegar à cidade
de Goa, que pertencia à Coroa de Portugal. Era nessa altura governador
D. Duarte de Meneses que estava na Sé Catedral, onde pregava o bispo D.
Fr. Duarte Nunes. No fim do sermão e da Missa, a notícia foi lida; e
logo o governador mandou lançar pregão de que todos tomassem dó (luto) e
que o dessem a seus escravos, não ficando exceptuados desta Lei nem
mouros nem gentios. Na Sé Catedral de Goa, foi levantada uma eça e
celebradas solenes exéquias por D. Manuel I e, no dia seguinte, se lhe
cantou o Ofício, e disse Missa de Pontifical o bispo D. Fr. Duarte Nunes
em cujas palavras evocou as acções e virtudes do falecido Monarca.
Nesse ano, houve um grande levantamento dos mouros contra
os portugueses na cidade de Ormuz e nas vilas de Mascate, Curiate, Soar
e Baharém, sujeitas a Termuxa, Rei de Ormuz, em que ficaram mortos no
campo mais de uma centena de portugueses e onde sofreu glorioso martírio
pela fé de Cristo, o Rei Boto, português, escrivão da Feitoria de
Baharém. Quiseram os mouros que ele abjurasse a sua Fé em Cristo e
abraçasse a de Mafamede. Corajosamente recusou, pelo que foi torturado
pelos mouros durante muitos dias até que, não resistindo mais a tantos
sofrimentos físicos, faleceu, confortado com a sua inabalável fé.
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Em 1523, os religiosos de S. Francisco da Custódia de S.
Tomé de Goa ergueram um convento na cidade de Cochim, dedicado a Santo
António de Lisboa. A construção foi feita a expensas da Fazenda Real por
ordem de D. João III e o convento seria reconstruído em 1580 com esmolas
dos moradores da cidade de Cochim. Era um dos maiores conventos do
Oriente, albergando 60 religiosos, e a igreja estava enobrecida com
muitas relíquias dos Santos Mártires do Japão. Segundo o cronista, teria
sido no ano de 1523 que voltou para o seu Convento de S. Domingos de
Aveiro o bispo D. Fr. Duarte Nunes. Lá tinha sido criado; agora lá
ficaria até à sua morte no ano de 1528. Deixaria os seus bens ao
Convento e aí jaz sepultado. Na sua sepultura, indica o
religioso cronista, foi colocada uma lápide com o seguinte epitáfio:
(1)
VIRTUTUM SPECIMEN JACET HIC, ET PRAESUL EOUS
QUI PRIMUM SACRIS INITIAVIT EOS
INDORUM POPULOS, QUOS LUSITANIA VICIT.
HIC EDUARDUS ERAT RELlGIONE SACRA.
INFRACTOS MAUROS POSTQUAM NON VINCERE POSSE
VIDIT, AD IMPERIUM PRINCIPIS IPSE REDIIT.
QUEM DOMUS HAEC GENUIT, BUSTO HUNC SUSCEPIT AVITO.
RELlGIO HIC PEPERIT, RELlGIO HIC TUMULAT.
Deixou-nos ainda o cronista o seu retrato, dizendo que
foi de disposição alta e proporcionada: o semblante agradável e
edificativo: alvo na cor, os olhos vivos: o queixo de baixo agudo: o
cabelo povoado de cãs e bastantemente calvo. O seu retrato devia existir
em Goa, onde o religioso cronista o observa e relata para a posteridade
em sua crónica, pois nos revela ainda que no seu retrato se deixa ver
vestido do hábito da sua Religião, com murça preta e cruz peitoral: na
mão direita tem o Rosário da Senhora e na esquerda uma Bula Apostólica.
Descreve então as suas armas: um escudo terceado em três palas e partido
em duas faixas com seis quartéis. No primeiro, quarto e quinto, em campo
de prata, duas palas de vermelho; no segundo, terceiro e sexto, em campo
de prata, dois lobos pardos; e, sobre tudo, um escudete da Ordem dos
Pregadores.
Porque respeita à História de Portugal, à História da
Igreja Católica Romana, à História de Aveiro, achei que devia trazer à
luz do dia na Diocese onde iniciou a sua vida religiosa e onde a
terminou, o vulto eminente do Prelado D. Fr. Duarte Nunes que, por ordem
do Rei D. Manuel I, foi o primeiro bispo português da Índia, onde em
1622 presidiu aos ofícios solenes da morte do Rei de Portugal.
Sem o auxílio e sacrifício extremo dos membros da Igreja,
nunca teria sido possível a fixação dos portugueses pelo mundo. Ao lado
dos soldados e dos capitães das fortalezas onde tremulava a bandeira de
Portugal, ao lado dos vice-reis e governadores, os sacerdotes
portugueses, renunciando a si mesmos, foram mestres da Palavra de
Cristo, foram professores em colégios que fundaram, foram enfermeiros e
vigilantes junto dos enfermos portugueses, gentios ou mouros que aos
seus hospitais chegavam ou então, de casa em casa, no litoral ou no
sertão, debaixo de sol tórrido ou de chuvas intensas características
daquelas regiões, os iam curar física e moralmente. Foram eles que
ergueram igrejas, conventos e recolhimentos especialmente para mulheres,
já que nesses tempos a mulher era um ser brutalmente tratado e
abandonado à sua sorte. Eram eles que proviam ao transporte dos defuntos
e ao seu enterramento condigno como seres humanos. Na Índia longínqua,
muitos sacerdotes portugueses deixaram as suas vidas. Uns, por morte
natural, outros porque, durante as revoltas, os mouros os massacravam.
Sofreram sedes, fomes, pestes, guerras. Nada os desanimava. Não se
instalavam. Eram permanentes caminheiros em sua missão sagrada. Climas
doentios que os faziam voltar por vezes ao Continente. Mas, logo em
seguida, se encontram de novo os seus nomes na Índia, na China, por todo
o lado onde foi levado o nome de Portugal.
Maria Lucília Lencart
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(1)
– Tradução: «Aqui jaz um espelho de virtudes e prelado do Oriente
que primeiramente iniciou nos mistérios sagrados aqueles povos da Índia,
que Portugal venceu. Este era Duarte, na sagrada religião. Como visse
que não podia vencer a pertinácia dos mouros, regressou ao Reino do
Príncipe. Esta casa, que o gerou, recebeu-o na sepultura dos
antepassados. Aqui a religião o gerou, aqui a religião o tem sepultado.
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