Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 13-14 - Ano VII - 1989


O primeiro bispo português na Índia nasceu em Aveiro
Maria Lucília Lencart

 

Agora que levantamos do pó os arquivos e do esquecimento todos aqueles que contribuíram para que Portugal, um pequeno pais no extremo ocidental da Europa, tivesse podido lançar-se na senda dos Descobrimentos, verifica-se que a Igreja teve um papel preponderante que, para muitos, passa despercebido. É que, cada nau que partia, cada frota que saía a barra das costas portuguesas e se fazia ao mar, levava a bordo sacerdotes que iam sofrer, ao lado dos soldados e dos grandes capitães, todas as vicissitudes de uma longa viagem às vezes sem regresso.

Falo hoje do primeiro bispo português que partiu para a Índia na armada que no ano de 1518 deixou Lisboa, a bordo da qual seguia também o novo governador da Índia que ia por capitão-mor da armada e ia suceder a Lopo Soares de Albergaria. O novo governador era Diogo Lopes de Siqueira e o bispo que levava na nau capitaina era D. Fr. Duarte Nunes, bispo titular de Laodiceia.

Natural de Aveiro, nessa altura Bispado de Coimbra, era filho de Fernando Afonso e de sua esposa D. Mécia Nunes, filha de Nuno Frz. de Gouveia e de D. Aldonça Vaz Cardiza. Tomara o hábito na Ordem dos Pregadores no Convento de S. Domingos de Aveiro, onde professou.

Era um insigne pregador, erudito, cheio de zelo apostólico e entusiasmo. Em 1503, o Rei D. Manuel I pedirá ao Papa Alexandre VI e obterá para D. Fr. Duarte Nunes o título de bispo de Laodiceia. Laodiceia seria na Frígia Capaciana, sufragânea do Patriarcado da Constantinopla. Havia também uma Diocese episcopal de Laodiceia na Síria, sufragânea ao Arcebispado de Damasco e ainda a Metrópole de Laodiceia sujeita ao Patriarcado de Antioquia. Na Crónica que consultei, era opinião do seu cronista que se trataria de Laodiceia na Síria, sufragânea de Damasco, porque só esta cidade tinha o título de Bispado e as outras de nome logravam a honra de Metrópoles.

Desta forma, tinha o bispo D. Fr. Duarte Nunes uma situação que lhe permitia vir a tomar conta de um outro cargo de que não fosse meramente titular. Assim, em 1516 a rogo de D. Diogo

Pinheiro, bispo do Funchal, teria partido para a Ilha da Madeira e com comissão sua administrou o Sacramento do Crisma aos moradores daquela Ilha e sagrou a Igreja Catedral da cidade do Funchal. Teria então voltado ao Continente. D. Manuel I iria enviá-lo para a Índia. Segundo a Crónica que tive a possibilidade de compulsar, não levou este prelado jurisdição ordinária, pois esta pertencia então ao bispo do Funchal D. Diogo Pinheiro, já que à Diocese do Funchal estavam nesse tempo adstritas e sujeitas todas as conquistas de além-mar e da Índia. Levou contudo autoridade delegada pela Sé Apostólica para governar as Igrejas e Cristandades de todo o Estado da Índia, administrando o Sacramento da Confirmação aos novos cristãos, sagrar Santos Óleos e pedras de ara e desempenhar todas as demais funções pertencentes à Ordem Episcopal. Chegado a Goa, principiou / 28 /

a exercer o seu múnus com grande gosto e foi muito bem aceite por todos. Em Goa pregou com grande fruto e conversão de cristãos e gentios da cidade e dos seus termos.

Encontrou em Goa os religiosos de S. Francisco e alguns da sua mesma Ordem, que o receberam com inexplicável amor e benignidade e foram seus coadjutores no exercício do seu ministério pastoral. No mesmo ano fundaram estes religiosos franciscanos um convento da sua Ordem, na cidade de Coulão, na costa de Cravanor, e erigiram a Custódia de S. Tomé que constava então unicamente de três conventos que eram o de Goa, o de Cananor e o de Coulão, tendo sido seu primeiro custódio o Padre Fr. António Padrão que neste mesmo ano chegara de Portugal para onde tinha ido da Índia, em 1507.

O ano de 1519 vai encontrar o bispo D. Fr. Duarte Nunes na cidade de Cochim, onde a sua pregação do Evangelho atrai e converte ao Cristianismo muitos gentios.

De Cochim a sua itinerância levou-o à cidade de Coulão, onde os religiosos de S. Francisco tinham edificado cinco igrejas paroquiais; nesta cidade e reino continuaram a ser muitos os gentios que buscaram o seu Baptismo e se fizeram cristãos.

A Igreja cresce com a construção de muitas novas igrejas, sendo consagrados muitos novos altares.

No ano de 1522, o bispo D. Fr. Duarte Nunes estava de novo na cidade de Goa, ocupado com os seus antigos ministérios e levando, por douta e sábia palavra, muitos gentios a reflectirem sobre a sua vida. Tratava-se de um povo profundamente religioso no sentido amplo da palavra; necessitava apenas que uma via, que correspondesse ao seu espiritualismo natural, lhes fosse aberta pelos sacerdotes de Cristo.

Em Goa, juntaram-se-lhe outros religiosos da mesma Ordem que a sua, entre os quais figuram nomes gravados para a posteridade: Padres Fr. João de Haro e Fr. Luís de Vitória, que passaram à Índia em 1522 com autoridade do Sumo Pontífice Adriano VI e do Rei de Portugal D. João III.

Em Setembro de 1522, chegou à barra de Goa uma nau das três que naquele ano haviam saído de Portugal, da qual era capitão D. Pedro de Castelo Branco. Trazia a notícia da morte de D. Manuel I, sucedida em Lisboa a 13 de Dezembro de 1521. Foram necessários nove longos meses para a notícia da morte do Rei de Portugal chegar à cidade de Goa, que pertencia à Coroa de Portugal. Era nessa altura governador D. Duarte de Meneses que estava na Sé Catedral, onde pregava o bispo D. Fr. Duarte Nunes. No fim do sermão e da Missa, a notícia foi lida; e logo o governador mandou lançar pregão de que todos tomassem dó (luto) e que o dessem a seus escravos, não ficando exceptuados desta Lei nem mouros nem gentios. Na Sé Catedral de Goa, foi levantada uma eça e celebradas solenes exéquias por D. Manuel I e, no dia seguinte, se lhe cantou o Ofício, e disse Missa de Pontifical o bispo D. Fr. Duarte Nunes em cujas palavras evocou as acções e virtudes do falecido Monarca.

Nesse ano, houve um grande levantamento dos mouros contra os portugueses na cidade de Ormuz e nas vilas de Mascate, Curiate, Soar e Baharém, sujeitas a Termuxa, Rei de Ormuz, em que ficaram mortos no campo mais de uma centena de portugueses e onde sofreu glorioso martírio pela fé de Cristo, o Rei Boto, português, escrivão da Feitoria de Baharém. Quiseram os mouros que ele abjurasse a sua Fé em Cristo e abraçasse a de Mafamede. Corajosamente recusou, pelo que foi torturado pelos mouros durante muitos dias até que, não resistindo mais a tantos sofrimentos físicos, faleceu, confortado com a sua inabalável fé. / 29 /

Em 1523, os religiosos de S. Francisco da Custódia de S. Tomé de Goa ergueram um convento na cidade de Cochim, dedicado a Santo António de Lisboa. A construção foi feita a expensas da Fazenda Real por ordem de D. João III e o convento seria reconstruído em 1580 com esmolas dos moradores da cidade de Cochim. Era um dos maiores conventos do Oriente, albergando 60 religiosos, e a igreja estava enobrecida com muitas relíquias dos Santos Mártires do Japão. Segundo o cronista, teria sido no ano de 1523 que voltou para o seu Convento de S. Domingos de Aveiro o bispo D. Fr. Duarte Nunes. Lá tinha sido criado; agora lá ficaria até à sua morte no ano de 1528. Deixaria os seus bens ao Convento e aí jaz sepultado. Na sua sepultura, indica o religioso cronista, foi colocada uma lápide com o seguinte epitáfio: (1)

VIRTUTUM SPECIMEN JACET HIC, ET PRAESUL EOUS

QUI PRIMUM SACRIS INITIAVIT EOS

INDORUM POPULOS, QUOS LUSITANIA VICIT.

HIC EDUARDUS ERAT RELlGIONE SACRA.

INFRACTOS MAUROS POSTQUAM NON VINCERE POSSE

VIDIT, AD IMPERIUM PRINCIPIS IPSE REDIIT.

QUEM DOMUS HAEC GENUIT, BUSTO HUNC SUSCEPIT AVITO.

RELlGIO HIC PEPERIT, RELlGIO HIC TUMULAT.

Deixou-nos ainda o cronista o seu retrato, dizendo que foi de disposição alta e proporcionada: o semblante agradável e edificativo: alvo na cor, os olhos vivos: o queixo de baixo agudo: o cabelo povoado de cãs e bastantemente calvo. O seu retrato devia existir em Goa, onde o religioso cronista o observa e relata para a posteridade em sua crónica, pois nos revela ainda que no seu retrato se deixa ver vestido do hábito da sua Religião, com murça preta e cruz peitoral: na mão direita tem o Rosário da Senhora e na esquerda uma Bula Apostólica. Descreve então as suas armas: um escudo terceado em três palas e partido em duas faixas com seis quartéis. No primeiro, quarto e quinto, em campo de prata, duas palas de vermelho; no segundo, terceiro e sexto, em campo de prata, dois lobos pardos; e, sobre tudo, um escudete da Ordem dos Pregadores.

Porque respeita à História de Portugal, à História da Igreja Católica Romana, à História de Aveiro, achei que devia trazer à luz do dia na Diocese onde iniciou a sua vida religiosa e onde a terminou, o vulto eminente do Prelado D. Fr. Duarte Nunes que, por ordem do Rei D. Manuel I, foi o primeiro bispo português da Índia, onde em 1622 presidiu aos ofícios solenes da morte do Rei de Portugal.

Sem o auxílio e sacrifício extremo dos membros da Igreja, nunca teria sido possível a fixação dos portugueses pelo mundo. Ao lado dos soldados e dos capitães das fortalezas onde tremulava a bandeira de Portugal, ao lado dos vice-reis e governadores, os sacerdotes portugueses, renunciando a si mesmos, foram mestres da Palavra de Cristo, foram professores em colégios que fundaram, foram enfermeiros e vigilantes junto dos enfermos portugueses, gentios ou mouros que aos seus hospitais chegavam ou então, de casa em casa, no litoral ou no sertão, debaixo de sol tórrido ou de chuvas intensas características daquelas regiões, os iam curar física e moralmente. Foram eles que ergueram igrejas, conventos e recolhimentos especialmente para mulheres, já que nesses tempos a mulher era um ser brutalmente tratado e abandonado à sua sorte. Eram eles que proviam ao transporte dos defuntos e ao seu enterramento condigno como seres humanos. Na Índia longínqua, muitos sacerdotes portugueses deixaram as suas vidas. Uns, por morte natural, outros porque, durante as revoltas, os mouros os massacravam. Sofreram sedes, fomes, pestes, guerras. Nada os desanimava. Não se instalavam. Eram permanentes caminheiros em sua missão sagrada. Climas doentios que os faziam voltar por vezes ao Continente. Mas, logo em seguida, se encontram de novo os seus nomes na Índia, na China, por todo o lado onde foi levado o nome de Portugal.

Maria Lucília Lencart

_______________________________________

(1)Tradução: «Aqui jaz um espelho de virtudes e prelado do Oriente que primeiramente iniciou nos mistérios sagrados aqueles povos da Índia, que Portugal venceu. Este era Duarte, na sagrada religião. Como visse que não podia vencer a pertinácia dos mouros, regressou ao Reino do Príncipe. Esta casa, que o gerou, recebeu-o na sepultura dos antepassados. Aqui a religião o gerou, aqui a religião o tem sepultado.

 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte

pp. 27-29