Monumento Megalítico de
Mamodeiro
Maria Miguel Lucas
INTRODUÇÃO
A leitura dos inéditos do Dr. Alberto Souto alertou-nos
para um problema que não tem sido colocado no plano da evolução
cronológica da região de Aveiro: o da Pré-História antiga. Como viveram
as populações do litoral aveirense o fenómeno da neolitização? Quais as
suas especificidades locais? Qual, e como era, verdadeiramente, o
território que então ocupavam?
Talvez não consigamos responder, pelo menos inteiramente,
a muitas das perguntas colocadas. No entanto, há que tentar abordar o
problema.
Situada na costa atlântica, também esta região não
escapou à ocorrência da «moda sepulcral megalítica», fenómeno atlântico
por excelência. Apesar de tudo, as características climatéricas e
geomorfológicas da região terão contribuído para a progressiva
eliminação dos vestígios monumentais desse período, paralelamente ao
factor do franco desenvolvimento económico local, que sempre viu
necessidade de sacrificar a si o passado.
Quase por acaso, tivemos a oportunidade de identificar, e
localizar, a subsistência de um desses monumentos megalíticos, não muito
longe de Aveiro. Em péssimo estado de conservação, o seu tamanho deixa,
ainda assim, supor a antiga monumentalidade, reflexo do status dessas
populações autóctones. Alguns materiais de superfície, cronologicamente
relacionáveis com a época, dão algumas pistas quanto às actividades
económicas desenvolvidas, testemunhando, mais uma vez, a efectiva
existência de populações «neolíticas» no local.
Deste modo, apresenta-se-nos uma ocasião quase única de
proceder ao estudo do pouco que resta do passado pré-histórico da
região, sendo um grave erro, quanto a nós, não aproveitar deste
monumento os conhecimentos que nos pode vir a fornecer através da
realização de uma escavação cientificamente planeada.
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RELATÓRIO
Tudo começou com um bocado de papel almaço, parte
integrante do ficheiro pessoal do Dr. Alberto Souto, datado de Setembro
de 1941 (anexo 1).
Numa época em que a Arqueologia começava a dar os
primeiros passos em Portugal, procurando impor-se no seio das ciências
pelo rigor técnico e pelo método científico que defendia, foram homens
como Alberto Souto, a par de Santos Rocha ou Martins Sarmento (para só
citar alguns nomes), os paladinos deste projecto a nível local e
regional que elevaram à projecção nacional pelo seu próprio mérito, e
pelo valor dos seus contributos científicos. Souberam, assim,
destacar-se de uma multidão de intelectuais desafogados e curiosos bem
intencionados, que, com melhores ou piores intenções, praticava a
Arqueologia nas suas horas vagas.
Um enorme esforço de auto-valorização e actualização
científica, bem como a dimensão polifacetada do seu carácter
intelectual, fizeram de Alberto Souto um pioneiro em domínios tão
variados como os da biologia, geologia ou arqueologia, já não falando da
museologia em si. O seu espírito metódico tê-lo-á levado à pesquisa e
inventariação regional dos mais variados âmbitos temáticos. Assim,
encontrámos disperso em pequenas fichas e anotações pessoais o seu
inventário de «monumentos megalíticos do distrito de Aveiro», que,
infelizmente, não terá podido publicar com o rigor que lhe era
característico, estando mesmo muitos desses monumentos para confirmar e
localizar, permanecendo inéditos até hoje.
Não era esse o caso do nosso monumento megalítica de
Mamadeira, que chegou mesmo a ser prospectado por este estudioso,
segundo testemunhos locais, que confirmam o do próprio Alberto Souto.
Fomos verificar. O monumento situa-se no sítio da Mamoa
do lugar de Mamadeira, o qual pertencia à antiga freguesia de Requeixo e
actualmente se insere na freguesia de N. Sra. de Fátima (fotografia 1).
Pudemos localizá-lo topograficamente nas Cartas Militares (coordenadas
quilométricas – anexos 2 e 3):
1: 25 000 – n.º 185 1: 250 000 – n.º 3
Long. 536,95 Long.53,73
Lati. 4 493,28 Lati. 449,33
Pareceu-nos corresponder exactamente a um ponto de cota
78; de qualquer forma, implantado num plateau de cota 50/60, não
seria provável uma altitude superior. A florestação actual não o permite
visualizar no terreno, mas trata-se do ponto de cota mais alta nesse
sítio, pelo que deve ter-se destacado bem na paisagem. O tumulus
é baixo, embora deva ter sido mais alto, encontrando-se agora desgastado
pela acção milenar da erosão humana e atmosférica. O facto de se situar
no limite entre um pinhal, que cobre a mamoa, e de um eucaliptal sugere
a função secular de marco divisório de propriedade, frequente em
monumentos deste tipo. A mamoa é de grande diâmetro (cerca de trinta
metros), circular e ligeiramente alongada, sem couraça pétrea,
apresentando cratera de violação. Esta, perfeitamente quadrangular,
intriga-nos pelo seu aspecto recente. A população lembra-se das
prospecções de Alberto Souto no local «há cinquenta anos», mas mais
nada. Serão estes os vestígios de há cinquenta anos (fotografia 2)? A
prática da «Arqueologia» por curiosos bem ou mal intencionados é de
todos os tempos e, de qualquer modo, não é invulgar que se busque o ouro
dos mouros ou, mais simplesmente, pedras para os umbrais de portas e
janelas...
De qualquer maneira, como diziam as pessoas com quem
falámos, batendo simultaneamente com a enxada no chão do monumento:
«Soa a oco, menina. Soa a oco!». E soava. Qual o tipo
arquitectónico da estrutura subjacente? Alberto Souto
cita-a como tendo «galeria e cripta», embora tivessem roubado os
esteios(1).
Tratar-se-ia de um monumento de câmara e corredor? Este tipo
arquitectónico não é o mais característico do norte de Portugal, embora
haja a ter em conta o carácter inédito do estudo deste fenómeno
na região... Só uma exploração sistemática do monumento
poderá responder à questão(2).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aveiro e a sua região parecem caracterizar-se, nos
manuais, pela relativa recência do seu passado histórico. O próprio
período medieval quase não foi abordado e no estudo, já efectuado, das
idades proto-históricas e da romanização, urge fazer necessárias
revisões e actualizações, passados que foram os tempos áureos de Rocha
Madahil, Alberto e Dulce Souto, entre outros. Aveiro parece assim
emergir de um passado nebuloso por alturas dos séculos XIV e XV. E se a
romanização foi (e vai sendo) mais ou menos abordada, o mesmo não se
passou com a Pré-História, que só agora começa a ser
detectada a nível de megalitismo.(3)
Novos métodos surgem para a abordagem de um problema que
persiste como um dos mais complexos e enigmáticos de uma pré-história já
de si perplexa perante a falta de fontes seguras de informação. Às
teorias difusionistas iniciais sucederam-se outras, cientificamente e
progressivamente melhor alicerçadas. Hoje, as teorias de ponta sobre o
problema são as de autores amadurecidos pelos métodos da Nova
Arqueologia e
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pelo desenvolvimento da «point pattern analysis» da Arqueologia
Espacial. Deste modo, o que até aqui era explicado em termos de
cronologia ou influências externas (de tipo invasão ou aculturação) é
agora atribuível, dentro de um mesmo período cronológico (grosso modo
definido dentro do período temporal em que se pensa ter ocorrido o
fenómeno megalítico – entre o 4.º e o 3.º milénios a.C.), a diferentes
estádios de hierarquização social, a diferentes economias e estruturas
políticas, etc.
Pensa-se ter detectado o modo de vida base das populações
megalíticas: vivendo em estado de semi-nomadismo, praticariam uma
economia mista em que a pesca, a caça, a criação de gado e a recolecção
teriam tanto ou mais peso que uma agricultura rudimentar e pouco
produtiva, geralmente do tipo itinerante de queimada, talvez a única
forma conhecida de fertilizar os solos. Seria esta dependência do meio a
determinar a instabilidade dos seus habitats, sendo a mamoa – o
cemitério – o único ponto fixo no território habitado por uma população
de (re)colectores-caçadores-pescadores que alternavam sazonalmente, no
interior da sua zona de exploração, o seu local de habitat e a
respectiva área de cultura. Esta forma de determinismo geográfico
implicava, assim, a existência de um meio que se caracterizasse pela
relativa proximidade de terrenos de cultura, de linhas de água, e pela
existência de caça e/ou pastagens.
A mamoa servia, assim, como marca de delimitação
territorial a uma comunidade populacional relativamente restrita (que
teria de sobreviver do que retirasse daquela área de exploração),
servindo, simultaneamente, como forma de evidenciar, pela sua maior ou
menor monumental idade, o status dessa tribo.
Estas teorias, defendidas por autores como Renfrew ou
Chapman, derivam directamente das principais constantes passíveis
de detecção, até ao momento, na ocorrência de fenómenos
megalíticos, a nível europeu(4):
– o tipo de construção em grandes pedras;
– a inumação colectiva;
– a relativa pobreza do espólio;
– a sua distribuição essencialmente litoral (e
atlântica).
Procurando adequar-se e responder-lhes pontualmente, com
base nestas premissas, e visando comprová-las, o estudo deverá ser
desenvolvido aos seus três níveis – o do túmulo, o da necrópole em que
este se insere, o da região – na medida em que só assim poderão ser
identificadas e caracterizadas as especificidades locais de um fenómeno
que prima, essencialmente, pelo seu acentuado polimorfismo local,
regional, e inclusivamente atlântico. E estes três níveis de observação
puderam ser concebidos na medida em que se verificou também
a raridade da ocorrência do fenómeno de uma forma isolada no
terreno.(5)
Também para este problema se procurou encontrar um modelo de explicação
adequado e, assim, teoreticamente, o caso é justificado, com base nos
contributos da etno-arqueologia comparada, da antropologia e sociologia,
pela hipótese de se tratar, não de um (ou vários) grupo tribal
independente, mas, sim, de vários subgrupos, habitando áreas
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de exploração confinantes e unidos por um antepassado comum, cada um
enterrando os seus mortos na respectiva mamoa (também, por isso, de
inumação colectiva).
O nosso monumento não destoa no que diz respeito a estas
constantes: ainda hoje rodeado de terrenos de cultura, tendo servido até
aqui de marca de delimitação territorial, localizado próximo de linhas
de água, e de implantação geográfica eminentemente litoral e atlântica,
os problemas põem-se aqui ao nível da medida e macro escala. Qual a
necrópole em que se inseria a mamoa? E, actual linha de costa, qual a
sua distância do mar, ou do rio, na época?
Não nos interessa aqui tanto o problema da evolução da
linha do litoral: não é que não fosse de extraordinária importância,
para geólogos como para arqueólogos e historiadores, mas porque ainda
hoje não foi resolvido e não está no nosso âmbito fazê-lo. Calcula-se a
recência quaternária da formação da costa actual, mas
as opiniões dividem-se quanto à sua idade absoluta.
Amorim Girão(6)
e Alberto Souto(7)
terão sido os primeiros a tentar uma abordagem global do problema, logo
após as observações de Paul Choffat terem estabelecido a sua
cronologia quaternária. E, já na época, não conseguiam
estar de acordo quanto ao problema.(8)
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Os seus escritos interessam-nos de sobremaneira; no
entanto, na medida em que nos podem responder, de certo modo, às
questões anteriormente levantadas. Na verdade, ambos procuraram
fundamentar as suas opiniões não só em dados fornecidos por observações
de carácter geográfico, mas também em dados de ordem toponímica (e
microtoponímica) e arqueológica que recolheram para o efeito. Assim, A.
Girão via nesses vestígios os resquícios subsistentes das populações
neolíticas e proto-históricas autóctones que, então, habitavam o
primitivo litoral. E, um dos informes utilizados para o
efeito foi precisamente o da nossa Mamoa,(9)
juntamente com a Pedra Moira (a SE de Aveiro) e a Mamoa de Estarreja.
Ainda quanto à proximidade das linhas de água,
actualmente, a distância à laguna de Fermentelos é relativamente curta e
alguns ribeiros correm no local. Esta laguna foi outrora considerada
como a antiga foz do Vouga. Hoje a teoria está posta de lado, mas, mesmo
assim, apresentamos o mapa elaborado por A. Girão (anexo 4) em que
localiza a nossa mamoa em relação à que defendia ser a primitiva linha
da costa. Embora hoje se não concorde com a localização da foz, o seu
traçado antigo não foi muito posto em causa.
Concordamos com este autor quanto ao carácter destes
informes enquanto «pistas» de um passado que agora só pode ser
convenientemente conhecido ao nível arqueológico. E, deste modo,
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ficamos certos (se algumas dúvidas havia) da existência de populações
megalíticas no litoral aveirense. Que, efectivamente, terão praticado a
agricultura, ou qualquer outro tipo de actividade económica, nesta zona
do litoral aveirense, parece testemunhá-lo um achado a que faz
referência um outro inédito do ficheiro pessoal de
Alberto Souto: «uma ponta de sílex em lança» (anexo 5)
(10)...
Mas qual a necrópole dolménica em que o monumento se
inseria? Seguindo os mesmos passos dos dois antigos arqueólogos,
procurámos outros microtopónimos na zona que nos pudessem elucidar.
Assim, descobrimos alguns que falam por si: Azenha da Mamoal, Arrôtas,
Mama da Pega (Oliveirinha), etc. Serão, efectivamente, os vestígios da
necrópole de que só o nosso monumento sobreviveu? Não o podemos afirmar,
mas fica a hipótese, ou a teoria...
Pensamos com isto ter comprovado a ocorrência de um
fenómeno pré-histórico – o megalítico – numa área que até agora foi
abordada no âmbito da sua recência histórica, predominantemente.
Pensamos ainda ter contribuído, modestamente, para o início do
estudo da Pré-História da zona, com a localização rigorosa do que parece
ser o último sobrevivente litoral do fenómeno. Temos consciência, no
entanto, de que a própria cartografia rigorosa destes monumentos só terá
interesse na medida em que possamos saber com clareza o que está a ser
cartografado, «uma vez que, no mesmo núcleo ou conjunto monumental se
podem ter sobreposto diferentes lógicas, tanto mais
que é de esperar uma longa vigência temporal destas necrópoles».(11)
Assim, urge dar início ao estudo sistemático deste
fenómeno a nível local, se não quisermos sacrificá-lo também ao
progresso da agricultura e da urbanização, complementando a cartografia
exaustiva dos monumentos com o seu estudo, individual ou selectivo,
através de prospecções e escavações cientificamente planeadas e
elaboradas.
Maria Miguel Lucas
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NOTAS
(1)
– Infelizmente, a ficha de que retirámos esta informação desapareceu
desde que a vimos em 1985, pelo que não podemos documentá-la.
Referimo-lo, no entanto, na medida em que consideramos ser de bastante
importância.
(2)
– Agradecemos o apoio concedido pela Câmara Municipal de Aveiro e a
ajuda prestada pelos habitantes de Mamodeiro, e, nomeadamente, aos
senhores Jaime e Porfírio Carvalho que, amavelmente, nos conduziram ao
local.
(3)
– Fernando Pereira da Silva encontra-se a estudar o núcleo megalítico de
Escariz, tendo feito a cartografia dos monumentos do concelho de Arouca.
Ana Bettencourt começou recentemente o estudo do núcleo megalítico da
Serra do Arestal, com o apoio da Câmara Municipal de Sever do Vouga. O
concelho de Vale de Cambra começou, também, recentemente, a preocupar-se
com estes problemas.
(4)
– V. Jorge, Projectar o passado..., Lisboa, 1987, p. 219-221.
(5)
– Ibidem, p. 245: "os monumentos surgem geralmente agrupados em pequenos
núcleos que, por sua vez, se integram em conjuntos mais ou menos
extensos; tais agrupamentos aproveitam normalmente zonas planas situadas
a diferentes altitudes».
(6)
– A. Girão, A Bacia do Vouga, Coimbra, 1922.
(7)
– A. Souto, Origens da ria de Aveiro, Aveiro, 1923.
(8)
– A. Girão remontava o inicio da formação da "ria» à época romana; A.
Souto punha-o numa época pré-romana.
(9)
– A. Girão, idem, p. 58; Investigando os livros de registos das matrizes
prediais, na 2.ª Repartição de Finanças, referentes às propriedades da
antiga freguesia de Requeixo, descobrimos, efectivamente, a antiguidade
da utilização deste micro-topónimo.
(10)
– Objecto que se deve encontrar no Museu Regional de Aveiro, mas o
estado de desorganização a que foram deixando chegar os materiais de
Pré-História, não nos permitiram identificá-lo na amálgama existente, a
maior parte já sem a indicação de proveniência.
(11)
– V. Jorge, idem, p. 244.
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«Situada na costa atlântica, também esta região de Aveiro não
escapou à ocorrência da moda sepulcral megalítica, fenómeno
atlântico por excelência. Apesar de tudo, as características
climatéricas e geomorfológicas da região terão contribuído para
a progressiva eliminação dos vestígios monumentais desse
período, paralelamente ao factor do franco desenvolvimento
económico local, que sempre viu necessidade de sacrificar a si o
passado».
Maria Miguel Lucas
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