Homenagem ao Dr. Alberto
Souto
Ocorreu no dia 23 de Julho de 19880 primeiro centenário
do nascimento do Dr. Alberto Souto, insigne aveirense que, por muitas e
variadíssimas formas, trabalhou pelo progresso da sua Terra, Dotado de
vasta cultura; foi arqueólogo, etnógrafo, historiador, jornalista,
orador, director do Museu de Aveiro, presidente da Câmara Municipal e
lídima personalização dos sentimentos colectivos da nossa gente. Faleceu
no Bonsucesso, Aradas, em 23 de Outubro de 1967.
Quatro meses antes de morrer, ele próprio diria de si
mesmo, em discurso público: – «Destituído de honras e títulos e cargos
oficiais, conservo, com muito aprazimento e perfeita compreensão de
responsabilidades, a missão de representar ainda e sempre o espírito da
Terra, a alma, o pensamento e o sentimento da Cidade, em toda a parte e
em todos os momentos que me seja possível e seja necessário afirmar os
nossos brios ou cumprir os nossos grandes deveres colectivos,
Outorgou-me esse encargo, desde há longas décadas, aquele voto do povo
meu conterrâneo que não precisa de urnas eleitorais nem de políticas de
qualquer espécie, nem de grupos ou partidas para me afirmar a sua
confiança e me atribuir o seu mandato.»
E no próprio dia do funeral, o Dr. Francisco do Vale
Guimarães afirmaria: – «Por duas vezes na sua história os aveirenses
elegeram, em lista aberta, procuradores vitalícios: José Estêvão no
século passado, Alberto Souto no actual. Ambos comungando nos mesmos
ideais, ambos magnamente identificados com o ser e sentir do povo, ser e
sentir que não se medem apenas por amor bairrista porque caldeiam em
síntese de sentimentos e ideais; ambos, em cada época, as mais altas
expressões da intelectualidade aveirense; ambos, cumulando a terra de
serviços inestimáveis que a tornaram maior e mais a engrandeceram;
ambos, acrescentando a Aveiro honra e glória – a honra e glória do seu
prestígio pessoal.»
A Edilidade Aveirense recordou a efeméride e, sobretudo,
homenageou o Homem que tal data especialmente evocava. Na igreja matriz
de Aradas, foi celebrada a Eucaristia, presidida por Mons. João
Gonçalves Gaspar, vigário-geral da Diocese; participaram no acto os
familiares do Dr. Alberto Souto, os representantes do Governo Civil da
Câmara Municipal e de várias colectividades, os alunos do Colégio
Distrital e outras pessoas. Foi tudo simples e digno, No final desta
cerimónia litúrgica, seguiu-se uma romagem à sua campa, no cemitério de
Aradas.
Transcrevem-se seguidamente as palavras proferidas na
igreja por Mons. João Gaspar, como homilia da Missa:
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Estamos reunidos em ambiente litúrgico, nesta igreja
matriz de S. Pedro de Aradas. E, ao dizer que nos encontramos em
ambiente litúrgico, quero significar que não é a ocasião para fazer
qualquer elogio de alguém, porque aqui apenas se deve louvar e adorar a
Deus, apenas se deve louvar e venerar os santos oficialmente
reconhecidos. Tudo o mais seria descabido e estaria deslocado.
Ocorre precisamente hoje o primeiro centenário do
nascimento do Dr. Alberto Souto; foi em 23 de Julho de 1888 que ele viu
pela primeira vez a luz do dia – a luz de Aveiro – no lugar do
Bonsucesso, não longe do local onde nos encontramos. Com alguns dias de
idade, foi devota e carinhosamente trazido a este templo para receber o
sacramento do Baptismo que o regenerou para a Fé cristã e o tornou filho
de Deus e membro da Igreja Católica; os pais Manuel Germano Simões e
Rufina Amália – eram pessoas religiosas e praticantes, que se ocupavam
das fainas agrícolas.
Vencidos os primeiros estudos na escola primária,
ingressou no Seminário de Coimbra, onde frequentou o curso de
preparatórios e o primeiro ano de teologia; não seriam vãos esses
tempos, essa formação e essa convivência. Vendo, porém, não ser por aí a
sua vocação na vida, aconselhou-se com o seu mestre e nosso conterrâneo
– que depois seria nosso bispo – D. João Evangelista de Lima Vidal, e
deixou a carreira eclesiástica. Não lhe parecia fácil concretizar esta
decisão, que provinha do mais íntimo da sua consciência, dado o ambiente
familiar desfavorável.
Foi o Cónego João Evangelista que convenceu o pai a
aceitá-lo e a permitir-lhe que continuasse os estudos mesmo na
Universidade de Coimbra, onde se formou na Faculdade de Direito. Algumas
vezes eu próprio ouvi dizer ao Dr. Alberto Souto, falando até
publicamente: – Devo ao Sr. D. João Evangelista a graça de não ser
padre; se o fosse, não cumpriria a minha missão.
Volto atrás para repetir que nos encontramos em ambiente
litúrgico. Por isso, não me compete aqui falar de um dos maiores
aveirenses da actualidade, não só pelo talento e cultura, mas sobretudo
pela devoção com que sempre sacrificou a carreira política e a própria
saúde em defesa das aspirações e do engrandecimento de Aveiro. Não posso
nem pretendo aqui elogiar aquele que, sem qualquer interesse material,
acudia aos que se apoiavam no seu valimento. Antes de morrer, escrevendo
a alguém de Aveiro, deixou transparecer a sua dedicação aos mais pobres:
– "Deixo a si, meu amigo, um abraço para todos os humildes de Aveiro.
É-me dilecto o povo da cidade; quero-lhe muito! O meu amigo será o
testamenteiro popular do meu afecto!".
Não posso nem pretendo aqui louvar essa Homenagem ao Dr.
Álvaro Sampaio – 12 de Outubro de 1958. O Dr. Alberto Souto, Presidente
da Câmara Municipal, no uso da palavra, figura grande que dividiu
connosco e por nós a riqueza da inteligência, o fulgor do talento, a
diversidade do espírito. Não posso nem pretendo aqui fazer o panegírico
daquele que, sendo arqueológico, se familiarizou com as raízes de
Aveiro; sendo etnógrafo, se dedicou às manifestações de arte de Aveiro;
sendo historiador da sua e nossa Terra, sonhou para ela realidades
futuras e, para isso, antecipando-se, incentivou os tímidos, contagiou
os incrédulos, convenceu os responsáveis.
Não posso nem pretendo aqui dizer que o Dr. Alberto
Souto, escritor e orador fluente, semeou ideias que viriam a germinar
para bem da comunidade aveirense e sem proveito pessoal; foi um
enamorado de Aveiro a lançar sugestões, a traçar caminhos,
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a abrir perspectivas. Por muito querer a Aveiro – quem sabe? – por ela
se deixou morrer aos 73 anos de idade.
Aveiro dominava-o e empolgava-o a tal ponto que nós quase
vemos os nomes de Aveiro e de Alberto Souto íntima e indissoluvelmente
unidos um ao outro. "Tenho a consciência da identificação da minha
pessoa moral com a personalidade colectiva da nossa querida Aveiro: alma
que se multiplica nas nossas almas de aveirenses, milhares de almas que
falam em mim pela minha pobre voz!" – proclamava ele em sessão pública,
no dia 17 de Junho de 1961, quatro meses antes de falecer.
O ambiente litúrgico desaconselha-me de fazer o encómio
de alguém; também, neste momento, não o faço do Dr. Alberto Souto. Mas
não me proíbe que lembre – para nos fazer reflectir em oração – as
palavras duras de Jesus Cristo quando, pesaroso pela atitude obstinada
dos seus patrícios em não aceitarem a mensagem de salvação de que era
portador da parte de Deus Pai, disse em tom de desabafo e de séria
advertência: – "Eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e
se sentarão à mesa, no Reino dos Céus, com Abraão, Isaque e Jacob,
enquanto os filhos do Reino serão postos fora, nas trevas, onde haverá
choro e ranger de dentes" .
Muitos virão dos mais variados quadrantes sociais,
nacionais, políticos, religiosos – e encontrar-se-ão com Deus, a Quem
serviram na vida sem saber que a serviam, porque sendo justos amaram a
Justiça, sendo bons amaram a Bondade, sendo verdadeiros amaram a
Verdade, sendo admiradores do belo amaram a Beleza: sendo caritativos
amaram a Caridade, sendo misericordiosos amaram a Misericórdia, sendo
pacificadores amaram a Paz, servindo o Homem amaram a Jesus Cristo que
também disse: – "Tudo o que fizerdes ao mais humilde, é a Mim que
fazeis"... É que a personificação perfeita da Justiça, da Bondade, da
Verdade, da Beleza, da Caridade, da Misericórdia, da Paz é o próprio
Deus.
Quantas surpresas havemos de ter um dia?! Por isso, não
nos cabe adjectivar ninguém, fazendo julgamentos apressados; só Deus é
que julga, porque só Ele é senhor de todos os meandros da consciência
humana. Não nos vamos colocar no lugar d'Ele...
Evoquei há pouco D. João Evangelista de Lima Vida I e uma
certa e necessária diligência sua em favor do então seminarista Alberto
Souto. Entre as muitas cartas que mutuamente se escreveram ao longo dos
anos, encontra-se uma, assinada por este, que tem a data de 10 de
Dezembro de 1938, véspera do dia festivo da inauguração da restaurada
Diocese de Aveiro; nela se lê algo que revela os sentimentos do autor:
– "Prevejo a dificuldade de amanhã me aproximar de V,
Ex.ª à frente do Bispado de Aveiro, restaurado com o alto prestígio de
suas virtudes.
Felicito V. Ex.ª e desejo sincerissimamente todas as
prosperidades espirituais e materiais que V. Ex.ª deseja para a sua
Diocese. Com júbilo íntimo, embora discreto, me associo às justas
homenagens que a V. Ex.ª são prestadas".
E, no meio das muitas centenas de artigos saídos da pena
invulgar do saudoso Arcebispo-Bispo de Aveiro, deparamos num deles, de
1943, com uma alusão expressiva, onde se diz que o Dr. o discípulo e o
mestre: o Dr. Alberto Souto e D. João Evangelista de Lima Vidal.
Alberto Souto tinha um “nome que enche a cidade, que
chega mesmo para encher o País". E o autor evocava os tempos de Coimbra:
– "Quando ele ia acender as velas para me ajudar à missa
nas ursulinas, eu tinha pena daquela criança, com as mãos roxas de
tantas frieiras.
Às vezes, nem atinava com o pavio e tinha outra vez de
descer o apagador para o ajeitar. Este rapazinho mostrou logo, desde o
princípio, seguro jeito nas aulas; mas, ainda assim, quem diria que ele,
um dia, havia de ser o que é: artista, arqueólogo, homem de letras, já
não digo político, porque a política, às vezes, não é o vaso mais
próprio para as plantas formosas".
Lima Vidal continuava com o seguinte comentário:
– «Quando há pouco eu o vi, esforçando-me por seguir, nem
sempre a par, a veia rica do seu saber, eu olhava para aquele crânio,
prematuramente desnudado, e perguntava a mim mesmo como é que, dentro de
quatro ossos, podia caber assim à vontade uma biblioteca de seis mil
livros.»
E agora, sim, em ambiente litúrgico, não posso esquecer a
atitude religiosa e extasiada de alguém, qual outro Francisco de Assis,
quando, ao cair da noite e no alto do monte de Nossa Senhora do
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Socorro, admirando silenciosamente a beleza ímpar do firmamento a
projectar-se na ria e no oceano, com as estrelas reflectidas a
confundirem-se com as luzes das povoações, não se teve que não dissesse
em voz alta: – "Bendito seja o Criador pela maravilha da natureza!". Não
está aqui compendiado o cântico bíblico dos três jovens?
Não posso olvidar o que às vezes presenciei junto do
túmulo de Santa Joana e que certamente ainda mais me incentivou, também
a mim, no amor à Padroeira. Antes de subir ao gabinete de trabalho – o
que fez todos os dias durante dezenas de anos o director do Museu
passava por aí, parava naquele ambiente escuro a projectar luz na sua
consciência, pensava um pouco, homenageava a Santa Princesa, traçava
sobre si o sinal da cruz e não raro acendia a lamparina de azeite. Não
creio que fosse rotina; creio que era sincera e piedosa devoção.
Hoje, e desde há quase 27 anos, envolve-o o silêncio da
sepultura; mas conserva-se um documento que define a atitude mental e
espiritual deste homem, relativamente a Deus, a Cristo e à Igreja.
Em 24 de Outubro de 1937, em plena pujança de vida, com
49 anos de idade, escreveu em letra serena e firme, pelo próprio punho,
as "últimas vontades", a que chamou "O meu testamento" – que confirmou
em 1 de Novembro de 1946. Nunca o disse a ninguém; nunca ninguém o
soube.
Não tenho qualquer receio em recortar para aqui e para
esta oportunidade algumas expressões que, pelo seu significado,
demonstra uma maneira íntima de pensar e de sentir.
– "Desejo, se for possível e isso não der muita despesa,
ser sepultado no cemitério do Outeirinho, Verdemilho, perto dos meus e
no meio dos meus vizinhos da aldeia em que nasci.
"Quereria a minha sepultura coberta com as pedras que
tenho trazido das serras, algumas das quais vieram das mamoas mais altas
do Aresta!.
"Em uma delas deveria haver uma cruz. Eu sou cristão.
Adoro Deus e creio na virtude divina de Jesus, que foi muito justo e
muito bom e a cuja protecção muitas vezes me tenho confiado. Se há ainda
vaidade nisto, peço que ma perdoem.
"Peço que se não vistam de luto por minha morte. O luto
só deve existir no 'sentimento. O exterior nada vale, se a alma o não
sentir. Creio que a saudade que levo das pessoas que me estimaram será
correspondida por saudade, também, de todos aqueles que eu estimei e
amei. Nada mais é preciso.
"O meu enterro será simples. Caixão modestíssimo. Dois
sacerdotes católicos farão as orações e cerimónias breves do seu ritual,
como se acompanhassem o mais pobre e humilde dos paroquianos da sua
freguesia. Mas... se quiserem!
"Quero ser enterrado como o foram os que me criaram. O
Cristo do meu quarto será o meu último companheiro.
"Não desejo estar exposto depois de morto. Caixão
fechado. Só se for necessário ou algum familiar ou amigo querido me
quiser ver. Depois da morte já não somos nós. É um cadáver, matéria
morta que nada vale e se torna perigosa e repugnante. Se o espírito
prevalece e triunfa da morte, ele voará para Deus. O resto nada é!
"Deixo um beijo às minhas filhas. Um abraço a todos os
que me amaram e estimaram e a todas as pessoas que amei e estimei. Uma
saudade muito grande à minha aldeia e ao meu Aveiro!
"A todos peço perdão, se algum mal lhes fiz. Mas o meu
maior remorso é não ter feito todo o bem que podia e devia ter feito".
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Depois de rememorar este "testamento", talvez nós estejamos melhor
preparados para apreender o conselho do Apóstolo S. Paulo: – "Procedei
com toda a humildade, mansidão e paciência; suportai-vos uns aos outros
com caridade; empenhai-vos em manter a unidade de espírito, pela paz,
que a todos mantém unidos. Há um só Deus e Pai de todos, que exerce a
sua acção santificadora em todos e em todos se encontra".
Talvez a lembrança de algumas facetas da vida e da
actividade deste homem nos incentivem a que nós também nos interessemos
por Aveiro e pela suas gentes, sem egoísmos, indo ao encontro das
necessidades alheias, proporcionando aos necessitados o pão da cultura,
o pão do carinho, o pão do bem-estar, o pão da habitação, o pão de tudo
o que favoreça o integral desenvolvimento humano, sem excluir o pão da
alimentação.
Jesus Cristo saciou concretamente homens que tinham fome
e, se revelou o pão da vida eterna, fê-lo a partir de uma realidade
terrestre. Não é possível revelar o pão da vida eterna sem que nós, os
cristãos, nos comprometamos verdadeiramente nos deveres da
solidariedade.
Em ambiente litúrgico, evocamos os nossos mortos não só
para sufragar as suas almas, mas ainda para louvarmos a Deus pelo bem
que espalhou nas suas vidas e que realizou por seu intermédio, e ainda
para mutuamente nos encorajarmos em tal ou qual actividade em que eles
se evidenciaram. Também isto é viver o sentido da comunidade social,
humana e cristã.
À semelhança do Dr. Alberto Souto, julgo que poderemos
pensar com verdade que o nosso maior remorso é não fazer todo o bem que
podemos e devemos fazer.
Aradas – Pórtico de 1794,
junto de um edifício, cuja estrutura era do séc. XVII. Por cimo do arco,
um brasão. Actualmente já nada existe.
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