Aires Barbosa – O «Mestre
Grego»
No dia 23 de Maio de 1987, completou-se o 60.º
aniversário sobre a abertura ao público da Biblioteca Municipal de
Aveiro. Instalada primeiramente na seiscentista sala do despacho da
Santa Casa da Misericórdia, aí se manteve até 1970 – ano em que
transitou para o terceiro andar do edifício fronteiro aos Paços do
Concelho, então acabado de construir.
A nossa Biblioteca tem sido e continuará a ser um lugar
de consulta e um meio de cultura para quantos com ela se familiarizaram
ou procuram transpor as suas portas. Contam-se presentemente às dezenas
de milhar – e cada vez mais – as pessoas, adolescentes, jovens e
adultos, que se sentam na sua sala de leitura e aí passam muitos minutos
ou mesmo horas seguidas, procurando, lendo, aprendendo ou aprofundando
conhecimentos, nos mais variados ramos do saber.
Bem hajam os que, há sessenta anos, promoveram a sua
fundação!... Os responsáveis da Edilidade, nesse recuado ano de 1927,
são credores da nossa gratidão e do nosso aplauso!...
Desde o início, à Biblioteca Municipal de Aveiro foi dado
como titular o humanista Aires Barbosa – ou Aires de Figueiredo Barbosa.
Por isso, para comemorar esta efeméride, pareceu-me oportuno evocar um
insigne aveirense que foi, outrossim, um dos expoentes da cultura nos
derradeiros anos do século XV e, sobretudo, na primeira metade da
centúria seguinte.
(Este mapa pode ser visto em
alta resolução no espaço «Aveiro e Cultura», na secção dos mapas de
Aveiro.)
DESDE AVEIRO ATÉ SALAMANCA
No final do livro De Prosodia scilicet Relectio,
publicado em 1517, o seu autor Aires Barbosa escreveu, em verso latino,
um epigrama que tem o título «De Patria sua et Parentibus» e que
livremente aqui se traduz:
– «Os apreciadores desta minha insignificante produção
literária talvez queiram saber onde nasci e quem foram os meus pais. Não
sendo muito rico nem muito pobre, tenho contudo uma ascendência
conhecida e antiga. Filho de Fernando Barbosa e de Catarina de
Figueiredo – esta igualmente de antepassados conhecidos –
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sou natural de Aveiro, situado em região do extremo ocidental da Europa,
banhada pelo Oceano, a qual se considera muito rica com seu aprazível
porto e retira da terra e do mar quanto lhe basta. Não longe, fértil
costa do aurífero Douro e do Tejo limita de ambos os lados esta nossa,
que lhe fica no meio.» (1)
De tais palavras autobiográficas, que em português não
manifestam a graça, a arte e o valor da métrica clássica, podem
tirar-se, desde já, diversas conclusões:
– que Aires Barbosa nasceu na então vila de Aveiro;
– que era filho de Fernando Barbosa e de Catarina de
Figueiredo;
– que seus pais eram de ascendência conhecida e antiga;
– que viveu em mediania económica;
– que Aveiro, no seu tempo, mercê das condições
favoráveis do porto marítimo, conhecia certa prosperidade e que, além
disso, colhia da terra e do mar o que precisava.
Aires Barbosa não refere o ano em que veio ao mundo;
dizem uns que terá nascido à volta de 1456, e outros que um pouco mais
tarde. Mas a sua freguesia natal foi a de S. Miguel – a única que
existiu em Aveiro até 1572.
Desconhecem-se não só os antepassados paternos de Aires
Barbosa, como a própria naturalidade do pai, Fernando ou Fernão Barbosa.
Todavia, a linhagem dos Barbosas é das mais antigas da Península
Ibérica, entrando em todas as grandes famílias. O primeiro que se sabe
deste apelido é D. Sancho Nunes de Barbosa, que fez a quinta da Barbosa,
na freguesia de S. Miguel das Rãs, que pertencia ao Mosteiro de Cete,
distando meia légua do de Paço de Sousa e uma do rio Douro. Era filho do
Conde D. Nuno de Cellanova e irmão do Conde D. Gomes Nunes de Pombeiro,
neto paterno do Conde D. Teobaldo Nunes, um dos mais ilustres cavaleiros
do tempo de D. Bermudo II, Rei de Leão entre 982 e 999; bisneto, por
esta via, de D. Nuno Guterres e de sua mulher, a Condessa D. Velasquita,
sobrinha-neta de Santa Aldara; terceiro neto, por varonia, de D. Guterres
Mendes, Conde de Tui e do Porto, governando desde o Porto até Águeda, e,
também, Conde de Cellanova e Senhor da vila de Salas, casado com D.
IIduara, venerada nos altares, de quem houve não apenas o referido D.
Nuno, mas ainda S. Rosendo, Bispo de Dume de 927 a 951, D. Adozinda e
outros. D. Sancho Nunes de Barbosa ligou-se, pelo casamento, à família
real portuguesa, e seus filhos aos de D. Egas Moniz, aio de D. Afonso
Henriques, e aos Sousas, Braganções e Ferreiras.
Da mãe de Aires Barbosa, D. Catarina de Figueiredo – ou
D. Catarina Eanes de Figueiredo – sabe-se que nasceu na vila de
Esgueira; no século XV, já os Figueiredos se encontravam por diversas
terras, como Viseu, Aveiro e Esgueira, ligados a várias famílias nobres.
Mas... recuemos uns séculos e embrenhemo-nos nas brumas da lenda, aos
tempos em que por estas paragens dominavam os Mouros, sem nos demorarmos
com a repetição de episódios que os Figueiredos gostam de contar para
enaltecer os seus possíveis antepassados. Em 871, regista-se uma doação
ao Mosteiro de Arouca, feita por Goesto Ansures e D. Eleva; deste casal
nasceu Soeiro Ansur que, por sua vez, foi o pai de Ansur Soares; este
viria a casar com D. Maria Viegas de Regalados, filha de Egas Pais de
Penagate e de D. Sancha Mendes de Briteiros. Um seu filho, Gomes Ansures,
casaria com D. Estevainha Pires da Nóbrega, filha de Pedro Ouriques da
Nóbrega e de D. Maria Viegas, de quem nasceu D. Teresa Gomes, esposa de
Gonçalo Gonçalves do Lago, D. Maria Gomes, esposa de Gonçalo ou Geraldo
Gonçalves de Atouguia, e Martim Gomes Ansur, que viria a consorciar-se
com D. Teresa Fernandes, filha de Fernão Gonçalves, Senhor da Azambuja,
e de D. Ouroana Godim; foram estes últimos os pais de João Martins
Ansures, que casou com D. Sancha Gomes, de D. Estevainha Martins, que
casou com Henrique Soares de Barbudo e, depois, com Vicente Anes César,
e de Soeiro Martins de Figueiredo – o primeiro deste apelido – que viveu
durante os reinados de D. Afonso II, D. Sancho II e D. Afonso III e que,
por volta de 1260, doou certas fazendas ao Mosteiro de Santa Cruz, de
Coimbra, para aniversários. Terá sido ele o antepassado próximo de
Estêvão Soares de Figueiredo – Senhor da Torre e do Julgado de
Figueiredo, a que aludem as Inquirições de EI-Rei D. Dinis – e dos
irmãos Gil, Lourenço, Afonso e Garcia Vasques de Figueiredo. Porém, se
tudo até aqui é muito duvidoso e confuso, a mesma dúvida e confusão
prosseguem nos séculos XIV e XV.
Cristóvão Alão de Morais, genealogista do século XVII, na
sua Pedatura Lusitana,(2) dá-nos a ascendência materna imediata
de Aires Barbosa, «mestre dos Cardeais D. Afonso e D. Henrique, filhos
de EI-Rei D. Manuel». D. Catarina de Figueiredo era irmã de Jorge de
Figueiredo, de Martim de Figueiredo e – dizem alguns, porque outros
afirmam ser filha – também de João de Figueiredo Sequeira, tesoureiro da
Casa da Índia, cujos restos mortais foram sepultados na igreja de S.
Francisco, em Lisboa, «onde estão as armas dos Figueiredos e dos mais
castelos que
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lhe deu EI-Rei por o servir em Arzila e sustentar-lhe um baluarte onde
perdeu um olho»; de facto, D. João III acrescentou as armas de João de
Figueiredo Sequeira por carta de 8 de Outubro de 1528, em atenção aos
seus feitos notáveis num dos cercos daquela praça africana. Consta ainda
que um antepassado próximo de D. Catarina de Figueiredo, um tal Gonçalo
de Figueiredo, teria casado em Esgueira com D. Catarina de Sousa; esta
hipótese tem fundamento no facto de os dois terem passado carta de venda
a Gil de Figueiredo, de Viseu, da quinta de Figueiredo e de outros
casais.
Foi nomeado Martim ou Martinho de Figueiredo, que merece
mais uma palavra. Depois de se ter doutorado «in utroque jure»,
isto é, em direito civil e canónico, esteve em Florença, onde aprofundou
a sua cultura humanista, sendo aluno de Ângelo Policiano. Em 1529,
publicou em Lisboa uma obra em latim, dedicada a EI-Rei D. João III, a
cujo Conselho pertencia; o livro é um «Comentário» ao prólogo das
Histórias Naturais de Plínio, o Moço. André de Resende, na sua obra De Antiquitatibus Lusitaniae Libri Ouattuor,
aludiu a ele, quando escreveu: – «Quando nós éramos adolescentes, Martim
de Figueiredo, jurisconsulto e perito na Língua Latina, à qual
consagrara um trabalho interessado, sob a orientação de Policiano, em
Florença...» (3)
Em face do brevemente exposto, razão tinha o humanista
para confessar que provinha de uma dupla linhagem conhecida e antiga.
Voltemos, porém, a Aires Barbosa. É de crer que tenha
feito em Portugal os primeiros estudos; todavia, animado, desde novo,
por irresistível propensão para saber mais, conseguiu que os pais o
deixassem partir para Salamanca, a fim de frequentar a sua célebre
Universidade.
As Universidades – não é demais repeti-lo – são o orgulho
da Idade Média cristã, irmãs das Catedrais. O seu aparecimento marca uma
data singular na história da civilização ocidental e um avanço no
pensamento cultural. Todas tiveram origens análogas e desenvolvimentos
semelhantes. Nascidas à sombra das Catedrais, depressa deixaram a tutela
das Cúrias Episcopais e dos Cabidos, prosseguindo contudo no seu esforço
e no seu trabalho. Nesse projecto encontram decidido apoio e alcançam
variadíssimos privilégios, tanto da parte dos Papas como da parte dos
Reis. Assim, a Igreja foi a matriz donde saíram as Universidades... o
ninho donde elas tomaram voo.
A Universidade de Salamanca foi constituída em 1200 por
D. Afonso IX, Rei de Leão; mais tarde, D. Afonso X, o Sábio, além de lhe
conceder inúmeras graças, obteve do Papa Alexandre IV uma bula na qual o
Pontífice, definindo as Universidades como «lâmpadas resplandecentes na
Casa de Deus», declarou a de Salamanca como um dos quatro Estudos
Gerais, então oficialmente reconhecidos – Paris, Bolonha, Oxford e
Salamanca. O documento pontifício foi expedido de Nápoles, em 6 de Abril
de 1255. O referido Rei Sábio, em 9 de Novembro de 1252, já havia fixado
as dotações dos catedráticos, a expensas do Tesouro Público; sabe-se
que, desde essa altura, aí se leccionavam Línguas, Retórica, Medicina,
Geometria, Aritmética e outros ramos da Matemática, Cantochão e Música.
O Monarca também fundaria a sua biblioteca.
Assim organizada, a Escola Salmanticense conquistou fama
europeia nos meados do século XIII, logrando ser referida no Concílio
Ecuménico de Leão, em 1245, e, no Concílio de Viena, alcançando a
faculdade de ensinar Árabe e demais Línguas Orientais. Em 1413, o Papa
Bento XIII aumentar-lhe-ia as cátedras de propriedade, ficando assim o
elenco: – Cânones, Jurisprudência, Teologia, Astronomia, Língua Grega,
Língua Hebraica, Língua Árabe, Medicina, Filosofia Natural e Moral,
Retórica e Gramática. Inocêncio VIII, em 1 de Outubro de 1489, havia de
estabelecer que os não graduados pudessem concorrer e opor-se, com os
graduados, às cátedras de Gramática, Lógica, Música, Retórica,
Astronomia, Hebraico e demais Línguas, sem que se verificasse qualquer
diferença nos salários.
Entretanto, em Portugal, haviam-se estabelecido os
Estudos Gerais, em 1288, que primeiramente se fixaram em Lisboa.
Contudo, as vicissitudes da localização da Escola – em 1308 era
transferida para Coimbra, em 1338 para Lisboa, em 1354 para Coimbra, em
1377 para Lisboa e em 1537, já depois do período que nos ocupa,
definitivamente para Coimbra – concorreram para a sua decadência; a
reforma, sugerida pelo Infante D. Pedro durante a sua regência
(1440-1446), tendo em conta os modelos de Oxford e de Paris, seria
adiada, devido às circunstâncias decorrentes da nova política no reinado
de D. Afonso V e do desastroso confronto de Alfarrobeira. Além disso, a
proximidade geográfica de Salamanca e a interpenetração da cultura
portuguesa com a dos outros reinos hispânicos – e vice-versa – eram
outros factores a favorecer uma forte concorrente migratória para a
Universidade Salmanticense, cuja influência assumiria particular relevo
no nosso País. Por outro lado, no aspecto nacionalista, tal influência
também não deixaria de se fazer sentir quando, mais tarde, em 1580, se
abriu a crise na sucessão da Coroa Portuguesa; homens formados no
Claustro Espanhol talvez simpatizassem, consciente ou inconscientemente,
com a hipótese filipina.
Na realidade, por aquela Academia, durante o século XV e
no seguinte, passaram muitas dezenas de estudantes portugueses, que aí
obtiveram graus em Teologia, Direito, Artes e Medicina. Entre eles,
contam-se Álvaro Dias, que foi mestre de Retórica de 1464 a 1469, e o
Cónego Rodrigues Alvares, cancelário em 1479-1480. Aires Barbosa, em
1482, já lá se encontrava como aluno, dominado pelo desejo de aprender e
de se valorizar, ouvindo as lições dos professores.
(4)
Esses tempos de estudante – e quiçá os de professor na
mocidade dos anos – recordou-os ele mais tarde, quando o seu sangue
enregelado já reclamava ser aquecido numa região tépida e os membros
requeriam o auxílio de calor exótico: – «Enquanto se achavam firmes as
forças do meu corpo de criança e na juventude tinha quente o sangue, não
era ofendido, ó Salamanca, por frígidos ventos, nem pela neve, nem pelo
gelo, nem pelas tuas nortadas. Não me fazia tremer o Tormes, congelado
pelo frio, que muitas vezes tive debaixo dos pés enxutos. Agora, o meu
sangue enregelado reclama ser aquecido numa região tépida e os membros
requerem o auxílio do calor exótico.»
(5)
E Aires Barbosa, certamente recolhido nas suas pousadas
de Esgueira e preocupado com a saúde, levantava uma voz de exaltação,
que lhe saía do fundo da alma: – «Por isso, ó Salamanca, minha querida
mãe, a quem dediquei a época da minha mais feliz existência, na altura
em que, por meu intermédio, chegaram junto de ti as duas Línguas – agora
que, licenciado, consentes que vá para onde me apeteça, trato de evitar
os frios que me não foram molestos quando novo, mas que prejudicariam
este velho, carregado de anos.»
(6)
Saudosas recordações de Salamanca!... Como não haveria de
ficar vincada na sua memória a cidade acarinhada pelo rio Tormes, onde
não apenas passara os breves anos de estudante, mas também os decénios
do magistério docente!... As Catedrais – a velha, principiada em 1140, e
a nova, cuja fase de construção inicial ele presenciara em 1513... a
artística fachada da Universidade, que ele viu erguer por ordem dos Reis
Católicos... a Casa das Conchas, edificada também no seu tempo... o
Palácio de Anaya, fundado em 1401... a Torre do Clavero, monumento
quatrocentista que alia a característica de fortaleza militar à graça
arquitectónica... a Torre del Aire, de lindas janelas arqueadas e de
primorosos lavrados góticos... as várias igrejas românicas... a velha
ponte romana que dá à cidade um singular perfil geográfico e
histórico... eis alguns dos motivos que já faziam da Salamanca dos
finais do século XV e do primeiro terço da centúria seguinte uma
paisagem clássica, cheia de personalidade histórica e monumental. E tudo
isto era guardado no escrínio das saudades
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de Aires Barbosa, a par de tantas emoções vividas ao longo da vida,
principalmente no ambiente culto da Universidade e no convívio agradável
com mestres ilustres e estudantes distintos.
ESTUDANTE EM FLORENÇA
Ávido em saber e vendo que não aprenderia mais em
Espanha, onde terá conseguido os graus do bacharelato e da licenciatura
em Artes, Aires Barbosa deixou-se entusiasmar pelas notícias que lhe
chegavam de Itália – talvez mesmo através do seu tio materno Martim de
Figueiredo – e que deslumbravam os espíritos cultos. Além disso, as
escolas transalpinas haviam sido extremamente enriquecidas por sábios
gregos que, fugindo à pilhagem e à carnificina de Bizâncio caída nas
mãos dos Turcos em 1453, levaram consigo a luz da ciência e das artes,
juntamente com preciosos manuscritos e outros objectos, e encontraram
refúgio nas cidades italianas; os Pontífices Romanos, os Médicis
florentinos e D. Afonso de Aragão, Rei de Nápoles e da Sicília,
aceitando-os e favorecendo-os, incentivaram o nascimento e o
desenvolvimento de uma nova era para o conhecimento humano na Europa.
Era o movimento cultural que ficou conhecido pelo nome de Humanismo.
Convenhamos, porém, que – como diz Fidelino de Figueiredo – «humanista
não era o homem que sabia muito grego e muito latim; esse poderia ser
bom helenista ou bom latinista; humanista era o homem que, ante uma
súbita e deslumbrante primavera do espírito, crescera inesperadamente e
sentira desabrochar em si curiosidades, impulsos críticos, simpatias,
tolerâncias, ânsias de compreender. Tudo isso era acompanhado de uma
adivinhação da relatividade das coisas. Os humanistas abarcavam adentro
da sua compreensão serena o passado subitamente desperto,
o presente que
tinham à vista e o futuro que iam vendo construir com essas novidades».
(7) O Humanismo marcou uma época de grandes e importantes descobertas
descoberta do passado greco-romano, descoberta da dignidade do homem,
descoberta do mundo em muitos dos seus aspectos, descoberta dos limites
das terras e dos mares; duvidando das teorias e explicações até aí
admitidas, o homem pôs-se a raciocinar de maneira mais científica.
De toda a Europa acorriam jovens para a Itália,
nomeadamente para Florença, «a fim de se formarem nos costumes, nas
letras e em todas as artes liberais para ornamento da maior fortuna» –
assim se exprimia Ângelo Policiano, escrevendo a João Teixeira em 1489.
(8) E, voltando às suas Pátrias, alguns desses alunos foram fervorosos
apóstolos das doutrinas humanistas e renascentistas. Portugal também não
faltaria.
O nosso aveirense, desejando consultar os manuscritos
salvos das ruínas de Constantinopla e aumentar o seu cabedal científico
– sobretudo no Grego e no Latim – resolvera deixar Salamanca e abalar
para Florença, a pátria de Dante e de Petrarca, cidade culta da Corte de
Lourenço de Médicis, o Magnífico – novo Péricles de uma nova Atenas.
Na verdade, Lourenço de Médicis (1449-1492) evidenciou-se
extraordinariamente em criar colégios e outras instituições semelhantes,
com o fim de auxiliar aqueles que tivessem aptidões para o estudo mas
que não possuíam meios económicos para a aquisição de livros e para a
sua subsistência durante os cursos. Além disso, fundou a famosa
Universidade de Pisa e dotou generosamente a Academia de Florença; foi
aqui, em Florença, que o seu esforço pela cultura mais se fez sentir.
Trabalhou constantemente pelo progresso da sua Escola e enriqueceu o
respectivo corpo docente com nomes célebres, como João Argirópulo,
Teodoro Gaza, Dométrio Calcondila, Ângelo Policiano e Pico della
Mirândola.
No propósito de ser o animador da vida cultural
florentina, fez-se rodear não apenas por poetas e
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filósofos, mas também por artistas, que deixaram rasto imperecível na
fisionomia da cidade, como Borticelli, Filipe e Filipino Lippi,
Verrochio e Juliano de Sangallo.
Em Florença, rainha das Letras e das Artes, centro ímpar
da Ciência, Aires Barbosa teve a felicidade de proveitosamente ouvir,
entre outros mestres, o insigne Ângelo Policiano, que se tinha
encarregado do Grego e do Latim. Lá se encontrariam então os portugueses
Luís Teixeira Lobo e os seus dois irmãos (filhos do Chanceler-Mor do
Reino), João Rodrigues de Sá e Meneses, Henrique Caiado e o referido
Martim de Figueiredo; alguns deles mantiveram relações amistosas com
Erasmo e com outros humanistas, e o próprio Aires Barbosa foi
condiscípulo de João de Médicis – cardeal aos 13 anos – filho de
Lourenço de Médicis, que, eleito Papa com 38 anos, ocuparia a cadeira de
S. Pedro com o nome de Leão X, de 1513 a 1521, e manifestar-se-ia como
desvelado protector das Letras e das Artes. Num dos seus epigramas, o
ilustre aveirense – por muitos considerado como o mais notável de todos
os alunos portugueses de Policiano – faria alusão ao mestre e ao colega,
nestes termos:
«Quando afirmo que fui condiscípulo de Leão X e vosso
discípulo, Policiano, rebaixo-me, não me exalto; (...) a fortuna do Sumo
Pontífice toca o céu, ao passo que a minha roça pela terra.
Que há tão
diverso como opor-se à vossa, Ângelo Policiano, a minha pobre ciência?»
(9) De facto, Leão X deu o seu nome ao século em que governou a Igreja e
os seus nove anos de pontificado alcançaram grande projecção durante
séculos; profundo conhecedor da literatura clássica, dotado de
humanidade e cortesia e inclinado a actos de generosa liberalidade,
favoreceu artistas e eruditos que, desde há muitos anos, não tinham
gozado de uma tal mercê da parte da Santa Sé.
Foi para prestar obediência a este Papa, logo após a sua
eleição, que, em 1514, EI-Rei D. Manuel I enviou numa embaixada
singular, sob a chefia de Tristão da Cunha, acompanhado por grande
séquito de fidalgos, a qual constituiu um raro e notável espectáculo.
Como presentes foram oferecidos ao Pontífice as primícias das navegações
da Índia, como paramentos litúrgicos bordados e guarnecidos de pedras
preciosas, jóias de grande valor, um elefante e uma onça de caça com um
cavalo pérsico, mandado pelo Rei de Ormuz.
Quem era Ângelo Ambrogini Policiano?
Nasceu em Montepulciano, perto de Sena, em 1454, e viria
a falecer em Florença, no ano de 1494, apenas com 40 anos de idade.
Entrando, como ouvinte, nos cursos do Studio Florentino em 1469-1470,
logo patenteou uma extraordinária facilidade na composição de versos
gregos e latinos, com raro domínio nas duas Línguas e hábil elegância de
estilo. Pondo as esperanças no mecenato do já referido Lourenço de
Médicis, acompanhou a sua Corte em sucessivas deslocações e, nos meados
de 1475, foi-lhe confiada a educação de Piero de Médicis, filho
primogénito de Lourenço. Policiano continuaria a revelar-se como insigne
humanista, que não só como excelente pedagogo. Em 1477, tomou ordens
sacras e conseguiu que lhe confiassem o priorado de S. Paulo. Depois de
diversas andanças e peripécias, em Agosto de 1480 estava novamente em
Florença e, em Novembro seguinte, apenas com 26 anos de idade, começaria
a ensinar no Studio Florentino – o que lhe granjeou, na Itália e na
Europa, merecida reputação de abalizado mestre e de profundo conhecedor
das línguas e dos autores gregos e latinos, dominando perfeitamente o
mundo da cultura clássica: o sonho da adolescência tornara-se realidade.
A seriedade com que se preparava para os cursos é
largamente atestada pelo rico conteúdo de Miscellanea, onde
Policiano aborda uma série de assuntos filológicos, históricos,
gramaticais e estilísticos, que viria a retomar nas Epistole
latinas, dele e dos seus correspondentes. Além disso, entre outros
livros, escreveu o Orfeu, composição dramática, as Estâncias,
repassadas de
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harmonia e pitoresco, a Conjuração de Pazzi, onde se revelou como
historiador, e variadíssimos Epigramas.
Pelo que se refere a Portugal, registe-se que Policiano
sustentou grande admiração por D. João lI, com quem trocou
correspondência, convencido embora de que nem a sua condição social, nem
a sua erudição, nem a sua virtude fossem tais que lhe permitissem
escrever ao «Rei invencível», mas sim abalado pela dignidade, pelo
esplendor, pela glória e pelos louvores, «já universalmente celebrados»,
do Príncipe Perfeito. (10)
Durante a sua estadia em Florença, Aires Barbosa, levado
por natural curiosidade, decerto cuidaria em visitar os seus monumentos,
igrejas, galerias e palácios; à sua recordação jamais deixariam de
afluir as formosas imagens da cidade do Amo e os pormenores de tesouros
de arte, de recantos de beleza e de experiências de vida. O
significativo conjunto gótico-florentino da catedral de Santa Maria da
Flor, elegante e sóbrio nos seus elementos arquitectónicos e admirável
na fina decoração com mármores policromos; o baptistério românico, com
mosaicos bizantinos na cúpula; a Praça da Senhoria, uma das mais belas
praças tanto pelas obras de arte aí reunidas como pela harmonia do seu
espaço; o majestoso Palácio Velho, que se ergue altaneiro com sua
atrevida torre; o Palácio Pitti, para onde Cosme I transladara a sede do
Governo; o Palácio Médicis – Riccardi, magnífico exemplar renascentista,
residência senhorial dos Médicis; a Ponte Velha, a mais antiga da
cidade, com as pequenas lojas dos ourives; as igrejas de S. Lourenço,
dos Santos Apóstolos, de Santa Maria Nova, do Espírito Santo, dos Pazzi;
a elegância neo-romana de Brunelleschi, a espiritualidade pictórica de
Frei Angélico e a expressão escultórica de Donatello; eis o apontamento
do muito que o estudante aveirense encontrou em Florença, meio propício
e único para o progresso da arte renascentista, graças aos mestres
Miguel Ângelo, Rafael Sânzio e Leonardo da Vinci, que, daí a pouco,
iriam deixar na cidade a marca do seu génio superior.
Todavia, como português que se prezava ser, Aires Barbosa sentir-se-ia
pressionado em subir até à igreja de S. Miniato ao Monte, construída em
estilo românico, segundo o gosto florentino. Não era tanto o seu
interior sugestivo, decorado em policromia lítica, que lá o levava; era
sobretudo a lembrança de um acontecimento da sua Pátria e de um virtuoso
personagem, que morrera em odor de santidade. Era aí o lugar propício
não só para evocar o infeliz desastre de Alfarrobeira que, em 1449,
enlutara o nosso País e cortara a vida ao Infante D. Pedro, homem dado
às Letras e às Artes do Renascimento, mas também para homenagear o
Cardeal D. Jaime, segundo filho do desventurado Infante das «Sete-Partidas»,
cujos restos mortais se guardavam na capela sepulcral construída pelos
irmãos Bernardo e António Rosselino a partir de Julho de 1460, como
anexo da referida basílica.
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Efectivamente, depois de Alfarrobeira, contando apenas 16
anos, D. Jaime conseguiu a liberdade, juntamente com os irmãos, e
emigrou para a Corte de Borgonha, onde a sua tia D. Isabel, casada com
Filipe-o-Bom, lhe deu acolhimento. Seguindo a carreira eclesiástica, o
Papa Nicolau V, em 1453, concedeu-lhe a administração do Arcebispado de
Lisboa e, em 1456, o Papa Calisto III criou-o cardeal, com o título de
Santo Eustáquio, sem deixar a referida administração. Homem de
excepcional virtude, primo e cunhado de EI-Rei D. Afonso V de Portugal,
sobrinho da Duquesa de Borgonha, primo de D. Leonor, Imperatriz da
Alemanha, D. Jaime era benquisto nas instâncias papais. Foi durante uma
viagem a Mântua que adoeceu gravemente em Florença, onde acabou por
falecer em 27 de Agosto de 1459; faltavam-lhe vinte dias para completar
os 26 anos de idade.
Aires Barbosa, admirando a capela sepulcral –
essa
«obra-prima da preciosidade florentina», como a classificou André Chastel
(11) – recordaria uma página recente da história de Portugal e,
por essa forma, sentir-se-ia mais português no estrangeiro. Por outro
lado, suspeitaria ele que, no meio dos heróicos feitos marítimos dos
seus compatriotas - como o descobrimento do Congo por Diogo Cão em 1482,
a chegada de Bartolomeu Dias ao Cabo das Tormentas em 1488, a viagem de
Vasco da Gama à Índia em 1498 e o achamento do Brasil em 1500 – outros
acontecimentos amargurantes viriam a acontecer em sua vida – como a
execução do Duque de Bragança em 1483 e, no ano seguinte, a do Duque de
Viseu, como a trágica morte do Príncipe Herdeiro D. Afonso em 1491 e o
falecimento prematuro de EI-Rei D. João II em 1495? A sua vida iria
desenvolver-se num autêntico quadro de grandezas e misérias...
«MESTRE GREGO»
Decorridos dois anos de estadia em Florença – onde se
dedicara com persistência e afinco a variados assuntos e quiçá alcançara
o grau de mestre em Artes – Aires Barbosa regressou à Pátria, mais para
matar saudades do que para ficar; as fronteiras portuguesas eram
demasiadamente estreitas para a grandeza da sua inteligência e
extremamente acanhadas para as aspirações do seu espírito. Por isso, de
novo atraído pela aura de Salamanca, voltou para lá, ficando logo
adstrito ao corpo docente da sua Universidade; iria procurar difundir na
Península Ibérica o bom gosto literário da Antiguidade Clássica. O
prestígio da secular Escola atraía-o agora para a servir no magistério;
aí tinham ensinado e ensinavam professores notáveis, tanto espanhóis
como portugueses.
Nesta ocasião da sua vida, surge-nos um problema, cuja resolução não se
antolha clara: Em que ano é que Aires Barbosa iniciou o múnus de
professor na Universidade Salmanticense?
/ 17 /
Entre as setecentas e treze cartas escritas por Pedro
Mártir de Anghierra e publicadas em Alcalá de Henares pela primeira vez
no ano de 1530 com o título de Opus Epístolarum Petrí Martyrís,
Medíolanensís e reeditadas pelos Elzevires na Holanda em 1670,
encontra-se a que o seu subscritor dirigiu ao amigo «lusitano» Aires
Barbosa, «professor da Língua Grega em Salamanca",
embora doente, datada
de Jaén, em 5 de Abril de 1489.
(12)
Pedro Mártir, descendente de família ilustre, cortesão e
historiador, nascera em Anghierra, no estado de Milão, em 1455, e viria
a morrer em Valladolid no ano de 1526. Segundo alguns autores, foi
médico e exerceu esta profissão junto de Luís XI, Rei de França. Em 1477
estava em Roma, onde cursou estudos e serviu o Cardeal Sforza Visconti e
depois o Arcebispo de Milão até 1487; em Florença, onde também seguiu a
vida académica como estudante, terá conhecido Aires Barbosa.
Naquele ano de 1487, o Conde de Tendilla, embaixador dos
Reis Católicos, levou-o para Espanha, sendo perceptor dos jovens nobres
da Corte da Rainha D. Isabel e protonotário apostólico; aparece também
ligado à vida militar, estando no cerco de Baza e continuando no
exército durante as futuras campanhas contra os Mouros. Em 1492,
assistiu à conquista de Granada pelas forças cristãs, de que nos
forneceu dados interessantes em várias cartas. Manteve relações
amistosas com navegantes e descobridores, como Cristóvão Colombo, Vasco
da Gama e Fernão de Magalhães, de quem colheu pormenores valiosíssimos
para a história da época. Também fundou o Colégio dos Nobres de Madrid,
exerceu o cargo de embaixador espanhol em Veneza e no Egipto e, em 1524,
foi nomeado membro do Conselho das Índias, então criado. Tomou hábitos
eclesiásticos e obteve do Imperador Carlos V o priorado do Cabido da
Catedral de Granada, que ainda ocupava à data da sua morte.
Mas... fixemo-nos por instantes na carta de Pedro Mártir
de Anghierra, dirigida a Aires Barbosa. É altamente curioso e cheio de
interesse o texto desta epístola, que respondeu a uma outra cujo teor
desconhecemos, subscrita pelo destinatário; refere-se à epidemia da
sífilis, que importunava o mestre salmanticense. Leiamo-la em tradução
livre, com o sentimento de que a redacção original fica empobrecida na
beleza, no estilo e na elegância que tem no latim:
– «Contas-me, em prosa corrente e em tom elegíaco, que
desabou sobre ti um mal, próprio do nosso tempo, ao qual os espanhóis
chamam boubas, os italianos morbo gálico, outros médicos elefantíase e
outros ainda o designam por diversos nomes. Lamentas a tua desgraça e o
teu infortúnio. Gemes por não poderes mexer os membros senão com
dificuldade e choras com as dores insofríveis das articulações e
ligamentos. Como se fosse pouco, queixas-te amargamente de úlceras e mau
cheiro na boca. Na verdade, tenho pena de ti, queridíssimo Aires, e
desejo que recuperes a saúde, mas de modo nenhum te perdoo que assim te
deixes dominar pela doença, pois não é próprio de uma alma varonil
sucumbir na adversidade ou rejubilar na prosperidade. Pelo contrário,
devemos enaltecer aqueles que recebem os golpes da sorte com serenidade
e com indomável coragem, buscando na fortaleza de ânimo o lenitivo para
os seus males. Se assim fizeres, embora neste momento sejas perseguido
por Saturno, responsável por esta doença, sentir-te-ás não menos feliz
do que se te fosse dado voejar pelos ares, arrebatado na asa de
Mercúrio. Saúde!» (13)
De tal carta, conclui-se facilmente o seguinte:
/ 18 /
– a sífilis, de que sofria Aires Barbosa, pelos sintomas
apresentados, encontrava-se em plena explosão secundária no seu
organismo, acompanhada de dores articulares, úlceras pelo corpo e fetidez na boca;
– Pedro Mártir de Anghierra aconselhou o amigo a sofrer
com resignação e paciência, como convinha a um homem dotado de ânimo
forte;
– o autor da carta, seguindo uma opinião generalizada na
sua época, atribuiu a pertinaz doença ao planeta Saturno;
– se conseguisse vencer o desânimo, Aires Barbosa seria
mais feliz do que se fosse arrebatado nas asas de Mercúrio; aqui parece
haver uma alusão ao tratamento mercurial, pois Mercúrio, se era um deus
mitológico e um planeta, também era um metal, já então empregado na cura
das eflorações cutâneas ou bubas da sífilis, tanto mais que, desde há
muito, alguns povos o usavam com a mesma finalidade;
– Pedro Mártir, que trata o amigo por «Mestre da Língua
Grega em Salamanca», quando, em 5 de Abril de 1489, escreveu a carta,
encontrava-se na cidade espanhola de Jaén, donde a enviou.
Como vimos, Pedro Mártir de Anghierra chegou a Espanha em
1487 e, no ano seguinte, começou a escrever as suas cartas, endereçadas
de diversos pontos do país, de modo que, por elas, se pode seguir o
itinerário do seu autor. A primeira, de Janeiro de 1488, foi escrita de
Saragoça; em Abril, de Guadalajara, escreveu duas; novamente em
Saragoça, mais três em Abril e Junho; em Dezembro, datou outra de
Guadalajara. Por ordem cronológica, vem depois aquela que se referiu,
enviada a Aires Barbosa. A afirmação de alguns, que supõem ter havido
erro na transcrição desta carta, colocando-a em 1498 ou 1499, parece não
ter fundamento; de facto, conforme o testemunho de William Hickling
Presccott, na History of Reign of Ferdinand and Isabela,
(14) na
Primavera de 1489 a Corte de Espanha passava por Jaén, onde a Rainha
pensava fixar residência. Além disso, Pedro Mártir conhecia bem o «amigo
lusitano», pois, além de possíveis encontros em Florença, estivera em
Salamanca de 23 de Setembro até meados de Novembro de 1488, a convite
insistente do mestre-escola da Universidade, D. Gutiérrez de Toledo; aí,
longe das preocupações da guerra contra os Mouros no sul da Península,
dera lições públicas sobre a Língua Latina e sobre as Sátiras de
Juvenal, sendo objecto de obsequiosas demonstrações.
Vem a propósito um breve apontamento sobre a terrível
doença venérea, a que Jerónimo Fracastor, homem nobre e culto de Verona,
médico e cientista, em 1530 deu o nome de sífilis, no seu poema De
morbo gallico.
Admite-se hoje que se trata de uma doença antiquíssima,
embora raramente de forma epidémica, com indícios em restos ósseos do
homem paleolítico e neolítico, em certas múmias egípcias, em vários
achados pré-históricos e em textos arcaicos, assírio-caldaicos,
chineses, japoneses, árabes e gregos; Déchambre aponta a sífilis entre
os chineses, aí pelo ano 2600 antes de Cristo, que a tratavam com
mercúrio. Porém, só a partir do século XV é que tal doença começou a ser
analisada em pormenor e descrita por médicos, que a deram como de
proveniência diversa. Certos autores, privados de conhecimentos que
actualmente temos, consideravam-na de importação americana, veiculada
pela marinhagem de Cristóvão Colombo que, tendo-a contraído na Ilha de
Hispaniola (Haiti), a haveria transmitido aos habitantes da Península
Ibérica, logo após o seu regresso em Março de 1493; por esta razão, na
França, nos fins de quatrocentos, ter-lhe-ia sido dado o nome de «mal
americano». Daí e desde então – segundo o mesmo raciocínio – o foco
epidémico alastrava rapidamente; em 1495, durante o cerco de Nápoles
pelo rei francês Carlos VIII, o povo desta cidade seria também assediado
por uma terrível e inaudita enfermidade, persistente e mortífera, cujas
características se presumiram ser as da sífilis. Os causadores do mal
teriam sido os soldados espanhóis, que serviam na cidade, contagiados
pelos marinheiros de Colombo; aqueles, por sua vez, propagá-la-iam aos
ocupantes franceses. A partir de então, surgem as diversas denominações
da doença, porque nenhum país desejava ser o berço do foco epidémico de
uma enfermidade ancestral e vergonhosa, mas ti da como esporádica: – na
França, além de «mal americano», também «mal napolitano»; na Itália, na
Espanha e em Portugal, «mal gálico»; na Polónia, «mal alemão»; na
Rússia, «mal polaco»; no Ceilão e no Japão, «mal ou úlcera portuguesa»;
na Índia, «mal francês»; na China, «úlcera de Cantão»; nas Ilhas de
Taiti, «doença britânica»; etc.
Todavia, a hipótese da origem americana do foco
contagioso na Europa nos finais do século XV parece não ter
consistência; efectivamente, já em 1929, o Professor Karl Sudhoft,
afamado director do Instituto de História da Medicina na
Universidade de
Leipzig, num artigo publicado na revista de Obermaier Investigación y
Progress, (15) chegou a tal conclusão, fundamentando-a em diversas
premissas e demonstrando que a doença, certamente de forma casual, já
era
/ 19 /
conhecida, antes ou muito antes da expedição colombiana, em
diversas
regiões do Velho Continente, como no sul da França, no norte da Itália e
na Catalunha. (16) E o mesmo distinto autor chega a afirmar que, em
Nápoles, o alastramento do mal tanto poderia ter partido dos espanhóis,
como dos franceses, como das meretrizes que sempre se infiltram nos
exércitos; e não será mesmo de pôr em dúvida o foco napolitano –
interroga ele – pois Mariano Sanuto, contemporâneo dos factos, narrando
à Signoria de Veneza tudo o que viu e observou na cidade, não diz
qualquer palavra sobre tal epidemia?
(17)
Por seu lado, contrariando Karl Sudhoff, o Professor
Alberto da Rocha Brito defendeu a origem americana do foco sifilítico na
Europa, considerando por isso errada a data da carta de Pedro Mártir de
Anghierra a Aires Barbosa e, em consequência, não dando a tal documento
o significado de prova capaz para o início das funções docentes do
mestre em Salamanca durante a década de 1480-1489.
(18) Contudo, já
muito antes, o Dr. Joaquim Alberto Pires de Lima, lente da Escola
Médico-Cirúrgica do Porto, tinha escrito: – «Não se sabe ao certo em que
época a sífilis começou a produzir os seus estragos entre nós. Muitos
autores supunham que ela tinha sido trazida para a Europa pelos
marinheiros que acompanharam Cristóvão Colombo, quando foi a descoberta
da América (1492-1493). Está hoje porém demonstrado que, antes da
chegada da expedição de Colombo, já na Europa grassava a sífilis. O erro
em que caíram aqueles autores justifica-se pelo facto de coincidir pouco
mais ou menos com a chegada de Colombo com o aparecimento e a
extraordinária difusão pela Europa de uma terrível epidemia da sífilis.
Mas, apesar de estar demonstrado que a sífilis já existia no Velho
Continente antes da descoberta do Novo Mundo, não está averiguada ao
certo a época da sua instalação na Europa».(19) E Maurício Mariotti, no
Congresso da História da Medicina de 1950, em Amesterdão, remataria: –
«Podemos concluir com verdade que a origem da doença nem é americana,
nem europeia, mas mundial, pois que nasceu com o homem; demonstra-o a
história de todos os tempos e de todos os lugares, e confirma-o um dos
textos sagrados de mais renome – a Bíblia».(20)
Qual o motivo de todo o este arrazoado à volta da vida de
Pedro Mártir de Anghierra, da sua carta, acima transcrita, e da sífilis?
É para se tentar demonstrar que tal carta é realmente de 5 de Abril de
1489 e que Aires Barbosa já se encontrava a ensinar a Língua Grega em
Salamanca, pelo menos no ano lectivo de 1488-1489 – dir-se-ia como
«professor extraordinário» – ocupando, ao que parece, uma simples
catedrilha. Nos registos da Universidade lamentavelmente não se
encontrou, até hoje, qualquer referência ao princípio de tais funções;
todavia, André de Resende, que foi seu discípulo, na Epístola ad
Quevedum Toletanum, escreveu, antecipando aquela data: – «Aires
Lusitano ensinou em Salamanca, com grande proficiência, tanto a Língua
Latina como a Grega, durante mais de quarenta anos».
(21) Sendo isto
verdade e aliás Enrique Esperabé Arteaga também conclui pela
afirmativa(22) – Aires Barbosa teria iniciado o seu magistério nos
meados da década de 1480, pois seria jubilado em 1523, como se verá.
Não obstante, contrariando o testemunho do referido
aluno, que «a priori» julgamos verídico ou aproximado, Marcel Bataillon
viria dizer que o humanista aveirense teria voltado a Salamanca apenas
em 1490, Moreri inclinar-se-ia por 1494 e Diogo Barbosa Machado até
acabaria por registar a data de 4 de Julho de 1495 para a sua eleição ou
nomeação na cátedra de Grego – data que se nos afigura demasiadamente
tardia; é fácil
/ 20 /
que Barbosa Machado se tenha firmado na opinião de Francisco Leitão
Ferreira que escreveu que o mestre regressou a Portugal, vindo de
Florença, durante o ano de 1494.
(23) Todos, porém, são unânimes em
confessar que, na sua docência, Aires Barbosa, incentivou grandemente o
ensino do Grego em Espanha, como no Encomium Erasmi relembra o
mencionado André de Resende: – «Foi o primeiro que ensinou os espanhóis,
com a voz de Hipocrene, a falar a Língua Grega».(24) De facto, como
também diria Moreri, «Barbosa foi um dos restauradores principais das
Letras em Espanha, com António de Nebrissa e André de Resende, e
restabeleceu sobretudo a honra e o uso da poesia no seu país,
enquanto
os outros dois procuravam polir as demais Artes».
(25)
Anotou-se António de Nebrissa, como um dos nomes
inseparáveis da renovação clássica em Espanha. Mas, além disso, na
convivência diária da velha Universidade Salmanticense, uma grande e
mútua amizade juntou os dois humanistas, que a Providência se
encarregaria de reunir nos destinos e na glória. Nicolau António,
escrevendo sobre os dois, afirmou: – «Esta Universidade, e a partir dela
toda a Espanha, deve a ambos a extirpação da barbárie, que durante muito
tempo crescera imensamente entre nós com seu domínio perverso, e também
lhes deve as riquezas de todas as boas disciplinas».
(26)
Apesar de todo esse esforço em favor das ideias
renascentistas, a Academia de Salamanca parecia apostada em prosseguir
na tradição escolástica em que nascera, mas então decadente e
ultrapassada; como a de Paris, opunha resistência à «luta contra a
barbárie», em que tão denodadamente se empenhavam os dois mestres
inovadores. Aires Barbosa, por seu lado, queixava-se amargamente de que
ela persistisse nessa teimosia conservadora, apesar de já terem
decorrido dois lustros de esforços: – «A Grécia dominou a Barbárie
durante dois lustros, mas nem agora, depois de dois lustros, a Barbárie
cai». (27)
E, num pequenino epigrama contra o riso alvar dos
«bárbaros», compara-os ao porco que despreza as pedras preciosas para se refocilar nos sobejos e no esterco.
(28)
PROFESSOR CATEDRÁTICO
Decorridos alguns anos de ensino em Salamanca, ocupando a
catedrilha de Grego – embora, como já se referiu, não haja registo no
respectivo arquivo que possa afiançar o que André de Resende afirma –
Aires Barbosa prestaria juramento «de bene legendo» no dia 1 de Maio de
1503 e, em 11 de Setembro seguinte, seria incorporado no Colégio dos
Doutores e Mestres Artistas. Como esclarece Enrique Esperabé
/ 21 /
Arteaga, «isto permite supor que não era graduado em mestre por
Salamanca e que a nomeação de catedrático de propriedade de Retórica
seria em alguns dias anterior à sua incorporação, por ser prática
corrente nessa época não receber o grau ou não ser incorporado sem ter
cátedra de propriedade».
(29)
Depois, nessa qualidade de professor catedrático, ensinou
durante vinte anos, conforme o costume académico; com efeito, isso mesmo
é confirmado pela anotação dos livros de contas da Universidade, onde se
indica, no correspondente ao curso de 1523-1524, que ele, nesta ocasião,
já estava jubilado. As aulas iniciavam-se no dia de S. Lucas, 18 de
Outubro, e terminavam na festa litúrgica da Natividade de Nossa Senhora,
8 de Setembro – a que se seguia um período de férias.
Como houve ocasião de dizer, Aires Barbosa manteve
relações especiais de extrema cordialidade com um dos homens mais
importantes do humanismo espanhol, dotado de fulgurante talento e de
profundo saber, de seu nome completo Élio António de Nebrissa; nascido
em 1444 e falecido em 1522, foi polígrafo notável como gramático,
dicionarista, poeta novilatino, editor crítico, helenista-teólogo,
cientista e historiador. Depois dos estudos feitos na Itália, ensinou em
Sevilha e nas Universidades de Saiam anca, onde teve uma carreira
agitada, e de Alcalá de Henares, para onde o chamou o fundador desta
Escola, Cardeal Jimenes. Redigiu a primeira gramática moderna de uma
língua contemporânea – o castelhano – que publicou em 1492.
O nosso aveirense manifestou bem os laços de íntima e
singular amizade que o prendiam a António de Nebrissa, defendendo-o
calorosamente dos ataques com que os adversários invejosos o mimosearam
em certa altura, precisamente quando Nebrissa se encontrava no auge da
sua carreira.
Noutra oportunidade, quando morreu o Mestre Espinhosa,
Aires Barbosa opôs-se à cadeira de Prima de Gramática; vendo, porém, que
o amigo pretendia o lugar, desistiu do concurso e deixou-o só em campo.
Todavia, em 9 de Março de 1509, o aveirense voltaria a opor-se à
referida cadeira, que o Mestre António de Nebrissa deixara vacante, pela
sua transferência para a Universidade de Alcalá de Henares; tendo sido
aprovado, dela tomaria posse em 22 do mesmo mês. Aires Barbosa viu então
satisfeita a sua velha aspiração de ser professor catedrático da Língua
Latina, em cujo ministério teria oportunidade de se revelar com
proficiência e brilho. Desistiu da de Retórica, mas continuou a ocupar a
de Grego, pela qual recebia 13000 maravedis. Aliás, foi no ensino da
Língua Grega que Aires Barbosa se elevou a tão alta culminância que os
discípulos, entre os quais André de Resende, português, e Hernán Nunez,
o Pionciano, seu sucessor na cátedra, lhe deram o epíteto de «Mestre
Grego». Efectivamente, enquanto desempenhou o múnus de professor, a
cultura helénica em Espanha esteve sobretudo, sem qualquer dúvida, nas
mãos do nosso insigne patrício que, em 30 de Junho de 1506, a
Universidade escolhera como um dos conselheiros para beijar as mãos de
D. Joana como Rainha e de D. Filipe I como seu legítimo consorte, nas
Cortes de Valladolid.
Neste momento, podemo-nos valer de diversos testemunhos
laudatórios que confirmam o mérito de Aires Barbosa. Eis alguns deles:
Lílio Greg. Giraldo, no livro De potioribus sui saeculi Poetis,
afirmou: – «Aires Barbosa foi um poeta português que, depois de ter sido
aluno de Policiano na Itália, introduziu em Espanha as Letras mais
cultas e, em Salamanca, ensinou as boas Letras durante vinte anos;
António de Nebrissa, ao morrer, deixou-lhe em testamento a sua obra para
corrigir».(30)
(continua na página seguinte
►)
_____________________________
NOTAS:
(1) – Transc. de Arquivo do Distrito de Aveiro, XXVI, Ano
de 1960, pg. 80, onde se encontrava o texto latino e a tradução
portuguesa.
(2)
– Edição de 1943, Porto, Tomo I, Vol. 11, pgs. 351 e
352.
(3) – Edição de 1597, Roma, pg. 97. Vd. Arquivo do
Distrito de Aveiro, XIV, Ano de 1948, pgs. 44-45.
(4)
– Cfr. Artur Anselmo, Origens da Imprensa em
Portugal, Lisboa, 1981, pgs. 46-47.
(5)
– Antimória, Epigramas, XXVI: Arquivo cit., XXVI, Ano
de 1960, pgs. 66 e 67.
(6) – Id.
(7) – A Épica Portuguesa no Século XVI, São Paulo, 1950;
edição fac-similada, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1987, pg.
88.
(8) – Carta de 17 de Agosto de 1489, cit. por Fidelino de
Figueiredo, em A Épica Portuguesa no Século XVI, pg. 106.
(9)
– Antimória, Epigramas, XVII; Arquivo cit., XXVI, Ano
de 1960, pgs. 66 e 67.
(10) – Vd. carta cit. por Fidelino de Figueiredo, obra
cit., pgs. 93-97 (tradução nas pgs. 99-104).
Vd. ainda resposta de D. João II, pgs. 98-99 (pgs.
104-105).
(11)
– Art et Humanisme à Florence au temps de Laurent
le Magnifique, Paris.
Presses Universitaires de France, 1961, pgs. 40 e 55.
(12) – Ano de 1489, segundo a correcção feita na reedição
holandesa; na edição de Alcalá de Henares, tinha saído a data de 1488.
Livro I, epístola última.
(13) – Texto latino e tradução portuguesa no Arquivo
cit., XII, Ano de 1946, pgs. 281-282. Na mesma revista, pgs. 281-296, o
Prof. Alberto da Rocha Brito publicou um extenso artigo que intitulou: –
"O Aveirense Aires Barbosa, o Italiano Pedro Mártir e a Sífilis...
(14) – Obra publicada em 1837 e logo tida por clássica;
foi traduzida em castelhano com o título de História de los Reyes
Católicos, Madrid, 1845-1846.
(15) – Madrid, Setembro de 1929.
(16)
– Brotéria, IX, Ano de 1929, pg. 261.
(17)
–- Id., pg. 262.
(18) – Arquivo do Distrito de Aveiro, XII, Ano de 1946,
pg. 284.
(19) – Encyclopedia Portugueza lIIustrada - Diccionario
Universal, publicado sob a direcção de Maximiano Lemos, Vol. X, Porto,
pg. 394.
(20) – Cit. por Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira, Vol. XXVIII, pg. 695.
(21) – FI. 29, V.
(22) – História Pragmática é Interna de Ia Universidad de
Salamanca, Tomo lI, Salamanca, Ano de 1917, pg. 328.
(23) – Noticias Cronológicas da Universidade de Coimbra,
1729.
(24) – Texto latino cit. por Diogo Barbosa Machado, em Bibliotheca Lusitana, Tomo I, Lisboa, 1741, pg. 77, e por Manuel
Gonçalves Cerejeira, em O Renascimento em Portugal, 11, Nova edição,
Coimbra, 1975, pg. 81.
(25) – Em Diccionario Universal II, pg. 75, cit. por
Lucas Garcia Martin em Memória de Ia Universidad de Salamanca,
1884-1885, pg. 136.
(26)
– Bibliotheca Hispana Nova, Tomo I, Madrid, 1783, pg.
170.
(27) – Ad Juvenes studiosos, cit. por Manuel Gonçalves
Cerejeira, obra, tomo e edição cit., pg. 89.
(28) – In Barbarum, cit. pelo mesmo autor, ibid., pg. 89.
Texto completo, em tradução portuguesa: -. "Ó bárbaro, desprezas o nome
do gramático com risos e gargalhadas; nada de novo me revelas. Também o
porco despreza as pedras preciosas; ele aprecia a imundice e o
esterco...
(29) – História Pragmática é Interna de Ia Universidad de
Salamanca cit., Tomo II, pg. 328.
(30)
– Cit. por Diogo Barbosa Machado, obra e tomo cit.,
pg. 77.
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