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Boletim n.º 7 - Ano IV - 1986

 

AVEIRO NA FIGUEIRA DA FOZ

José Pires Lopes de Azevedo


 

Não, minhas senhoras e meus senhores, não me atrevo a falar-vos das origens histórico-lendárias de Aveiro: de Brigo, o fabuloso fundador, ou de Talábriga celtibérico-púnica; do estóico Marco Aurélio, sob cujo império o povoado talvez tenha tomado o crisma que tem hoje; ou da condessa Dona Muma Dias, a grande senhora que, por meados do século X, ao mosteiro de São Mamede, de Guimarães, doa terras e marinhas em Alavário…

Nem ouso falar-vos sobre raízes étnicas dos aveirenses de hoje, onde porventura se cruzarão ibero-fenícios e cartagineses, romanos e germanos, mouros e cristãos... Nem dos riquíssimos usos e costumes de Aveiro, seus modos e tradições; nem de seus lindos cantares, embora de alguns me lembre, como os da «Canoa virou» e do «Apanhar o trevo», ali recolhidos pelo etnógrafo figueirense Pedra Fernandes Tomás.

De igual modo me calo quanto a riquezas naturais do meio, e outras que o engenho humano delas soube derivar, ou adaptar. Por exemplo, calo-me sobre a poderosíssima polivalência agro-pecuária, industrial e mercantil, claramente notória ao forasteiro atento; ou sobre a sua velhíssima actividade salineira, embora desde menino saiba a cantiga de «Aveiro, por ser Aveiro / E ter marinhas de sal…»; ou sobre as suas ainda hoje múltiplas actividades artesanais, como essa dos incomparáveis moliceiros...

Da mesma sorte passo em claro foros, senhorios e pergaminhos, glórias e vicissitudes da história de Aveiro. Como em claro passo figuras aveirenses, marcantes no glorioso passado de Portugal: um mestre piloto João Afonso, navegador do Golfo de Guiné, ou um Frei Pantaleão, o do célebre «Itinerário da Terra Santa»; um José Estêvão, émulo de Garrett na oratória parlamentar, ou um modesto mas erudito João Augusto Marques Gomes, a quem a cidade deve um precioso museu; um João Jacinto de Magalhães, estrangeiro investigador de físicas e astronomias, que à morte era membro das mais importantes corporações científicas do mundo, desde Londres a Filadélfia e de Lisboa a São Petersburgo; sábio que desencadeou um estudo do figueirense Doutor Joaquim de Carvalho, grande historiador da cultura...

E nem sequer ouso aflorar o riquíssimo tema das artes plásticas em Aveiro, uma das cidades – museus do barroco português, grande parte do qual envolvente de Santa Joana Princesa, uma das capitais portuguesas da «arte nova», capital das artes da porcelana, da azulejaria, do crista…l; cidade onde deixaram sinal arquitectos ou mestres construtores – um Filipe Terzi ou um João Antunes; um Francisco Fernandes, de Coimbra ou um Manuel Azenha, de Ançã –, onde deixaram sinal escultores e entalhadores um Francisco José, portuense, ou um Simões de Almeida, de Figueiró dos Vinhos –, onde marcam presença múltiplos pintores – um Frei Carlos, um Columbano, ou um Fausto Sampaio, por exemplo –...

Não, minhas senhoras e meus senhores, não me atrevo a falar de coisas como as que aí deixo apontadas; porque, delas, sabeis vós muito mais e muito melhor! Mas, assim sendo, porque me atrevo a falar? Única e simplesmente, por deixar aqui o meu público preito de homenagem a Aveiro, na pessoa de três distintas figuras oriundas desse reino; figuras que, de todo fora do meu convívio, fortemente ajudaram a formar a minha mentalidade. Por isso aqui venho, ainda que sem novidades.

Aveiro nunca me aparece como cidade, ou concelho, ou distrito: Aveiro é toda uma fecunda e vasta região, desde o Douro à Figueira, descendo com o seu Vouga dos contrafortes das alturas beiro as até ao Mar Oceano. Pois bem, essa rica e ampla «campina rasa em forma prolongada», no saboroso dizer do padre setecentista José Teotónio Canuto de Forjó, viu nascer, no último quartel do século passado, três personalidades de professores que muito pesaram na minha formação: Ferreira Neves, Pereira Tavares, Rodrigues Lapa.

Mal chegado aos bancos do liceu, foi o Dr. Francisco Ferreira Neves quem me ensinou matemática, graças ao seu livrinho de «Aritmética Prática», publicado em Coimbra, na Imprensa que o Doutor Joaquim de Carvalho administrava. Por largos anos, nada soube das suas qualidades de investigador e publicista. Só depois que também eu vim semear aqui, na foz do Mondego, foi que o descobri, por exemplo, num dos fundadores e colaborador do excelente “Arquivo do Distrito de Aveiro”, revista que se imprimia na Figueira, onde igualmente publicou um belo estudo sobre «Origem e etimologia de Aveiro». Repito: por largos anos, apenas conheci o Dr. Ferreira Neves através dos seus compêndios escolares de aritmética e de álgebra. Entretanto, mesmo rumando a letras, se ainda hoje estimo as matemáticas, em grande parte o devo a esse ilustre aveirense.

De igual modo, logo no primeiro ano liceal tomei contacto com o Dr. José Pereira Tavares, meu guia até entrar na universidade: comecei com o seu «Livro de Leitura», para o primeiro ciclo; continuei, nos anos imediatos, com a sua «Selecta Literária»; e fiz parte do terceiro ciclo / 33 / pela sua «Selecta de Textos Arcaicos». E ainda hoje nutro especial carinho por tais compêndios. Depois, em pleno curso liceal e universitário, mas fora já da estrita obrigação escolar, li Sá de Miranda e Gil Vicente, Fernão Mendes e Camões, na linda «Colecção Lusitânia», em edições preparadas pelo Dr. Pereira Tavares. E em seguida chegou a vez das suas edições para os «Clássicos Sá da Costa»; e as «Églogas», de Rodrigues Lobo, outra vez da Imprensa da Universidade gerida pelo Doutor Joaquim de Carvalho. E sempre, pelos anos fora, o contacto cresceu: quer através da homenagem que num periódico local quis prestar a esse figueirense mestre de filosofia, quer através do contacto com outras publicações – como a das «Cinquenta fábulas de Fedro», composta em Aveiro em 1929 –, quer pelo assíduo contacto com a benemérita “Labor”, uma das melhores revistas de professores que já houve e onde até alcancei publicar um escrito, quer ainda através da melancólica aquisição de algumas obras da sua biblioteca particular, em Lisboa leiloadas...

Igualmente no liceu descobri o Doutor Rodrigues Lapa, nos «Textos Literários» da também sua «Seara Nova». Quantas coisas não estudei eu, nesses livrinhos pedagogicamente primorosos? Desde o quarto ano, a gente devia ler e resumir ou apreciar por escrito alguns deles; e isso, que implicava bastante trabalho, fazia eu com um entusiasmo que ainda hoje gosto de lembrar. Que bem me ensinou aí o Doutor Rodrigues Lapa! E o interesse despertado foi continuando-se pelos tempos fora, pelas suas edições para os «Clássicos Sá da Costa» ou as «Cantigas» de Afonso X, até o ensaio «Das origens da poesia lírica em Portugal na Idade Média», e as «Lições de Literatura Portuguesa», referidas igualmente ao tempo medieval.

Eis aí três mestres grandes, três homens que, ligados ao ensino, foram bons e constantes e honestos semeadores de uma seara imensa, de cujos frutos nenhum seria capaz de fazer seguro cálculo! E eu, embora um dos piores desses frutos, mas grato para com tais mestres, a quem nunca de resto pessoalmente conheci, não podia deixar fugir esta bela oportunidade de, homenageando-os, prestar honras a Aveiro que nos visita e foi pátria de tais homens. / 34 /

 


 


«O mar da Figueira é um mar de acolhedor aspecto. O verde do Atlântico cede ali o seu império às safiras e ao lápis-Iazuli de certos golfos da Argólida. Compreende-se, enfim, contemplando-o, a existência de uma antiga lenda que o dá como tendo recebido outrora a visita duma galera grega cujos marinheiros se estabeleceram nesta deleitosa e vasta enseada, presos do encanto do céu, da pureza do ar diáfano e do cântico harmonioso e contente das vagas...».

 

João de Barros

(em «Guia de Portugal», 3.º volume, pág. 73).

 


 

 

 

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