AVEIRO NA FIGUEIRA DA FOZ
José Pires Lopes de Azevedo
Não, minhas senhoras e meus senhores, não me atrevo a falar-vos das
origens histórico-lendárias de Aveiro: de Brigo, o fabuloso fundador, ou
de Talábriga celtibérico-púnica; do estóico Marco Aurélio, sob cujo
império o povoado talvez tenha tomado o crisma que tem hoje; ou da
condessa Dona Muma Dias, a grande senhora que, por meados do século X,
ao mosteiro de São Mamede, de Guimarães, doa terras e marinhas em
Alavário…
Nem ouso falar-vos sobre raízes étnicas dos aveirenses de
hoje, onde porventura se cruzarão ibero-fenícios e cartagineses, romanos
e germanos, mouros e cristãos... Nem dos riquíssimos usos e costumes de
Aveiro, seus modos e tradições; nem de seus lindos cantares, embora de
alguns me lembre, como os da «Canoa virou» e do «Apanhar o trevo», ali
recolhidos pelo etnógrafo figueirense Pedra Fernandes Tomás.
De igual modo me calo quanto a riquezas naturais do meio,
e outras que o engenho humano delas soube derivar, ou adaptar. Por
exemplo, calo-me sobre a poderosíssima polivalência agro-pecuária,
industrial e mercantil, claramente notória ao forasteiro atento; ou
sobre a sua velhíssima actividade salineira, embora desde menino saiba a
cantiga de «Aveiro, por ser Aveiro / E ter marinhas de sal…»; ou sobre
as suas ainda hoje múltiplas actividades artesanais, como essa dos
incomparáveis moliceiros...
Da mesma sorte passo em claro foros, senhorios e
pergaminhos, glórias e vicissitudes da história de Aveiro. Como em claro
passo figuras aveirenses, marcantes no glorioso passado de Portugal: um
mestre piloto João Afonso, navegador do Golfo de Guiné, ou um Frei
Pantaleão, o do célebre «Itinerário da Terra Santa»; um José Estêvão,
émulo de Garrett na oratória parlamentar, ou um modesto mas erudito João
Augusto Marques Gomes, a quem a cidade deve um precioso museu; um João
Jacinto de Magalhães, estrangeiro investigador de físicas e astronomias,
que à morte era membro das mais importantes corporações científicas do
mundo, desde Londres a Filadélfia e de Lisboa a São Petersburgo; sábio
que desencadeou um estudo do figueirense Doutor Joaquim de Carvalho,
grande historiador da cultura...
E nem sequer ouso aflorar o riquíssimo tema das artes
plásticas em Aveiro, uma das cidades – museus do barroco português,
grande parte do qual envolvente de Santa Joana Princesa, uma das
capitais portuguesas da «arte nova», capital das artes da porcelana, da
azulejaria, do crista…l; cidade onde deixaram sinal arquitectos ou
mestres construtores – um Filipe Terzi ou um João Antunes; um Francisco
Fernandes, de Coimbra ou um Manuel Azenha, de Ançã –, onde deixaram
sinal escultores e entalhadores um Francisco José, portuense, ou um
Simões de Almeida, de Figueiró dos Vinhos –, onde marcam presença
múltiplos pintores – um Frei Carlos, um Columbano, ou um Fausto Sampaio,
por exemplo –...
Não, minhas senhoras e meus senhores, não me atrevo a
falar de coisas como as que aí deixo apontadas; porque, delas, sabeis
vós muito mais e muito melhor! Mas, assim sendo, porque me atrevo a
falar? Única e simplesmente, por deixar aqui o meu público preito de
homenagem a Aveiro, na pessoa de três distintas figuras oriundas desse
reino; figuras que, de todo fora do meu convívio, fortemente ajudaram a
formar a minha mentalidade. Por isso aqui venho, ainda que sem
novidades.
Aveiro nunca me aparece como cidade, ou concelho, ou
distrito: Aveiro é toda uma fecunda e vasta região, desde o Douro à
Figueira, descendo com o seu Vouga dos contrafortes das alturas beiro as
até ao Mar Oceano. Pois bem, essa rica e ampla «campina rasa em forma
prolongada», no saboroso dizer do padre setecentista José Teotónio
Canuto de Forjó, viu nascer, no último quartel do século passado, três
personalidades de professores que muito pesaram na minha formação:
Ferreira Neves, Pereira Tavares, Rodrigues Lapa.
Mal chegado aos bancos do liceu, foi o Dr. Francisco
Ferreira Neves quem me ensinou matemática, graças ao seu livrinho de «Aritmética
Prática», publicado em Coimbra, na Imprensa que o Doutor Joaquim de
Carvalho administrava. Por largos anos, nada soube das suas qualidades
de investigador e publicista. Só depois que também eu vim semear aqui,
na foz do Mondego, foi que o descobri, por exemplo, num dos fundadores e
colaborador do excelente “Arquivo do Distrito de Aveiro”, revista
que se imprimia na Figueira, onde igualmente publicou um belo estudo
sobre «Origem e etimologia de Aveiro». Repito: por largos anos,
apenas conheci o Dr. Ferreira Neves através dos seus compêndios
escolares de aritmética e de álgebra. Entretanto, mesmo rumando a
letras, se ainda hoje estimo as matemáticas, em grande parte o devo a
esse ilustre aveirense.
De igual modo, logo no primeiro ano liceal tomei contacto
com o Dr. José Pereira Tavares, meu guia até entrar na universidade:
comecei com o seu «Livro de Leitura», para o primeiro ciclo; continuei,
nos anos imediatos, com a sua «Selecta Literária»; e fiz parte do
terceiro ciclo
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pela sua «Selecta de Textos Arcaicos». E ainda hoje nutro
especial carinho por tais compêndios. Depois, em pleno curso liceal e
universitário, mas fora já da estrita obrigação escolar, li Sá de
Miranda e Gil Vicente, Fernão Mendes e Camões, na linda «Colecção
Lusitânia», em edições preparadas pelo Dr. Pereira Tavares. E em seguida
chegou a vez das suas edições para os «Clássicos Sá da Costa»; e as «Églogas»,
de Rodrigues Lobo, outra vez da Imprensa da Universidade gerida pelo
Doutor Joaquim de Carvalho. E sempre, pelos anos fora, o contacto
cresceu: quer através da homenagem que num periódico local quis prestar
a esse figueirense mestre de filosofia, quer através do contacto com
outras publicações – como a das «Cinquenta fábulas de Fedro»,
composta em Aveiro em 1929 –, quer pelo assíduo contacto com a
benemérita “Labor”, uma das melhores revistas de professores que
já houve e onde até alcancei publicar um escrito, quer ainda através da
melancólica aquisição de algumas obras da sua biblioteca particular, em
Lisboa leiloadas...
Igualmente no liceu descobri o Doutor Rodrigues Lapa, nos
«Textos Literários» da também sua «Seara Nova». Quantas coisas não
estudei eu, nesses livrinhos pedagogicamente primorosos? Desde o quarto
ano, a gente devia ler e resumir ou apreciar por escrito alguns deles; e
isso, que implicava bastante trabalho, fazia eu com um entusiasmo que
ainda hoje gosto de lembrar. Que bem me ensinou aí o Doutor Rodrigues
Lapa! E o interesse despertado foi continuando-se pelos tempos fora,
pelas suas edições para os «Clássicos Sá da Costa» ou as «Cantigas» de
Afonso X, até o ensaio «Das origens da poesia lírica em Portugal na
Idade Média», e as «Lições de Literatura Portuguesa», referidas
igualmente ao tempo medieval.
Eis aí três mestres grandes, três homens que, ligados ao
ensino, foram bons e constantes e honestos semeadores de uma seara
imensa, de cujos frutos nenhum seria capaz de fazer seguro cálculo! E
eu, embora um dos piores desses frutos, mas grato para com tais mestres,
a quem nunca de resto pessoalmente conheci, não podia deixar fugir esta
bela oportunidade de, homenageando-os, prestar honras a Aveiro que nos
visita e foi pátria de tais homens.
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«O mar da Figueira é um mar de acolhedor aspecto. O verde do Atlântico
cede ali o seu império às safiras e ao lápis-Iazuli de certos golfos da
Argólida. Compreende-se, enfim, contemplando-o, a existência de uma
antiga lenda que o dá como tendo recebido outrora a visita duma galera
grega cujos marinheiros se estabeleceram nesta deleitosa e vasta
enseada, presos do encanto do céu, da pureza do ar diáfano e do cântico
harmonioso e contente das vagas...».
João de Barros
(em «Guia de Portugal», 3.º volume, pág. 73).
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