O CARRO RURAL DE BOIS
Começo
as minhas palavras por um pequeno retalho da história do carro, ao qual
já a Bíblia alude, falando do carro de fogo de Elias – aquele que,
inflamado, arrebatou o profeta ao Céu.
Não é possível fixar a sua invenção. Foram usados pelos
povos primitivos e Salomão, de acordo com os textos bíblicos, já possuía
muitos. Eram empregados pelos Assírios, Caldeus, Babilónios, Persas e
Gregos.
Os Romanos apareceram quando já esse material de guerra
estava abandonado e era por si aproveitado com as tropas auxiliares,
especialmente com os Gauleses.
Antes do gado bovino, sobretudo antes destes animais
puxarem o carro rústico de roda presa, vários foram os processos
utilizados para a deslocação de pesos e transportes de tudo o que a
favor do homem podia resultar positivo.
Assim, o que é que se utilizou anteriormente aos
improvisados carros de bois?
O homem naturalmente, quando teve necessidade de utilizar
a terra para, além dos frutos, dar extrair complementos alimentares,
teve forçosamente de desbravar e arrotear os solos. Para o efeito e para
poder formar os seus quinchosos ou feiras, teve de abrir clareiras nos
bosques densos e resguardar com paliçadas altas, das depredações e dos
assaltos dos animais daninhos ou ferozes.
Deste modo, terá surgido o engenho do homem, utilizando
as rolarias das árvores cortadas; terá sentido a necessidade de atrelar
os seus bois já domesticados não apenas ao arado, mas também a algo que
suportasse cargas, unindo para o efeito rolos atados que arrastavam
sobre si outras madeiras ou rolarias.
Tal engenhoca foi-se aperfeiçoando e então já os toros
eram ligados por travessas e tornos, também de madeira. A estes veículos
(?) de arrastamento começou por se chamar corsos, trenós, zorras ou
leras.
Mas com a deslocação de rolos, uns sobre os outros,
rolando, logo terá sido aproveitada a ideia e o sistema para a
deslocação e transporte de pesadas cargas, como, além das madeiras,
grandes pedras, etc.
Assim, terá sido descoberta a roda, com o aproveitamento
de rodelas de troncos grossos, as quais teriam sido ligadas às
extremidades de um rolo por entrada em cavidade aberta no centro das
rodelas e, sobre o rolo (eixo), teria sido colocado um estrado formado
naturalmente por urna caranguejola de rolaria ou madeira mal
aperfeiçoada.
Deste modo se obteve o primitivo carro de bois. Deste
propósito derivou o carro de bois e, mais tarde em Portugal e não só,
com a roda de camba e meul, que praticamente quase desapareceu.
Antes, porém, da roda de camba e meul, apareceram várias
rodas maciças em madeira, protegidas com tábuas cruzadas a fim de lhe
permitirem mais resistência e o seu não empenamento. Tais rodas não
tinham qualquer protecção
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nos rodados; era a própria madeira que rolava sobre o chão.
Vamo-nos ocupar, agora, do carro de roda presa, de camba
e meul, que praticamente muitas das nossas gentes conheceram e ainda
utilizaram, começando, como acabámos de dizer, pelo seu rodado que era
composto pelas tais duas rodas, ligadas por um eixo, cujas extremidades
eram facetadas, e marchetado nas cavidades do miúlo de cada roda, para o
efeito com as mesmas e ajustadas dimensões.
Não era qualquer madeira que poderia ser aplicada em
rodas que iriam suportar pesadas cargas, tendo em conta sobretudo,
também, a sua durabilidade. Ao tempo era madeira de sobreiro, carvalho e
até castanheiro, que vulgarmente era utilizada, por ser a melhor, para o
efeito, da nossa floresta.
Ainda acerca das rodas, as cambas eram ligadas através do
miúlo por duas meias-luas opostas, em aro de ferro devidamente pregadas,
a fim de lhes dar maior segurança na união das partes, e os fortes
rastos ou aros em ferro de aço, moldados em três ou quatro partes, eram
pregados nas cambas que formavam os rastos a fim de lhes proteger o
desgaste da madeira e permitir, assim, uma maior duração.
Frisamos que todo o prego era de fabrico artesanal e
processava-se, sobretudo, em Mourisca do Vouga, tal como aconteceu para
as primeiras construções navais na Gafanha que, para a sua aplicação por
motivo das águas salgadas, sofria um banho de zincagem.
Vamos tratar de seguida do estrado, soa-lho, leito ou
chedeiro que pousava sobre os rodados e onde eram carregadas todas as
espécies de cargas.
A forma normal – comum – era rectangular. Do centro como
trave mestra, no sentido do seu comprimento, tinha o cabeçalho e de cada
lado, paralelamente, as guias laterais que tinham por nome as chedas
que, arqueando ou afunilando mais ou menos ao meio do cabeçalho,
uniam-se pelos extremos das travessas que vazavam o mesmo cabeçalho e
sobre as quais as tábuas eram pregadas, formando o leito ou chedeiro que
era dividido em dois meios tabuleiros.
O seguimento do cabeçalho, isto é, a parte que se
prolonga a seguir ao estrado, que deixa de ser faceado para ser boleado
e não magoar os animais, era e ainda é a trave que entre os bois vai
ligar à canga. Neste ponto extremo da trave que"é o cabeçalho, existe um
furo de razoáveis dimensões, onde entra a chavelha que permite a
segurança da canga ou jugo, tanto no puxar como no recuar do carro.
Antes de entrarmos na descrição da canga ou jugo, vamos
continuar com a composição do estrado e seu aproveitamento, sob o qual
giram os rodados.
As chedas, como aludimos, são as guias laterais, onde
existem uns furos, geralmente quadrados, que servem para aplicar os
fueiros, os taipais, as sebes ou os pequenos e curvos fueiros ligados
por uma tábua sobre as rodas. Por baixo de cada cheda, existem pelo
menos dois tornos de cada lado, que servem para passar os adivais que
cruzam as cargas, apertando-as, para lhes permitirem maior segurança.
Anteriormente ao aparecimento da garrida, o eixo rodava
sob a madeira das chedas ou de qualquer calço protector da cheda,
também, em madeira, Mais tarde apareceram então as garridas ou
cantadeiras, já em ferro fundido, que eram colocadas por baixo das
chedas e sobre o respectivo eixo com rasgo adaptável, a fim de evitar
maior desgaste de madeira com madeira. As garridas, que tinham dois
rasgos nos extremos e no sentido longitudinal, eram aplicadas entre dois
fortes tornos para evitar a sua deslocação, que tinham o nome de cocão.
Este já antes da garrida ou tortueira existia, pois era entre os mesmos
cocões que o eixo girava, quando de madeira com madeira.
Relativamente ao cocão, diz a sabedoria popular:
Em Abril queimou a mulher o carro e o carril, e
Um bocado que ficou, em Maio o queimou, e ainda
Pelo São João queimou o cocão.
Atrás do carro, dependurado no último fueiro ou em
qualquer outra adaptação, seguia o chifre ou corno de boi, que levava a
untura que servia para untar o eixo e que era aplicada com uma espécie
de pincel, feito com tiras de farrapos atados na extremidade de um
pequeno pau que se mantinha introduzido no respectivo corno.
Aqui e referente à untura, diz, também, a sabedoria
popular:
Carro adiante dos bois
Carro que canta, a seu dono avança
Mau carro, pior arado
Quem seu carro unta, seus bois ajuda
Quem caminha em carro, não vai a pé, nem a cavalo
A carro entornado, todos dão a mão.
Feita esta descrição, vamo-nos de novo ocupar da canga ou
jugo.
Como atrás já referimos quando aludimos à entrada do
extremo do cabeçalho, chamado temão ou timão na canga, esta servia e
serve ainda para aplicar ao cachaço dos animais jungindo-os e,
permitindo assim, o puxar do carro pela junta.
A canga além do seu corpo principal, completa-se com um conjunto de
apêndices que passamos a descriminar no tocante a nomes e aplicações.
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As quatro cangalhas, duas de cada lado, que são fortes
ripas introduzidas no corpo da canga, boleada sobretudo na parte
inferior, controla o animal através do cachaço, tendo as mesmas
cangalhas nos extremos inferiores de cada uma e do lado exterior, um
pequeno corte arredondado, onde é aplicada a brocha, pequena correia de
couro ou corda, que rodeia o pescoço do animal sob a barbeia, cujo uso e
vantagem é não deixar que o carro com carga ou sem carga, vá ao pino; o
tamoeiro ou temoeiro, correia de couro mais forte, circunda a parte
central do corpo da canga, onde é introduzido o cabeçalho ou timão do
carro, fixado por um pequeno fueiro, já referido, chamado chavelha; há
ainda quem utilize uma pequena correia de couro ou corda que prendendo
às cangalhas interiores, passa por um furo lateral do timão ou pela
parte superior do mesmo à volta de um pequeno torno, que tem o nome de
passadeira, cuja utilidade é controlar o arrecuo do carro; temos ainda a
peaça, forte correia de couro que, cruzada nos chifres dos bois e na
canga, permite o tiro do carro.
A
canga ou jugo não é só utilizada no carro de bois; ela serve, também,
para que a junta puxe o arado que lavra a terra rasgando-a, que é
introduzido através do seu timão no tamoeiro da canga, ou na charrua que
lavra a terra em leivas, ou a grade com os seus dentes que descaroça e
arrasa a terra, que tem, como alfaia agrícola de atrelar, o cambão que é
um pequeno e delgado rolo de madeira de um lado com funções de timão e
do outro com a necessária aplicação de um gancho que liga à charrua ou à
grade, naturalmente, quando nas tarefas do campo. O cambão também era
substituído, por vezes, por uma corrente em ferro, com um timão no
extremo para entrar na canga, como é óbvio, através do tamoeiro.
A canga é uma palavra de origem asiática e designava,
sobretudo na China, duas pesadas peças de madeira com uma chanfradura ao
centro, que se reuniam depois de ter metido entre elas o pescoço do
condenado.
Hoje significa a canga ou jugo um utensílio de lavoura
com que se jungem os bois ao carro ou a outras alfaias agrícolas.
A canga simples na sua execução ou acabamento, difere um
pouco de região para região.
O jugo é uma canga mais alta, de várias formas, recta,
horizontal, arqueada, dentada, etc., que, além de possuir todos os
apoios necessários, mostra um painel trabalhado na parte posterior, com
baixos relevos ou sulcos, apresentando típicos adornos de vários
feitios, com variadíssimos enfeites e pinturas, mostrando outros nos
seus vazados, aberturas de várias formas designando motivos alusivos a
símbolos religiosos e profanos ou actividades praticadas na sua região;
na aresta superior muitos são enfeitados, por vezes, com pincéis de
crina de cavalo.
Se fôssemos a debruçar só sobre este tema de jugos e
cangas, assim como de antigos carros de bois, através de Portugal,
teríamos um trabalho etnográfico bastante demorado que, só por si,
absorvia todo o tempo, porventura distribuído, também, a mais outros
participantes.
Ainda relativamente aos bois que puxavam os carros, os
mesmos eram conduzidos até às tarefas campesinas e depois das mesmas,
por cordas ou tiras de couro que circundavam e ainda circundam os dois
chifres e que tem o nome de sogas.
Também existia e existe o cabresto que, neste caso
concreto, é geralmente uma corda entrelaçada que passa pela cabeça e
focinho do animal, e é utilizado, além do gado cavalar, também no gado
bovino quando não adulto (bezerros ou vitelos, portanto com menos de um
ano) isto é, quando o animal ainda não tem chifres ou cornos.
Ainda ao gado bovino é aplicado o cofinho, que é uma
espécie de cestinho em malha de arame, para que aqueles animais quando
passam por prados com plantações a resguardar ou se ocupam em trabalhos
campesinos em cuja vizinhança existiam, de igual modo, hortas, plantas,
arbustos ou árvores de baixo porte, não possam estender a língua para
introduzirem na boca, tudo o que traduza pastagem para a sua
alimentação; deste modo, evitam-se os danos que quantas vezes
correspondem a perdas irreparáveis com pesados prejuízos na apanha ou na
colheita dos géneros.
A completar os mencionados utensílios
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alusivos â lavoura, temos ainda a vara com aguilhão para a sua
utilização em gado mais pachorrento, para que, aguilhando-o, fosse
espevitado e consequentemente torná-lo mais rápido no aproveitamento do
tempo e rentabilidade nos serviços.
Vamo-nos deter, a seguir, no respeitante à utilização que
teve o carro rural de bois.
O carro de roda presa que existiu em toda a parte e ainda
hoje nalguns meios rurais serranos não é dispensado por razões de
segurança, ao circularem por quebradas entre o desgasta do granito; a
roda presa permite o equilíbrio do carro e, simultaneamente, serve de
travão, evitando o despiste.
O antigo carro de bois de roda presa, além do uso
essencialmente agrícola e rural, serviu para, engalanado em colchas,
ramagens e flores, transportar de longe à matriz da freguesia os noivos
e acompanhantes ou para transportar os romeiros às festas das redondezas
e quantas vezes dos recônditos povoados alcantilados para transportar os
mortos para os cemitérios, tantas vezes tão distanciados, etc., etc..
Eram verdadeiros desfiles etnográficos...
A propósito do referido carro rural de bois, levado pelos
portugueses para o Brasil e que de certo modo ajudaram o seu crescente
desenvolvimento de então, um poeta brasileiro escreveu um poema com o
título "Zé-Carreiro", que passo a transcrever:
Nos tempos em que o carro empavezado,
Coberto de lençóis, de colchas ricas
E de fofo colchão todo forrado,
Nas noites frias de luar intenso,
Ou nas ruas de sol reverberante,
Levava para as missas de Natal,
A de Ramos, de Páscoa e de Aleluia
Sinhazinhas coradas e felizes
E damas carregadas de nobreza.
Ainda relativamente ao carro rural de bois de roda presa,
de camba e miúlo, respigámos de um velho alfarrábio, o seguinte:
«... É a canção da noite e das madrugadas, quando o carro
canta gemidos atrás da resignada serenidade dos bois. E o carro gemendo,
na tristeza das noites, faz o mais belo e delicioso acompanhamento a
essa voz (a do boieiro) que nos parece a alma da terra vibrando e
cantando.»
Esclarecemos que o homem que constrói o carro de bois tem
o nome de segeiro.
Passando, agora, ao seu uso e utilidade agrícola, o carro
de bois foi fruto de uma mono-cultura económica. Ele transportava para o
campo todas as alfaias agrícolas para o rasgar da terra com vista às
sementeiras, carregava os estrumes para a adubação das mesmas terras, as
sementeiras e outros utensílios; na colheita depois da ceifa, trazia o
milho, o trigo e outros cereais; aquando das vindimas, transportava as
dornas ou lagariças com as uvas, etc..
Todos os apêndices ou utensílios dos antigos carros
rurais de bois tinham a seguinte aplicação: – Os fueiros para amparar
cargas que se processavam ao comprido do carro e que não eram de fácil
desagregação, como palhas e fenos; os taipais laterais, de boca e
traseiros, tinham por objectivo precisamente o contrário dos fueiros,
isto é, permitirem a acomodação da carga, não dando lugar a que se
dispersasse, como com areias ou balastros; a sebe é um utensílio mais
amplo, de protecção de carga, em forma de ferradura e tecida de vime
que, geralmente, era utilizada aquando do transporte de estrumes
destinados à estrumação das terras, com vista às várias culturas e no
regresso servia para amparar as pastagens, designadamente as ervas.
Existiam ainda pequenos fueiros e fueiros curvados para o exterior, um à
frente e outro atrás de cada roda, sobre os quais, unindo-se, era
aplicada uma tábua pregada, para evitar que as cargas de mato, de palha
ou feno, roçassem nos rastos das rodas.
Outras aplicações ficarão no esquecimento mas, para
finalizar, o carro de bois ainda servia para a matança do porco. Pondo-o
ao comprido com a parte traseira sobre o chedeiro e o restante do corpo
da frente ao longo do cabeçalho, atado pelas patas traseiras a um fueiro
e a queixada superior ou o focinho ao referido cabeçalho, o porco aí
expirava após vibração de comprida faca de dois gumes, deixando jorrar o
seu sangue sobre o alguidar vidrado, que deliciava o apetite dos donos e
seus amigos com as maravilhosas e apetitosas morcelas ou, cozido com as
habituais plantas aromáticas e depois coberto com as folhas de loureiro,
entrava na sarrabulhada e, até com os seus fofos pedacinhos, geralmente
acompanhava os saborosos rojões.
Severim Marques
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Nota da Redacção – Este trabalho foi apresentado pelo
autor no I Colóquio sobre Folclore do Concelho de Aveiro,
realizado em 29 de Maio de 1986.
– As gravuras são do livro «Desenho Etnográfico de
Fernando Galhano», 1-Portugal, editado em 1985 pelo INIC e pelo IICT.
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