Homenagem a José Estêvão
em Lisboa
Em 4 de Maio de 1878, inaugurou-se em Lisboa, no Largo de S. Bento, a
estátua de José Estêvão Coelho de Magalhães. O monumento, que estava
velado por uma bandeira nacional, foi descerrado pelos presidentes das
duas Câmaras – a dos Deputados e a dos Pares. Exactamente nesse dia,
encerrava-se a última sessão da vigésima legislatura das Cortes,
inaugurada em 1875.
Após a revolução de 1926, a estátua, uma vez apeada e retirada, foi
recolhida dentro do edifício do Parlamento; isto aconteceu em 1935.
Modificado o contexto político, começou-se a pensar na sua reposição – o
que viria a acontecer em 15 de Outubro de 1984, no próprio dia em que se
iniciou mais uma sessão legislativa da Assembleia da República.
Antes da ordem do dia, houve um período de tempo destinado a
intervenções alusivas à homenagem em memória do eminente parlamentar
aveirense. Assistiram à sessão representantes das autoridades do
Distrito de Aveiro, nomeadamente autarcas da nossa Câmara Municipal, que
ofereceram a cada um dos deputados um exemplar do livro «Discursos
Parlamentares».
Por julgarmos que o acto, sendo de cariz nacional, honrou extremamente A
veiro, transcrevemos, na íntegra, as intervenções dos
porta-vozes dos grupos parlamentares:
(a)
► 1. – Dr. Manuel Cardoso Vilhena de Carvalho (ASDI)
Sr. Presidente, Srs. Deputados: São volvidos mais de 100 anos sobre a
inauguração da estátua de José Estêvão, a qual enfrentou, durante
décadas, o antigo Palácio das Cortes.
A deambulação a que esta tem sido sujeita, talvez mais por ironia de
desencontrados juízos históricos que por imposições de enquadramento
estético, sugere-nos que lembremos que também em vida foi o nosso
homenageado de hoje sujeito a constantes deambulações, nem sempre
voluntárias, antes forçadas pelas circunstâncias de um tempo, como o
seu, tão agitado da vida nacional.
A emigração, o exílio, a luta militar em diversas
frentes, no continente como nas ilhas, até a guerrilha no Alentejo, são
de facto, imagens da sua vida irrequieta, que no seu todo se traduziu,
no entanto, na afirmação de uma personalidade forte, de um patriotismo
activo, de um esforçado defensor, através da espada, através da pena e
sobretudo através da palavra, das perseguidas e constantemente ameaçadas
concepções liberais, que acabariam por se impor no século passado com
homens da têmpera de José Estêvão.
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O Batalhão Académico de Coimbra pôde contar com ele, voluntariamente,
interrompendo, assim, o seu curso de Direito, na luta contra D. Miguel e
contra o absolutismo, de que era arauto e bandeira, e, mais tarde, na
defesa dos mesmos ideais de liberdade bateu-se galhardamente como
oficial do Exército, onde alcançou o posto de capitão, merecendo mesmo,
pelos feitos durante o cerco do Porto, a Torre e Espada.
Na histórica vila da Almeida, consegue romper o cerco imposto àquela
forte praça, onde seu pai esteve preso e um seu tio conheceu a morte nas
subterrâneas «casas-matas», e prepara a sublevação de Trás-os-Montes.
Se referimos a sua passagem por Almeida, é para assinalar que José
Estêvão é, de entre os muitos heróis que estão ligados aos feitos
daquela vetusta praça militar, um dos mais lembrados pela sua bravura e
patriotismo.
Mas o homem que honrou a espada não honrou menos a pena.
Tendo desembarcado na ilha Terceira com D. Pedro, foi ali redactor da
Crónica da Terceira, lugar que só deixou quando o regente passou a
Portugal, em 1832.
Foi fundador da Revolução de Setembro, cujo relevante papel desempenhado
na história da imprensa portuguesa é em geral reconhecido.
Faz também sair o jornal “A Liberdade”, e, na sua terra natal, fundou “O
Distrito de Aveiro”, onde insere colaboração da mais valiosa.
A força das suas convicções, o combate através da imprensa em prol dos
seus ideais, não impedia, porém, que cultivasse um são respeito pelos
próprios inimigos e, assim, intervém com veemência na defesa do jornal
miguelista “Portugal Velho”, quando este foi processado por abuso de
liberdade de imprensa.
Mas se a espada e a pena o distinguem na sua época e o impõem à
consideração dos vindouros, José Estêvão é, sobretudo o grande mago da
palavra, o orador que fundia sabiamente o verbo, a voz e o gesto, que
atraia ainda mais o ouvinte que o simples leitor dos seus admiráveis
discursos.
Discursar era, em José Estêvão, um dom natural, e um dom que deste muito
cedo possuía. No dizer do seu próprio filho, chegou a pensar na carreira
eclesiástica, «para onde o chamava, a par do encanto enlevado do sonho
cristão, o génio da eloquência, e que na tribuna sagrada via o campo
mais adequado à acção das suas balbuciantes faculdades oratórias».
Outra foi, porém, a sua carreira, e a vida política acabou por lhe
propiciar e desenvolver as suas inatas qualidades oratórias.
Deputado às Constituintes de 1837, época em que, segundo
os comentadores, ainda «as candidaturas se não decretavam no Terreiro do
Paço e as
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localidades, na sinceridade primitiva de um regime novo, elegiam seu
representante o homem de cujos méritos tinham conhecimento próprio, o
conterrâneo que lhes parecia digno dessa honra», só deixará de ocupar o
seu lugar nas Cortes durante o cabralismo, pois nelas reingressou' após
a revolução de 1851, integrado no chamado «Movimento da Regeneração»,
auxiliando então o marquês de Saldanha na organização do Ministério.
Só para citar alguns dos seus mais célebres discursos, lembraremos o da
sua estreia parlamentar, a «Profissão de Fé», o do «Porto Pireu», em
polémica com esse outro grande parlamentar que foi Almeida Garrett, o
discurso sobre o incidente nas águas moçambicanas da barca francesa
Charles et Georges e, talvez o seu último grande discurso, sobre as
exéquias de Cavour.
Se os seus dotes de ara e requintada eloquência permitem que distingamos
José Estêvão como um caso ímpar de oratória parlamentar, não é menos
verdade que esses dotes sempre foram postos ao serviço do seu povo,
sobretudo dos mais humildes, numa estreita ligação da palavra à acção e
dos ideais à tentativa da sua concretização.
Inclinamo-nos perante a grandiosidade do seu exemplo de homem livre e
combativo. De político que afirmava nem conhecer a paixão nem o ódio e,
nesta necessariamente breve evocação, que coincide com o início da 2.ª
Sessão Legislativa da III Legislatura da nossa vida constitucional pós
Abril, atrevemo-nos a sugerir que, como forma de dar conteúdo a esta
mesma evocação, a Assembleia da República se não baste em levar para
mais perto do público o bronze em que se perpetua a figura do insigne
parlamentar, mas faça também reunir – aliás, como há pouco verificámos
ter sido já feito pela Câmara Municipal de Aveiro –, a curto prazo e em
cuidada e comentada edição, os melhores dos seus discursos.
Se Feliciano de Castilho tinha razão quando, ao escrever o belo epitáfio
para a urna de mármore onde se guardam os restos mortais de José
Estêvão, dizia ter ficado «viúva a eloquência e a Pátria», embora «tenha
ganho a eternidade com a sua curta vida», é preciso que esse ganho de
eternidade seja por acções continuado pelos presentes e pelos vindouros
e pelos mesmos garantido.
► 2. – Dr. José Manuel Tengarrinha (MDP/CDE)
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Afigura-se-me a personalidade de José
Estêvão uma das que mais expressivamente assinalam as virtudes e as
debilidades, a pujança e as contradições do pensamento político liberal
em Portugal.
Longe dele estão todos aqueles, muitos, que buscavam a satisfação de
vaidades e ambições pessoais em sinuosas condutas oportunistas e que
tiveram o seu maior paradigma em Rodrigo da Fonseca Magalhães, o mesmo
que, cinicamente, costumava dizer «ai dos políticos que na sua juventude
não passaram por extremismos republicanos»; mas também não se identifica
inteiramente com os poucos, muito poucos, que fizeram um percurso
rectilíneo da primeira para a segunda metade do século XIX, como o seu
companheiro Oliveira Marreca, já republicano em 1848 e ainda republicano
em 1876.
Embora sem um corpo doutrinário firmemente estruturado, o seu pensamento
político contém algumas singularidades que constituem importantes
posicionamentos críticos e avanços ideológicos relativamente ao
pensamento liberal comum no seu tempo.
Ele representou o extremo limite a que, nas condições do seu tempo,
podia chegar essa pequena burguesia radical que teve relevante papel nas
lutas liberais do segundo quartel de oitocentos e que, em aliança com as
massas populares, desencadeou a democrática revolução de Setembro de
1836 e sustentou as forças patuleias na guerra civil de 1846-1847.
Reconhecia lucidamente o papel histórico do povo no processo de
transformação das sociedades, mas ao mesmo tempo receava-o, como força
que poderia subjugá-lo; reconhecia que os chefes liberais eram pesos
inertes, eram «cadáveres» – como lhes chamou em carta do exílio de Cádis
–, mas ao mesmo tempo continuava atado a eles, embrulhado na mesma
mortalha e, na Regeneração de 1851, vendo-os agitarem-se, abraçou-os,
crendo que haviam ressuscitado, e tão cegamente caiu no logro que nem
notou a palidez, frialdade e rigidez dos corpos que já nada poderia
restituir à vida.
Mas é acima de tudo na acção, na intervenção constante e directa nos
acontecimentos, que melhor poderemos encontrar o fio condutor da sua
personalidade. É uma vida intensamente vivida, como uma chama que em
cada momento se extinguisse e em cada momento de novo renascesse.
Encarna em toda a dimensão o ideal do herói romântico lutador da
liberdade – como o desses lendários condottieri que vão em defesa
da sua nova dama: membro do Batalhão de Voluntários Académicos em 1826 e
1828, ardoroso lutador nas ilhas dos Açores, coberto de glória na defesa
do Porto cercado pelas forças miguelistas, revolucionário no
levantamento contra a ditadura cabralista de 1842, chefe de guerrilhas
populares na guerra civil de 1846-1847, membro do triunvirato
republicano na conspiração de 1848...
É precisamente essa acção em que permanentemente se empenha que dá o
conteúdo do pujante e rico da sua inconfundível arte oratória. Quebra
com as regras do discurso clássico, porque é o único cuja
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palavra
tem suficiente força e a imaginação poder bastante para impor novas
regras. Foi, na oratória, a grande figura do nosso Romantismo, ao lado
de Passos Manuel na política, de Herculano e Garrett na literatura. E é
a sua oratória que melhor consubstancia essa estreita aliança entre
revolução política e revolução literária, que é o cerne do nosso
primeiro Romantismo. É ele que eleva a oratória à forma literária que
melhor traduz esse ideal romântico de vibração colectiva em que o homem
se liga estreitamente aos outros homens numa comunhão íntima, quase
carnal, essa arrebatada efusão do sentimento na palavra e da palavra na
acção – a palavra a impelir ao acto, a própria palavra que se faz acto,
como Saint-Preux sonhara na Nouvelle Héloise, de Rousseau.
E esse percurso ardentemente vivido tem a valorizá-lo o mais importante
mérito que pode caber a qualquer homem público: o da coerência. Uma
coerência medular que, para além das contradições do seu pensamento, se
encontra cerrada em torno dos grandes princípios que, de 1826 a 1862,
sempre defendeu no pensamento e na acção.
Ele próprio o reconhece, neste mesmo Parlamento, em palavras já
cansadas, não muito longe da morte:
«Folheio os fastos parlamentares... e nunca me dou a estas
buscas que não traga de lá a mais íntima, a maior satisfação que pode
trazer um homem probo e um homem de consciência: acho a minha coerência,
toco-a, encontro-a, sai-me a cada página de cada livro; e eu, tendo uma
fraca memória de todos os meus actos, respondo pela lógica deles, porque
confio no meu carácter e na minha consciência.»
► 3. – D. Zita Maria Seabra Roseira (PCP)
Sr. Presidente, Srs. Deputados: De José Estêvão ninguém dirá que tenha
guardado silêncio quando devesse erguer a voz para defender a liberdade,
a justiça, a dignidade, a crença no povo e no homem despojados das
cadeias da ignorância e da sujeição.
De tudo o que foi (homem de armas, jornalista, orador forense,
professor) compreende-se que evoquemos hoje sobretudo o deputado, o
tribuno célebre e um dos mais brilhantes dos oradores parlamentares
portugueses.
José Estêvão, homem de Aveiro, simboliza antes de mais a coerência de
uma vida assinalada pela luta com a palavra, mas a palavra como
expressão do desejo de agir sobre as coisas, as pessoas, para
transformar o Mundo. Por isso foi adversário de retórica balofa e vazia,
e fez nesta Casa históricos discursos em que só os mais cegos
adversários não reconheciam a riqueza de pensamentos e ideias.
José Estêvão foi persistente e incansável no combate às demasias e
abusos dos poderes caducos, no respeito e na defesa vibrante dos seus
princípios.
Não é possível evocá-lo sem lembrar que ele teve exemplarmente a coragem
de ser oposição numa Assembleia hostil e submissa aos ditames do governo
de então, soube condenar o personalismo em política, a politiquice, a
corrupção, o carreirismo e personificar o brio patriótico e indignação
perante as afrontas à independência e dignidade nacionais. José Estêvão
é sobretudo um político cuja acção nos transmite o amor ao seu povo e ao
seu País.
Pertinaz face aos fracassos, exílios e perseguições, ardente e generoso
na defesa de causas nobres, José Estêvão soube ser inovador: bateu-se
pela consagração do «direito de livre associação e de manifestação
pública dos descontentes do Governo», denunciou o tráfico de escravos
como «um escândalo à face do Mundo civilizado», defendeu a independência
nacional sempre que ameaçada pelos compromissos do poder de então com a
política dos impérios da época, erigiu em divisa das suas ideias
económicas as palavras «moralizar, desacumular, repartir, produzir».
Da sua luta se pode dizer que foi travada com brilho em todas as
frentes: na tribuna parlamentar, acutilante na palavra, no improviso, na
réplica; de armas na mão, afastado da Assembleia, durante a ditadura de
Cabral; nos jornais que fundou e dirigiu, com destaque para a “Revolução
de Setembro” e “O Distrito de Aveiro”. José Estêvão nunca esqueceu os
seus deveres para com o povo de Aveiro que o elegeu e como deputada
deste distrito é-me particularmente grato recordá-lo e homenageá-lo
hoje. A ele se deve designadamente o primeiro projecto de construção do
caminho-de-ferro para o Norte, com passagem por Aveiro, e o requerimento
para a construção do liceu com biblioteca pública.
É sem dúvida importante que tudo isto seja hoje recordado na Assembleia
da República. E é particularmente útil que nos lembremos todos daqueles
tempos em que – através de incontáveis fraudes e violências – uma
ditadura manejava o poder legislativo, obtendo votações mecânicas
favoráveis ao governo de Cabral, do qual dependiam economicamente mais
de metade dos deputados. Foi nessa altura que José Estêvão escreveu
algumas das mais brilhantes e lúcidas páginas de protesto e crítica
política de história parlamentar portuguesa.
Significativamente, hoje, 10 anos depois do 25 de Abril, é José Estêvão
que a Assembleia da República homenageia.
Ele foi um dos que ajudaram a Liberdade a entrar na história de
Portugal. Do melhor do seu legado
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serão dignos os que hoje a
souberem defender. Esses o continuarão!
Eis o significado mais profundo da homenagem hoje prestada pela
Assembleia da República.
► 4. – Dr. Horácio Alves Marçal (CDS)
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Enquanto o corcel do imperador Napoleão
corria por cima dos ceptros dos reis da Europa e a sua espada implacável
ceifava as repúblicas que anos antes tinha plantado, nascia em Aveiro, a
26 de Dezembro de 1809, José Estêvão Coelho de Magalhães, o homem que
viria a ser, nos seus 25 anos de actividade pública, o político mais
célebre dos oradores parlamentares portugueses de todos os tempos.
Escrevia Freitas de Oliveira: «o aveirense, geralmente, tem o sentimento
da igualdade dos homens profundamente arreigado no coração; e por isso
um pescador de Aveiro quando fala com o mais elevado funcionário do seu
país trata-o com respeito, mas de igual a igual».
A terra em que nasceu, a época em que viveu, o sentimento de família que
professou sempre como uma religião, forjaram neste homem a cultura, o
entusiasmo, a bondade, a coerência, a magnanimidade, o pundonor, o
civismo, a gentileza, a simpatia, a honestidade, a sinceridade, a
lealdade, a bravura, a fluência, a sedução e a candura idealista, que
conduziram sempre a sua acção à pureza das suas generosas aspirações
políticas.
Não foi pacífica a vida de José Estêvão desde os 12 anos em que se
iniciou na arte de ler e escrever até aos seus 53 anos, idade em que
aquele corpo hercúleo de lutador caiu para sempre no leito da morte.
Ainda menino e moço apaixonou-se pela carreira eclesiástica, para onde o
chamava, a par do encanto enlevador do sonho cristão, o génio da
eloquência, que já o dominava, e que na tribuna sagrada via o campo
então mais adequado à acção das suas balbuciantes faculdades oratórias.
O pai, Dr. Luís Cipriano, dissuadiu-o e assim matricula-se em 1828,
unicamente com 16 anos, na Universidade de Coimbra. Interrompeu o curso
no 2.º ano para, com outros estudantes de ideias liberais, formar o
Batalhão Académico de Voluntários, que no Porto deu luta aos
absolutistas de D. Miguel.
Vencidos na luta, mas não no ideal, teve de emigrar a primeira vez para
Inglaterra, donde a 14 de Fevereiro de 1829, embarcou com outros
companheiros para os Açores a fim de organizar a expedição, que viria,
sob o comando de D. Pedro IV, a desembarcar no Mindelo a 8 de Julho de
1832 e a fazer o cerco do Porto, onde foi agraciado com a Torre e Espada
e promovido a segundo-tenente do Estado-Maior de Artilharia.
Tão saliente foi a acção do Batalhão Académico na serra do Pilar que o
imperador decidiu atribuir uma condecoração, a tirar à sorte entre os
combatentes. De tal modo se distinguiu José Estêvão nesta luta, e se
impôs, que os seus cento e poucos colegas, sem emulações, sem invejas,
sem despeitos, numa resolução unânime e em sublime movimento de
camaradagem, colocaram no peito do intrépido aveirense a insígnia de
que, aos olhos do comando em chefe, todos haviam sido julgados
merecedores!
Ainda não pacificado o País e não aceites pelos fiéis e servidores da
coroa os ideais que professava – o liberalismo –, colocou-se ao lado dos
que em 25 de Maio de 1833, nas fortificações entre o Lordelo e a Foz do
Douro, fizeram recuar na «flecha da morte», uma companhia miguelista.
Este acto de bravura e o seu exemplo fizeram com que o decreto imperial
o promovesse de cavaleiro a oficial da Torre e Espada. E esta foi a sua
única condecoração.
Com o Marechal Saldanha participa na Batalha de Almoster, carnificina
entre liberais e absolutistas, que com a Convenção de Évora-Monte fez
exilar D. Miguel
/ 26 / e entregar o trono a D. Pedro IV e à Rainha D.
Maria.
Retomou os seus estudos, beneficiando do «perdão de acto» concedido aos
vencedores, e matriculou-se em Coimbra no 3.0 ano de Direito, curso que
conclui em 18 de Novembro de 1836.
Depois da Revolta de 9 de Setembro de 1836, que impôs uma Constituição
feita pela Nação, em vez da outorgada pelo Rei, logo em Março de 1837
José Estêvão é eleito pela primeira vez deputado por Aveiro às
Constituintes, proferindo em 5 de Abril, na sua estreia parlamentar, o
seu primeiro discurso conhecido por «Profissão de Fé», o qual deveria
ser durante um quarto de século de actividade política intensa, a sua
cartilha, da qual muito pouco ou nada se desviaria.
A política de José Estêvão foi uma única durante a sua vida pública – a
felicidade, a prosperidade e o engrandecimento do seu País; a sua
doutrina uma só – a máxima liberdade compatível com a instrução do povo
e com a segurança social; o seu partido o mesmo de sempre – a
democracia; a sua divisa – o progresso e a civilização.
O que dizia com a palavra respeitava-o com o exemplo.
Proclamava então o jovem e tão ouvido tribuno: «A minha convicção é
forte e enérgica; e quando o espírito se enche de uma convicção destas,
ainda que as ideias que as formam se possam chamar perigosas, ainda que
pareça imprudência pronunciá-las, ainda que o silêncio seja um dever,
esse dever cumprido deixa o remorso de uma falta cometida».
«É preciso que cada um de nós respeite as opiniões dos outros, para que
as suas sejam respeitadas; eu respeitá-las-ei todas, combatendo aquelas
com que não concordar e espero que as minhas sejam respeitadas, sem
deixar de ser combatidas.»
«Se, pois, nós reconhecemos e definimos o princípio da soberania
popular; se nos sujeitarmos às suas consequências; e se exercermos, por
delegação especial, essa soberania – inquestionavelmente estão reunidos
em nossas mãos os poderes do Estado e temos direito a distribuí-los e
dividi-los como melhor nos parecer.»
«Se considerarmos os fins e natureza das associações políticas, achamos
que é indispensável que nelas haja julgados, execução e leis; isto é,
poder legislativo, judicial e executivo.»
«Juiz só, a julgar só; um rei só, com ministros responsáveis a executar
só; uma câmara só, a legislar só; eis a minha monarquia; eis o meu
Governo representativo.»
«O Rei reina e não governa», dizia ainda José Estêvão.
E mais adiante dizia: «Eu empenho, pois, todos os poderes do céu e da
terra, na profunda e grata convicção de que o povo português há-de
caminhar sempre na estrada do progresso e da liberdade, debaixo dos
auspícios da ordem e da civilização.»
E continuava: «E com esta minha exposição talvez alguém diga que sou
republicano; se o fosse havia de dizê-lo, porque o nome não tem
fealdade; mas eu não sou republicano, nem esse nome é de apetecer no
nosso país. Eu amo os tronos, porque vejo neles um princípio inocente na
organização social e os danos que eles têm feito não vêm deles, mas do
erro de os cercar de direitos terríveis que lhes são funestos.»
Estes foram os princípios gerais defendidos pelo homem a quem esta
Assembleia hoje presta homenagem. O parlamentar que após a sua morte,
pela primeira vez na Europa, teve a sua cadeira um mês coberta de
crepes. Os inimigos combateram-no, mas depois da sua morte curvaram-se
respeitosamente e homenagearam-no.
Não eram só os seus extraordinários dons naturais, a presença, o gesto,
a voz e ainda a sinceridade e o tom convicto da sua palavra que as
páginas dos Diários das Câmaras não traduziam, pois isso morre sempre
com os oradores; o próprio texto era muitas vezes apenas uma reprodução
deficiente, confusa, infiel e ininteligível das suas orações, porque ele
nunca as revia. Todos os que o ouviam estavam presos e suspensos dos
seus lábios e até os taquígrafos se surpreendiam a si próprios,
escutando o grande orador e esquecendo-se das suas notas!...
O seu génio tribunício, o temperamento impetuoso, o seu feitio combativo
e o ardor da sua fé, arreigados ao seu sentimento patriótico, debitaram
para o seu monumental espólio literário das melhores peças oratórias que
até àquela data se ouviram nos parlamentos mundiais.
As intervenções mais notáveis foram: os discursos do «Porto Pireu» em
1840, em que José Estêvão respondendo ao discurso da coroa e ao seu
émulo da oratória, Almeida Garrett, dizia: «Para bem descrever o País é
preciso ser digno dele, e não tomar por ponto de perspectiva as
rivalidades conterrâneas e as rixas da vizinhança; é preciso observá-lo
pelas lutas da verdade e não pelo prisma das facções».
Quanto às campanhas parlamentares em favor das estradas e
caminhos-de-ferro, como foi já aqui referido, o seu primeiro projecto
foi rejeitado, mas a sua luta não teve tréguas e, na Legislatura de
1857, o grande orador deu mais um testemunho do estremado afecto que
sempre o prendeu à cidade de Aveiro, porque às suas solicitações e ao
seu incansável desvelo, e somente a ele, Portugal teve caminhos-de-ferro
mais cedo e essa via entre Lisboa e Porto viria a passar junto da sua
querida terra natal.
A questão do barco francês Charles et George apreendido ao serviço da
escravatura em águas de Moçambique e que por inércia do Governo de
Lisboa
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foi retirado do Tejo, foi outra das suas entusiásticas e
patrióticas intervenções no Parlamento, como o foram os casos das Irmãs
de Caridade Francesas e de Cavour, esta relativa à unificação de Itália,
que foram intervenções polémicas mas crivadas de profundas convicções,
não só religiosas, como políticas e patrióticas.
Aplaudido, respeitado, traído e exilado por três vezes, José Estêvão foi
um lutador da palavra e da escrita.
Os seus artigos nos jornais “Revolução de Setembro”, “Lberdade”,
“Atheleta” e “Distrito de Aveiro” ficaram entre outros a atestar todo o
seu engenho na arte de escrever, mormente quando os sectários
omnipotentes lhe negaram o direito constitucional de viver no seu País e
de ser eleito para o Parlamento.
A defesa do jornal legitimista “Portugal Velho”, em que se empenhou em
1848, demonstrou que a generosidade moral ombreava nele com esta
liberdade levada ao sacrifício e dizia: «Não conheço a paixão do ódio –
nem tive ódio a D. Miguel» – exclamava. Ao seu inimigo não recusava um
benefício se fosse justo e lho pudesse fazer.
Com este espírito, José Estêvão defendeu aquele jornal em tribunal e o
seu discurso é, como o seu acto, uma enérgica afirmação de tolerância
política e de coerência liberal. Com o próprio exemplo ele encarece essa
tolerância numa passagem de peroração, que é verdadeiramente empolgante
e dominadora.
Para José Estêvão todas as circunstâncias eram cómodas e possíveis, se
se tratava de servira liberdade e dizia: «Nós não estamos nisto para
virmos gozar comodidades, mas viemos com a resolução firme de nos
expormos a grandes sacrifícios e de sofrermos todos os incómodos e
trabalhos, com o único fim de conservarmos a liberdade que tanto custou
a plantar no nosso país».
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Era assim o espírito de José Estêvão
impregnado de aveirismo, de nacionalismo e de liberdade.
Por isso os homens o choraram quando, com 53 anos, se despediu da vida
terrena, a 4 de Novembro de 1864.
Por tudo isso, os aveirenses lhe erigiram a monumental estátua, que
defronte dos Paços do Concelho atesta a gratidão e o respeito dos homens
de Aveiro, estátua essa onde todos os governos deste País conservaram
sempre as placas de homenagem que a contornam e por isso o País mandou
colocar, em 4 de Maio de 1878, a estátua do tribuno defronte deste
Palácio, que com a remodelação do edifício passou para o seu interior.
Hoje, por feliz decisão desta Assembleia da República, José Estêvão
voltou para o exterior, para junto do povo anónimo, que tanto defendeu e
tanto amou.
Bem-haja, Sr. Presidente, pela sua decisão!
Para se completar o ciclo da admiração e da gratidão dos homens para com
José Estêvão Coelho de Magalhães e para que se concentre todo o vasto
material da sua curta vida terrena, mas activa vida política, falta
congregar todo esse vasto repositório num museu por que tanto tem
pugnado Vale Guimarães e outros admiradores do génio aveirense.
O «Palheiro da Costa Nova» – onde José Estêvão vivia nas férias e que ao
casar-se, 5 anos antes de falecer, doou a sua esposa, dizendo-lhe que
este era «o que mais estimava entre o pouco que possuía» é o local ideal
e mais adequado para a concretização de tão meritória decisão. Aqui fica
este voto ao Governo, que sei plenamente aceite por todos do meu
distrito, para quem José Estêvão foi o exemplo do parlamentar ímpar, do
aveirense e do português íntegro.
► 5. – Dr. Manuel Maria Portugal da Fonseca (PSD)
Sr. Presidente, Srs. Deputados, representantes de Aveiro nesta Câmara,
onde estamos a prestar homenagem ao nosso ilustre, ao nosso enorme, ao
nosso respeitado tribuno José Estêvão: Quando era criança habituei-me a
ver aquela estátua em Aveiro em frente ao velho liceu, aquela estátua
com a mão apontada para a Câmara Municipal de Aveiro. Habituei-me a
vê-la e não sabia porquê. Não sabia porquê porque não tinha a noção da
realidade da luta que aquele homem teve para conquistar a liberdade que
eu hoje, já de cabelos brancos, admiro: José Estêvão, o aveirense que
lutou, que se sacrificou, que sofreu, mas também o aveirense que venceu
com o seu coração - coração bom, coração que falava talvez
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mais
do que a inteligência. Diz o seu próprio filho que ele acreditava em
todas as pessoas, até talvez fosse ingénuo. Mas era com essa bondade e
com esse coração que ele transformou a ditadura em que viveu na
liberdade que depois conquistámos.
Como aveirense, se ele aqui estivesse, se fosse tribuno neste Parlamento
de 1984, que diria ele por Aveiro? Que diria ele por Portugal? Por
Aveiro diria aquilo que nós, humildemente, também dizemos: somos um
distrito vigoroso, somos um distrito de trabalho, somos um distrito de
liberdade, somos um distrito de humanismo, somos um distrito que
actualmente está esquecido pelo Governo.
Se ele aqui estivesse lutaria para que aquela rede viária do distrito de
Aveiro não estivesse como está, lutaria para que a estrada Aveiro-Vilar
Formoso tivesse rapidez de execução... lutaria para que a estrada
Aveiro-Murtosa fosse uma realidade.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ele lutaria para que aquela maravilha
daquela ria não se estivesse a tornar num charco que daqui a pouco a
pérola enjoa.
Ele diria isto!
Porém, ele também diria que não é só o económico que comanda. Quando ele
aqui discutiu o Orçamento, dizia: «Não sei contas, só quero saber o que
se deve, o que se tem e como se paga.»
Era assim José Estêvão!
A República, que depois se transformou em autoritarismo e que, após o 25
de Abril, se transformou em liberdade, prestou homenagem ao grande
tribuno, ao grande José Estêvão.
Como aveirense, como social-democrata convicto, sinto-me orgulhoso
daquele homem, sinto-me orgulhoso de ser de Aveiro.
A S. Ex.ª o Sr. Presidente da Assembleia da República e a todos os que
com ele colaboraram, agradeço a magnífica ideia de tirar de dentro do
Palácio de S. Bento a estátua de José Estêvão e colocá-la no Largo das
Cortes para exemplo de todos os portugueses.
Bem haja, Sr. Presidente!
► 6. – Dr. António Frederico Vieira de Moura (PS)
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quando pela primeira vez entrei no
Palácio de S. Bento e, como aveirense que sou, parei, reverentemente, em
frente do painel de Columbano, onde, ao lado da austeridade recolhida de
Herculano, da elegância espartilhada de Garrett e da firmeza pragmática
de Passos Manuel, avulta a figura inteiriça, impetuosa e tersa do meu
conterrâneo José Estêvão Coelho de Magalhães, senti um pontinha de
orgulho por ver o patrono cívico da cidade de Aveiro avultando, cercado
de tão ilustre e significativa companhia.
Mas mal diria eu que, após este momento estimulante para o que em mim há
de democrata e de aveirense, a desilusão de encontrar a estátua do
tribuno envolta na penumbra de um desvão me viria arrefecer o entusiasmo
com uma sensação de desalento e de revolta pelo exílio a que fora votada
não apenas a estátua, mas a memória de alguém que quer sob o fogo das
batalhas, quer nas agressivas lutas parlamentares – foi dos maiores
defensores da liberdade a que tão significativamente alargou as
fronteiras.
Atónito se ficava quando sabendo-se o que se sabe sobre a vida intensa
do lutador e de quanto a sua palavra fluente e corajosa enobreceu a
tribuna parlamentar; e passados 10 anos sobre a revolução que restituiu
a liberdade aos portugueses permitindo-lhes uma vivência democrática,
ainda continuasse no seu exílio de penumbra e estátua que, por
deliberação unânime do Parlamento e por vontade expressa do povo
português, se erguera, à luz do sol, no velho Largo das Cortes.
A intolerância cega que, durante quase meio século, esmagou a liberdade
de espírito e o direito de opinar, servindo-se de um pretexto sacado de
uma mutação urbanística do Largo de S. Bento, removeu a estátua, não
para outro local onde o sol pudesse continuar a iluminá-la e os olhares
do povo contemplá-la, mas para um armazenamento sombrio que a segregasse
da curiosidade pública que lhe poderia meditar sobre a exemplaridade
paradigmática.
Naturalmente, porque o agudo faro da intolerância vigente nesse período
nocturno farejou heresias políticas nos discursos do «Porto Pireu», da
«Suspensão de Garantias» e das «Irmãs de Caridade», não se distraiu de
agarrar sofregamente o pretexto para, sobre a memória deste campeão das
liberdades públicas, deixar cair o anátema de uma excomunhão post
mortem que só agora foi levantada.
As figuras históricas – como os factos históricos – para serem bem
compreendidos têm de ser situadas, isto é, espacializadas e
temporalizadas. E por isso, para se compreenderem com contornos de maior
nitidez personalidades como a de José Estêvão, torna-se imperativo
avaliar e pesar a circunstância que os envolveu, já que, como queria
Ortega e Gasset, o «Homem é, em grande parte, a sua circunstância». E a
«circunstância» de José Estêvão situa-se no âmago das lutas liberais, a
começar, logo em 1828, com a revolução que, aliás, teve início na sua
terra. E não será temerário afirmar que a sua determinação e a largueza
das suas ideias o levaram muitas vezes, a ultrapassar a sua própria
«circunstância», visando preencher, com medidas de justiça social, o
espaço de liberdade que, quer com a espada, quer com o verbo, tão
significativamente ajudou a dilatar.
Hesitei em fazer, nessa altura, uma intervenção
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ao saber que a
Assembleia da República tinha já iniciado passos decisivos para repor a
justiça no seu lugar e desanuviar a memória do tribuno do anátema a que
a tirania o não poupou.
E felicito-me por ter a alegria de, nas palavras que hoje pronuncio,
poder transmutar o que era apelo em congratulação engalanada de alegria.
Por isso não quero que, neste momento, possa existir a lacuna da minha
falta de gratidão para os que se empenharam neste acto de justiça,
particularmente para o afã que o Sr. Presidente da Assembleia da
República colocou ao serviço desta reabilitação.
Como aveirense, quero que essa gratidão fique bem sublinhada nestas
modestas palavras.
Mas, embora resignado a que esta intervenção seja apenas de
congratulação e de agradecimento, não queria deixar de trazer um modesto
contributo para que, 10 anos passados sobre a data que abriu aos vivos
as portas das prisões, seja festejada a data em que se escancaram as
portas da compreensão que permitiram desentulhar a memória dos grandes
mortos da liberdade, do cascalho do rancor com que a tirania tentou
soterrá-la.
Suponho que a Assembleia da República se honrou promovendo esta
reposição à luz do sol, o que vem corroborar uma velha deliberação
parlamentar tomada por unanimidade, que, após o falecimento do tribuno,
fez erguer a sua estátua no velho Largo das Cortes.
Como deputado pelo círculo eleitoral de Aveiro não se poderá estranhar
que intente trazer um ligeiro estímulo à retentativa dos contemporâneos,
recordando alguns passos da trajectória biográfica do grande orador
parlamentar.
Logo no fim da revolução de 1828, iniciada na sua Aveiro e que deu
origens à macabra carnificina da Praça Nova do Porto, tão vivamente
rememorada por Oliveira Martins e Marques Gomes, tendo apenas 18 anos de
idade, José Estêvão alista-se no Batalhão Académico e, pouco depois, é
forçado a seguir o caminho do exílio para a Galiza, de onde embarca no
Ferrol com destino à Inglaterra, chegando a 24 de Agosto de 1828
a Plymouth, onde, por generosidade hospitaleira de um seu conterrâneo,
pôde escapar aos sofrimentos do célebre «Barracão». Aí teve como
companheiro um outro grande combatente da sua terra, Mendes Leite, o
homem que, pela primeira vez, ergueu nesta Casa a voz em favor da
abolição da pena de morte para crimes políticos.
Só em 1832 volta a Portugal, após uma breve passagem pela Terceira e,
logo nesse ano, e por proposta de Baldy, deixa o Batalhão Académico e é
pelos seus feitos – incorporado na arma de artilharia, com o posto de
segundo-tenente.
A partir daí, a sua acção como combatente nas lutas pelas liberdades não
abre uma lacuna.
Essa é notabilíssima na defesa da serra do Pilar e na celebérrima
«Flecha dos Mortos», onde, já sozinho, a defender a peça que lhe estava
confiada, e quando se viu forçado a abandoná-la, ainda teve ganas para,
num gesto irreverente, chamuscar com o morrão que ainda empunhava as
barbas do comandante da força assaltante.
Duas vezes é condecorado com a Torre e Espada: a primeira, quando o
imperador a atribuiu ao Batalhão Académico para ser sorteada entre todos
os 100 elementos que o constituíam e que, por decisão unânime dos seus
companheiros, lhe é atribuída sem sorteio; a segunda, é-lhe conferida a
título pessoal, sendo promovido de cavaleiro a oficial da ordem para que
«a intenção com que foi conferido aquele honroso distintivo não deixe de
produzir os seus bem merecidos efeitos», como textualmente se exprime no
decreto.
Mas é em 1837 que José Estêvão faz a sua estrela na Câmara dos
Deputados, logo produzindo uma generalizada sensação de espanto.
Bulhão Pato, no seu livro de memórias Sobre os Ciprestes, refere
o facto nos seguintes termos:
«Foi nas lutas grandiosas da Constituinte que José Estêvão soltou pela
primeira vez a voz na Câmara dos Deputados.
Os pródromos daquela extraordinária eloquência eram, apenas, conhecidos
dos seus companheiros de armas e de desterro: depois das batalhas
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as conversações cintilantes do bivaque; entre os condiscípulos nas
palestras académicas e nas lições proferidas nas aulas de Direito.»
E acrescenta:
«Foi de espanto o primeiro sentimento da Câmara em presença da figura,
do gesto, da voz, da inspiração e da palavra do moço tribuno.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
José Estêvão, aos 27 anos, caiu de improviso no meio de grandes homens –
para dominá-los e vencê-los, muitas vezes – para arrebatá-los sempre.»
Rebelo da Silva, diz-nos:
«Os efeitos dos seus discursos não o reproduz, depois, nem a memória dos
que o escutaram nem as páginas do livro oficial.»
Pinheiro Chagas, por sua vez, pronuncia-se desta forma:
«Leiam-se o pálido reflexo que nas notas taquigráficas ficou dos
maravilhosos improvisos deste poeta da Tribuna, leia-se o extracto
amortecido, incompleto, truncado, dessas admiráveis orações, que nós
todos ouvíamos num enlevo que, nunca mais, orador algum soube inspirar
na tribuna portuguesa e avalie-se, por aí, um dos primeiros tribunos,
não só de Portugal, mas dos tempos modernos.»
Nem por sombras se pretende, com esta extensão transcritiva, exibir
erudição ou pendor historicista mas, apenas e tão-somente, almofadar os
textos que chegaram até nós, catados nas folhas amarelecidas do Diário
das Câmaras, com o testemunho dos que ouviram o orador, dos que lhe
seguiram, interessados, a eloquência torrencial e trouxeram para a
posteridade o poder expressivo e as riquezas de argumentação do grande
tribuno.
Quem hoje ler os seus discursos, que em colectânea foram editados, não
poderá sentir, na leitura, o poder aliciante, a firmeza de convicções, a
fidelidade invulnerável às ideias, se não aferir a leitura com os
testemunhos idóneos dos que lhe ouviram a palavra e souberam
valorizar-lhe o conteúdo.
Com efeito, José Estêvão, pródigo como um «Senhor de Pendão e Caldeira»,
confiou toda a sua oratória ao improviso fluente, levando a sua
prodigalidade a nem sequer rever as provas que os taquígrafos recolhiam
e que a fluência do orador obrigava a lacunas nem sempre preenchidas com
acerto.
Em várias legislaturas a sua voz se ergueu na Câmara, muitas vezes em
lutas aguerridas com Garrett como, por exemplo, nos discursos do «Porto
Pireu» e da «Suspensão de Garantias», e várias vezes os seus passos
tiveram de se encaminhar para o exílio, o último dos quais a seguir à
chamada «Revolução das Hidras», como lhe chamou Saldanha.
Foi após este último exílio que a sanha rábica da política leva a sua
peçonha ao ponto de o destituir de capitão de artilharia e de o demitir
de lente da Academia Politécnica.
E é então que, em 18 de Outubro de 1840, se ergue na Câmara de Deputados
a voz de Passos Manuel, para assim se exprimir:
«Se eu não tomasse a peito a defesa de um homem tão ilustre talvez se
entendesse que conservava algum ressentimento contra o eloquente orador
da oposição de 1837. A Câmara sabe quanto aprecio as suas virtudes e os
seus talentos. Não venho defender os mesquinhos interesses de uma
patente ganha em cem combates a preço de sangue, nem os de uma cadeira
de professor obtida em certame académico; venho defender os grandes
interesses da sua reputação e da sua glória; inspira-me a amizade que
lhe consagro, o esplendor desta tribuna que ele enobrecia e a felicidade
da Nação por que ele sempre pugnou.
Desejo abrir-lhe as portas da Pátria. A Terra do exílio recebeu um
grande orador, a Pátria acolherá, no seu regresso, um grande homem de
Estado.»
É crível que momentos de desânimo lhe tenham surgido como fantasmas
agoirentos e assaltado a sua grande determinação; é possível que a
floresta de obstáculos se tenha interposto entre a pureza do seu
idealismo sem mácula e o realismo grosseiro dos interesses, às vezes
sujos, da politiquice dos corri lhos. E, talvez por isso, aquando do
exílio voluntário de Herculano, ele lhe tenha recomendado, para Vale de
Lobos, que «regasse as couves» e se «regalasse com as crónicas».
Ele, porém, não seguia o seu amigo e companheiro de lutas e deixava-se
ficar, firmemente, ao parapeito, na posição de luta de que só a morte,
ocorrida em 4 de Novembro de 1862, o consegue separar.
O seu funeral foi das maiores manifestações de pesar a que Lisboa
assistiu e onde o povo, pela voz de um popular, se dirige aos ministros
que conduziam o féretro reclamando:
Até aqui VV. Ex.ªS, agora, nós, o povo, de quem ele foi o
mais leal e o mais valente defensor.»
E logo, na sessão de 5 de Novembro, a Câmara dos Deputados, por
unanimidade, resolveu abrir uma subscrição pública para que fosse
erguida a estátua do grande tribuno no Largo das Cortes – a estátua que
o enxerto medieval realizado na nossa história, durante quase meio
século, inumou num recanto sombrio do Palácio de S. Bento.
Uma comissão eventual constituída por Anselmo José Braancamp, conde de
Casal Ribeiro, Mendes Leal, Lobo d'Ávila, Fontes Pereira de Melo,
António
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de Serpa Pimentel e António Luís de Seabra inicia, com
afã intensivo, os trabalhos e em 8 de Junho de 1876 era lançada a
primeira pedra do pedestal da estátua que viria a ser erguida e depois
descerrada pelos presidentes das duas câmaras.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Suponho que não poderei ser acusado de
hiperbólico se disser que José Estêvão foi o maior parlamentar português
de sempre.
Não terá sido por acaso que o insuspeito Oliveira Martins dele afirmasse
«que foi o primeiro, talvez o único, dos tenores sinceros da liberdade
portuguesa»; nem terá sido por louvaminha que Camilo escreveu ser ele «o
mais brilhante orador parlamentar do seu tempo».
Certo que, com ele, se media Almeida Garrett que tratando, embora, com
muito mais cuidado os seus discursos, não tinha o poder de improvisação,
a fluência torrencial, a rapidez de argumentação, nem a fogosidade do
parlamentar aveirense.
Do campo de batalha José Estêvão subiu à tribuna temperado na luta, com
a mesma determinação com que se batia de armas na mão. E, ao mesmo tempo
com a sua palavra defendia, sem colapsos, a liberdade dos cidadãos, era
uma fonte inesgotável de tolerância.
Uma das raríssimas vezes em que envergou a sua toga de advogado foi para
defender o órgão legitimista “O Portugal Velho”, acusado de crime de
liberdade de imprensa.
Proclamava, acaloradamente, na Câmara que as liberdades configuradas na
Carta eram para todos «para os vencedores e para os vencidos» e nunca no
seu coração albergou a peçonha de um rancor; e nunca da sua conduta
humana extraiu um gesto de vingança.
Suponho, pois, que esta Câmara se honrou, sobremaneira, ao promover a
exumação da estátua do grande tribuno, do silêncio tumular a que a
reacção a tinha condenado; suponho que todos aqueles que considerem a
componente parlamentar a verdadeira expressão da democracia, hão-de
rejubilar com este acto de justiça que, embora tarde, a Assembleia da
República promoveu e possibilitou.
Após a sessão parlamentar, na cerimónia do descerramento da estátua, nos
jardins de S. Bento, o Dr. Manuel Alfredo Tito de Morais, Presidente da
Assembleia da República, proferiu as seguintes palavras:
Sr. Representante do Sr. Primeiro-Ministro. Sr. Representante do Sr.
Vice-Primeiro-Ministro.
Srs. Representantes dos Órgãos de Soberania e Altas Autoridades do
Estado.
Srs. Membros do Governo.
Srs. Deputados.
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
Encontramo-nos hoje aqui reunidos para prestar homenagem a um grande
vulto cívico do constitucionalismo monárquico. A um homem que se
entregou com arrojo e energia nos campos de batalha, nas lides da
imprensa e nas lutas parlamentares pela consolidação do liberalismo. A
um homem que dedicou toda a sua longa vida parlamentar a defender um
conjunto de valores fundamentais que têm, em Portugal, a sua raiz na
Revolução de 1820 e se estendem até aos nossos dias com a tradição
histórica de todos os democratas: a liberdade, o parlamentarismo, a
justiça social, a independência do Estado de qualquer tipo de tutelas.
.
Pela liberdade não hesitou, sempre que a natureza do regime ou os seus
valores fundamentais foram postos em causa, em arriscar a vida nas lutas
que marcaram a consolidação do liberalismo.
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Foi perseguido, sofreu o exílio, tudo sacrificou na defesa intransigente
de uma linha política a que dedicou coerente e apaixonadamente toda uma
vida.
Pela formação de uma consciência nacional para os problemas do País,
entregou-se devotadamente a campanhas jornalísticas onde deixou expresso
de forma inequívoca o seu pensamento político. Procurou novas
alternativas que se apresentassem como solução aos desafios políticos
que o desenvolvimento da sociedade portuguesa de Oitocentos colocava ao
constitucionalismo monárquico. E, como tal, faz parte de um conjunto
restrito de homens que pelo seu exemplo contribuíram para o
desenvolvimento do ideário republicano em Portugal.
Com António Rodrigues Sampaio e Oliveira Marreca faz parte do
triunvirato republicano, organizado em 1848, para proclamar a República
em Portugal.
Era a altura em que se proclamava a II República em França e estava-se
na ressaca da Maria da Fonte.
Mas José Estêvão ficou na história, acima de tudo, como um modelo de
parlamentar. E é nessa qualidade que hoje aqui o evocamos.
Não apenas como grande orador, qualidade em que se distinguiu como um
dos maiores tributos do seu tempo. Absorvendo a atenção da assembleia,
que da esquerda à direita da Câmara o escutava com respeito e admiração.
Acima de tudo é pelo profundo sentido da missão de parlamentar que o
queremos recordar. Não se poupou nunca a esforços para se preparar para
os grandes debates nacionais, a sua voz nunca deixou de se escutar
quando quis alterar os princípios fundamentais do regime, quando se quis
desvirtuar o Parlamento descaracterizando-o ou instrumentalizando-o,
quando era necessário ir mais longe na implementação de direitos,
liberdades e garantias, ou quando se pretendia restringir ou deturpar os
já existentes. À apresentação parlamentar dedicou grande parte da sua
vida, numa acção assídua e combativa. Não procurou a posteridade mas a
actuação directa sobre o seu tempo, e por isso descurou sempre a
inclusão dos seus discursos e intervenções na folha oficial,
recusando-se a rever as imperfeitas notas taquigráficas. Do génio da sua
oratória resta apenas o testemunho de quantos o escutaram, com emoção,
no momento em que como parlamentar lutava por aqueles que aqui
representava e pelo desenvolvimento de Portugal.
Num momento em que parece existir uma campanha para desacreditar a
Assembleia da República como instituição fundamental do regime
democrático, evocar, ainda que de um modo simples como este, a figura de
José Estêvão é relembrar o papel decisivo que homens como ele tiveram no
aperfeiçoamento do sistema parlamentar e simultaneamente o papel ímpar
que este desempenhou na transformação do Estado absolutista em Estado
liberal, no desenvolvimento económico, social e moral de Portugal. Foi a
obra legislativa aqui realizada que consolidou liberdades e direitos,
foi progressivamente aperfeiçoando os critérios de justiça social e
alargando o critério de representação nacional, até à consolidação do
sufrágio universal que hoje nos rege.
Nem todos os períodos da nossa história parlamentar são isentos de
críticas e defeitos. Mas é a dedicação empenhada e assídua de homens
como José Estêvão que repõe sucessivamente a tradição parlamentar. Ao
assumirem plenamente o mandato indeclinável que receberam do eleitorado,
colocam-se e colocam esta Assembleia na primeira linha do
desenvolvimento económico, social e político do País, pela obra
legislativa aqui produzida.
José Estêvão Coelho de Magalhães nasceu na cidade de Aveiro a 26 de
Dezembro de 1809 e a presença nesta cerimónia das autoridades daquele
distrito mostra, passados que são quase 2 séculos, como ainda se mantém
viva na memória dos Aveirenses a figura insigne do parlamentar, do
lutador pela liberdade e do pensador, cuja estátua – no País novamente
livre que somos – voltamos a inaugurar à luz do dia, arrancando-a do
esconderijo para onde, quase que envergonhado, o antigo regime a
transferiria.
A realização desta cerimónia deve-se ao esforço conjugado de muitos
deputados, entre os quais me permito destacar o deputado Raul Rego, pela
sua perseverança, e ainda o deputado Menezes Falcão, que tornou possível
esta inauguração no dia de hoje, resolvendo problemas de natureza
material que pareciam insolúveis, e ao empenho demonstrado pelos vários
serviços da Câmara Municipal de Lisboa.
A todos desejo apresentar os meus agradecimentos, que se dirigem também
aos membros da família de José Estêvão aqui presentes e a todas VV. Ex.ªs
que quiseram, com a vossa presença, abrilhantar esta homenagem.
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A Câmara Municipal de Aveiro, em sua reunião de 16 de Outubro de 1984,
deliberou, por unanimidade, exarar em acta um voto da mais profunda
congratulação pela homenagem prestada pela Assembleia da República ao
insigne aveirense e ilustre parlamentar.
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NOTAS
(a)
– Diário da Assembleia da República, I Série, N.º 1, 16 de Outubro de
1984.
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