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Boletim n.º 4 - Ano II - 1984


A BARRA DE AVEIRO

– na história e no progresso da Região

 

 

Sem pretender divagar sobre a barra de Aveiro e a sua importância na região, começarei por dizer que ela constitui um valoroso meio de desenvolvimento económico. Melhor será dizer que o desenvolvimento e bem-estar social das nossas gentes, desde o Baixo-Vouga até à Beira-Mar, estão verdadeiramente ligados às condições da barra de Aveiro; dela dependem, por exemplo, o sal, a pesca na ria, o tráfego comercial, o movimento da frota bacalhoeira, o vaivém das traineiras e, em tempos idos, a apanha do moliço.

Ao longo destas despretensiosas notas, o leitor poderá tomar contacto com uma dura e cruel realidade, motivada pelo estado da barra, que os nossos antepassados viveram: a períodos de franco progresso seguiram-se, tantas vezes, épocas de verdadeiro declínio económico e demográfico. Houve até ocasiões em que os habitantes destas terras se chegaram a bater – desculpem a expressão como dez cães a um osso; em que a Câmara Municipal não tinha dinheiro para socorrer as centenas de pessoas que morriam em consequência das pestes. Em tais circunstâncias, houve médicos que ameaçaram abandonar a povoação, atacada pela malária, para procurarem lugares mais saudáveis.

Eram algumas das consequências da precariedade da barra, que provocavam um autêntico desespero entre os habitantes de Aveiro, então impotentes em face da natureza madrasta.

 

► CONSIDERAÇÕES SOBRE A LINHA LITORAL E LOCAIS DA BARRA

O litoral compreendido entre o Rio Douro e o Cabo Carvoeiro modificou-se continuamente ao longo dos séculos. Não existia, por exemplo, a laguna de Aveiro formando a costa, a partir do local onde está hoje a lagoa de Esmoriz até ao Cabo Mondego, que na carta actual se encontra entre Cacia e Angeja.

Em 1575, o cordão litoral chegou ao paralelo das dunas da Gafanha. Neste ano, principiaria a degradação da barra de Aveiro, devido a um rigorosíssimo inverno que a atulhou com areia; daí resultou que os fertilíssimos campos e as ricas salinas se tornaram em pântanos infectos e insalubres, e, por conseguinte, a decadência da economia da região. Também se tem conhecimento de ter havido grandes cheias em todo o reino, nos anos de 1526, 1585, 1596 e 1644, as quais muito devem ter contribuído para o deslocamento da barra para sul, motivando ainda a sua obstrução.

Supõe-se que a barra, em 1584, estava a três quilómetros a sul da actual. Por mandado da Câmara Municipal, de 1598, três ou quatro vezes por ano, e às vezes mais, iam homens recolocar os paus de sinalização da barra, visto esta mudar de lugar com frequência – situação que se dava a sul da Costa Nova do Prado.

Em 1643, a barra atingiu a Vagueira. Neste ano, ao que se presume, ela mantinha-se em boas condições. Até aconteceu que, nessa altura, por motivo das lutas da restauração da independência de Portugal, se fizeram algumas obras no forte da Vagueira e, provavelmente, na barra, para a fixar e aprofundar. Rodrigo Mendes da Silva, no seu livro "Poblacion General de España» com licenças de impressão de Julho e Agosto de 1644, informa que Aveiro é porto seguríssimo. Tal notícia terá sido provavelmente escrita no ano anterior.

Em 1644, deve ter começado a segunda crise da barra de Aveiro. Afastou-se ainda mais para sul, assoreou-se e ficou reduzida na sua capacidade – o que contribuiu decisivamente para o movimento diminuto das marés. Em 1656, a navegação já se processava com dificuldade na barra – o que foi aumentando cada vez mais; e, também cada vez mais, foi-se reduzindo o número de barcos que por ela passavam. Em 1685, a barra encontrava-se num local chamado «Quinta do Inglês».

Nos meses finais de 1739, um pesado inverno e uma cheia de enormes dimensões obstruíram novamente a barra, quase a inutilizando; todavia, continuou a aproximar-se do paralelo de Mira. Para agravar a situação, dava-se um levantamento do fundo, de que resultou um maior obstáculo ao escoamento / 46 / das águas e uma quebra de desnível entre as marés.

Para fazer uma ideia da situação da barra nas décadas de 30 e de 40, basta salientar que, de 1736 a 1740, apenas foram despachados cinco navios; em 1741 e 1742, três; em 1743, cinco; em 1744, um; de 1745 a 1750, nenhum; e em 1750, entrou um navio.

Em 1756, a barra de Aveiro atingiu a costa de Mira. Terminava aqui a formação do cordão litoral, que se fora desenvolvendo num período de seis séculos. Por esta ocasião, estava a barra muito embaraçada. A situação económica e higiénica de Aveiro / 47 / era angustiante. Então, a Câmara Municipal, a Nobreza e o Povo pediram providências a El-Rei D. José I. O Monarca, atendendo as reclamações, mais que justas, dos aveirenses – nos quais se incluía D. José de Mascarenhas, duque de Aveiro – resolveu criar a Superintendência das Obras da Barra e o imposto real nas Câmaras da Comarca de Esgueira para custear as despesas das obras.

Entretanto, os trabalhos projectados não se puderam realizar, devido a mais uma cheia, que durou bastante tempo e cujas águas represadas provocaram enormes prejuízos. Na tentativa de resolução do problema, o aveirense João de Sousa Ribeiro, capitão-mor de Ílhavo, devidamente autorizado, à sua custa abriu um regueirão na Vagueira, que veio a funcionar como barra.

No início do século XIX, quando a crise tinha atingido o máximo de intensidade, começou a diminuir o declive do mar sobre o Vouga na enchente, e do Vouga sobre o oceano na vazante, reduzindo-se, por consequência, a velocidade das águas na saída; por isso as cheias eram mais demoradas. O canal da barra passou a ser menos profundo, e menor também o volume das águas que entravam, vindas do mar; diminuiu a amplitude das marés, progressivamente, tornou-se menor a extensão da zona salgada e aumentou a de águas doces. Em 1801, a miséria era geral e as doenças dizimavam a população. A Câmara Municipal mais uma vez pedia providências ao Governo, que parecia ir interessar-se verdadeiramente pela resolução de tão contundente problema.

 

►  A FIXAÇÃO DA BARRA

Depois de ter enumerado as diversas situações da barra de Aveiro e as suas consequências, referir-se-ão seguidamente as várias tentativas e estudos para a sua fixação.

Segundo o que me foi possível concluir, as tentativas, pelo menos oficiais, ou estudos referentes à fixação da barra começaram em 1687, quando a então Vila de Aveiro mandou vir dois engenheiros holandeses, que por aqui permaneceram durante mais de um ano. Depois de estudarem os movimentos das marés, das correntes e dos ventos, os dois técnicos concluíram que a barra deveria fixar-se perto de São Jacinto. A obra, devido à sua dimensão, importaria numa enorme despesa, que ascenderia a muitos milhares de cruzados. Não dispondo a Vila de grandes recursos, nada se concretizou por então.

Mardel, Polchet, Elsden, Isepi, Volerc e Estêvão Cabral foram os engenheiros que, em 1756, fizeram alguns estudos e propuseram soluções ou hipóteses; também não houve resultados positivos. Só em 1757, como já foi referido, é que o capitão-mor João de Sousa Ribeiro conseguiu abrir o regueirão na Vagueira, por onde se escoaram as águas represadas e por onde também passaram barcos de porte. Embora sendo deveras merecedora de largos e justos encómios, o resultado desta obra foi de curta duração. Entre 1759 e 1764, a barra permitiu a entrada de navios, ainda que em números insignificantes. Mais tarde, em 1768, eram tão precárias as condições de navegabilidade, que em 20 de Junho, o Senado Municipal chamava a atenção de EI-Rei para a sua instabilidade e a sua segurança.

Em Maio de 1771, mais uma vez, os clamores de Aveiro chegaram ao Monarca por intermédio do Marquês de Pombal.

Em 8 de Abril de 1802, o Príncipe Regente futuro D. João VI - ordenava que fossem demolidas / 48 / as quatrocentistas muralhas de Aveiro, que ameaçavam ruir, devendo a pedra ser utilizada nos trabalhos que se projectavam para a solução da barra. Todavia, só em 1806 é que quase todas as muralhas foram apeadas. A título de curiosidade, note-se que, até finais de 1983, existiu um pequeno trecho destes muros na Rua de Homem Cristo, Filho.

Naquele ano de 1802, o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, mais tarde conde de Unhares, encarregou o Coronel-Engenheiro Reinaldo Oudinot e o Capitão-Engenheiro Luís Gomes de Carvalho de cada um elaborar o seu plano para a criação de uma nova barra. Os planos foram feitos e aprovados ainda nesse ano, dando-se logo começo às obras. Estes planos tinham, por base, abandonar-se definitivamente a ideia da barra se fixar no litoral de Mira, em favor da hipótese de a abrir na zona central da laguna. Sendo em Mira, a barra não permitiria nem um jogo de marés eficaz nem o escoamento de cheias, em virtude do declive do percurso entre o extremo norte da laguna e a Foz do Vouga. Já estavam as referidas obras em andamento, quando, em 1803, o Eng.º Oudinot foi destacado para a Ilha da Madeira em serviço oficial; continuou na direcção dos trabalhos o Eng.º Luís Gomes de Carvalho que, sob o seu critério, alterou ligeiramente o plano de abertura da barra. Daí resultou gastarem-se cinco anos em vez de um para a sua execução. Tal demora gerou descontentamentos e questões, que não permitiram efectuarem-se os trabalhos com a regularidade e ordem que se impunham. As populações estavam impacientes por que acabassem as obras e se abrisse a barra. Os proprietários das salinas especialmente, na verdade prejudicados por não poderem fazer sal, dada a falta de água do mar, criticavam azedamente o Eng.º Luís Gomes de Carvalho. Em 1806, a excitação popular continuava, a ponto de se ter tentado abrir a barra à força.

Em Fevereiro de 1807 foi aberta a barra – o que não durou muitas horas; no dia seguinte, de madrugada, já se encontrava novamente fechada. Em Fevereiro e Março de 1808, registaram-se grandes inundações, porque as águas não se escoavam para o mar. No bairro baixo da Cidade, ao invés de se entrar nas casas pelas portas, como seria normal, entrava-se pelas janelas. Os ânimos andavam fortemente exaltados; as obras corriam o risco iminente de um assalto. Foi então que o Eng.º Luís Gomes de Carvalho resolveu acelerar o termo dos trabalhos.

Finalmente, iria concretizar-se o muito esperado acontecimento: a barra seria aberta... e com notável êxito. O Eng.º Luís Gomes verificou que o desnível entre o interior e o exterior era de dois metros. Anote-se que ele pretendia que este mesmo desnível fosse o maior possível, porque aumentava assim o reservatório de energia hidráulica, para o que contribuíam bastante as chuvas intensas. Mas não se podia adiar por mais tempo o momento desejado, pois os prejuízos avolumavam-se e a ira popular recrudescia de dia para dia.

Então, pelas sete horas da tarde do dia 3 de Abril de 1808, o dito engenheiro, acompanhado de algumas pessoas, entre as quais se encontravam o Superintendente Verney e o marítimo Cláudio, arrancaram a barragem de estacas e fachina que defendia o resto da duna na cabeça do molhe, cortaram com pás e enxadas e Luís Gomes, abrindo um pequeno sulco com o bico da bota, no frágil obstáculo que separava a ria do mar, deu passagem à onda avassaladora da vazante para a conquista da libertação económica, depois de uma opressão que durara sessenta anos.(1)

 / 49 / Este movimento contínuo e violento das águas durou três dias, no fim dos quais surgiu uma barra com 4,4 e 6,6 metros de profundidade e 264 metros de largura; as águas, que cobriam as ruas da parte baixa da Cidade, também tinham desaparecido.

Pouco tempo depois de a barra estar aberta, o mar destruiu o dique numa extensão de seiscentos metros. As correntes começaram a comer a praia e a depositar as respectivas areias no local da barra. Para evitar isto, o Eng. Luís Gomes mandou construir, na orla do areal de São Jacinto uma série de grossos pontilhões ou dentes de pedra que desviassem as correntes. Apesar de todos os esforços, a barra voltaria a piorar, não sendo constante o seu estado. No entanto, deve-se salientar que, daqui para o futuro, as consequências nunca mais foram tão desastrosas como as mencionadas. A fixação da barra marcou, sem dúvida alguma, a grande vitória sobre o mar; em virtude disso, a água salgada alimenta as salinas, saneia os pântanos e charcos e repovoa a laguna.

Dez anos depois, precisamente em 1818, o Eng.º Luís Gomes de Carvalho iniciou a construção de um dique (molhe norte) na margem norte, que se distancia de 300 metros do outro molhe (que é hoje o da meia-laranja).(2) Contudo, aquele dique, pela sua pouca consistência, em breve foi destruído.

Em 1820, a barra encontrava-se em más condições e os dois molhes inutilizados. Todavia, o referido engenheiro continuava a dirigir as obras, apesar das contrariedades de toda a ordem que teve de suportar, como insuficiência de meios de acção, escassez de recursos financeiros, campanhas opostas, críticas de outros engenheiros, etc.

O Eng.º Luís Gomes de Carvalho recebeu – é certo – dos poderes do Estado distinções a que tinha jus; mas de Aveiro recebeu, tantas e tantas vezes, censuras injuriosas e injustas. Em 1823, numa sessão camarária, promoveu-se o seu afastamento das obras por descontentamento de ordem técnica, ao que não foi alheio o aspecto político; ele tinha sido uma figura preponderante no Partido liberal na Revolução de 1820... e agora dominava o Absolutismo. Na acta da mesma sessão lê-se: «continuando Luís Gomes de Carvalho a dirigir semelhantes obras (as da barra), Aveiro se tomará inteiramente infeliz e desgraçado, sendo este o unânime voto do Clero, Nobreza e Povo, com o qual se conforma esta Câmara».

É triste e difícil crer que se tenha destituído das suas funções um dos grandes obreiros do porto de Aveiro, a quem o mesmo lhe fica para sempre a dever vinte e um anos (1802 - 1823) de grande dedicação e trabalho intenso.

De 1823 a 1858, nada se fez de útil para continuar a sua obra. Pelo contrário. Acabou por se deixar estragar o que estava feito.

Em 1837, devido às razoáveis condições da barra do Forte Novo (barra actual), a barra de Mira fechou-se por si. Neste ano, o inverno fez rasgar a duna litoral na Vagueira, à distância de nove quilómetros da nova barra e abriu uma barreta, que provocou o assoreamento do canal da barra.

A este propósito Vernon-Harcourt, descrevendo os processos de formações lagunares, diz que o cordão litoral é muitas vezes cortado por várias bocas, por onde entram e saem marés salgadas, bocas mantidas pelas águas de montante e pela potência das correntes de marés salgadas. Frequentemente no interior formam-se lagunas – o que se atribui, de uma maneira geral, à acção acumuladora do mar, tendente a fechar as baías com o depósito contínuo através da sua entrada; tal depósito apenas será interrompido por passagens relativamente estreitas, produzidas pelas saídas das águas dos rios e pela entrada das marés. Vernon-Harcourt refere-se às lagunas, cujo cordão litoral tem várias aberturas, aconselhando que se deveria reduzir o número destas e fazer obras de defesa nos pontos mais fracos do cordão, evitando assim a abertura de novos orifícios.(3)

Em 1855, um engenheiro inglês, chamado John Rennie, visitou a nossa barra. Depois de observações feitas, apresentou um relatório de obras a realizar, onde se destacam duas: aumentar quanto possível o receptáculo das marés e, no canal da barra, construir um dique no lado norte. Para se concretizar a primeira das obras, ele concluía que se deveria alargar a passagem através do dique, de 30 a 100 pés, pelo menos; que se deveria alinhar o canal da Cidade (antiga cale da Vila) e constituírem-se outros canais que conduzissem directamente à barra as águas do Vouga, de Ovar e de Vagos, / 50 / reunindo-as a todas num canal único. Isto foi a base do futuro projecto do Eng.º Silvério Pereira da Silva.(4)

Depois de o Eng.º Luís Gomes de Carvalho ter sido destituído das suas funções (1823) sucederam oito directores até 1858 – data em que foi criada, a instâncias de José Estêvão e por decreto régio, a Junta Administrativa e Fiscal das Obras de Aveiro, assumindo a orientação das mesmas o Eng.º Silvério Pereira da Silva que, alguns meses depois, apresentava um relatório onde sobressaem as seguintes indicações: reconstrução do dique sul (meia-laranja); construção de um dique norte, convergente com o do sul para leste, que começaria à distância de 300 metros do sul e afastar-se-ia no prolongamento para o mar, na razão de 1/12 do seu comprimento; alargamento das portas da Cambeia, para facilitar a passagem das águas do canal de Mira; obras na costa do canal de São Jacinto para se obter uma melhor direcção das correntes de fluxo e refluxo.(5)

Em Agosto de 1861, este mesmo engenheiro apresentou um novo relatório dos trabalhos realizados, onde reconhecia que a orientação dada ao molhe sul pelos Eng.ºs Oudinot e Carvalho não era a mais correcta; da sua efectivação tinham mesmo resultado consequências funestas. Na tentativa de as solucionar, propunha a construção de umas comportas na Cambeia, que obrigassem a juntar as águas de São Jacinto às da Vagueira, para aumentar a corrente de vazante.(6)

Em 1865, foram de facto construídas estas comportas, que fizeram com que naturalmente se tapasse a barreta da Vagueira, atrás mencionada. Mas ainda não era desta vez que o sucesso batia à porta; após alguns anos, concretamente em 1873, encontrava-se a barra novamente obstruída.

Em 1884, sempre teimando, o Eng. Silvério Pereira da Silva apresentou um projecto de melhoramentos da barra. Entre outros trabalhos, sugeria: um corte oblíquo do dique sul junto ao forte velho, a partir do vértice para oeste, num comprimento de 150 metros, para dar saída às águas do canal da Cale da Vila, desde o Espinheiro até ao canal da barra, através do banco e ilha da Mó do Meio.(7)

O dique foi cortado e foram feitos dois vãos de catorze metros cada um, separados por pilares onde assentou uma ponte de madeira de 169 metros de comprimento - ponte que até há alguns anos serviu de passagem entre o jardim de Oudinot e a localidade da Barra. Quanto ao canal do Espinheiro, as obras foram começadas em 1879. Este canal devia ser formado por motas curvilíneas: uma a norte, com 2700 metros, e outra a sul com 1560; até 1903 foram construídos 2499 metros na margem direita e 2248 na margem esquerda. Por falta de verbas os trabalhos pararam e nunca o canal foi aberto.

Foi durante vinte e oito anos que este notável engenheiro exerceu as suas funções na direcção dos trabalhos, período em que o aparelho económico da região se renovou.

A 7 de Dezembro de 1921, foi criada a Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, que substituiu a Junta Administrativa das Obras da Ria e Barra de Aveiro, que tinha sido instituída em 1898.

Em 1927, a Junta Autónoma presidida por Homem Cristo, contratou o engenheiro João Henriques Von Hafe para dirigir as obras. Neste ano ainda, Von Hafe apresentou um projecto de melhoramentos da barra, que consistia na construção de um molhe norte, paralelo ao molhe sul, mas prolongado sobre o oceano até 250 metros, e na construção, a oeste do forte novo, de dois diques curvilíneos para orientação das correntes de São Jacinto e de Mira, juntando-se paralelamente na vazante com pouca perda de força viva.(8)

Este projecto sofreu algumas alterações, planeadas por um grupo de engenheiros ingleses que propuseram: que o molhe norte deveria ser convergente para o mar, como o do sul, e prolongar-se em dique até ao centro dos terrenos da Aviação Naval (actualmente BOTP 2) de São Jacinto; que não se deveria construir o prolongamento do molhe norte dentro do oceano, pelo menos na ocasião (em 1927); que o / 51 / canal para a saída das águas de São Jacinto deveria ficar mais largo do que o proposto e o das águas de Mira mais estreito.(9)

Face a estas alterações feitas pela missão inglesa, Von Hafe contestou energicamente o acerto das mesmas, e principalmente da supressão do avanço do molhe norte. Em 5 de Junho de 1930, gravemente doente e em vésperas da sua morte, insistia veementemente na manutenção do molhe avançado, que em seu entender era essencial para o êxito do seu projecto.

As obras tiveram início em 16 de Outubro de 1932 – data em que o Presidente da República, ao tempo General Óscar Carmona, se fez deslocar a Aveiro para inaugurar o início das obras do porto exterior – e foram concluídas em 1936. Neste pequeno período de 4 anos foram feitos: os diques de concentração de correntes, (triângulo de concentração de correntes); o dique marginal e o molhe norte até à boca do porto.

Modificou-se para sempre a configuração do canal de acesso e criou-se-lhe um regime tal que mesmo as piores marés, do ponto de vista de navegabilidade e admissão das águas salgadas na laguna, são preferíveis às melhores anteriores a estas obras. Não só lucrou a barra com um largo aumento de volume de água, como também a indústria do sal conheceu uma nova fase. A pesca na ria desenvolveu-se outrossim, a frota de barcos do bacalhau aumentou consideravelmente, e os mesmos podiam agora fazer a descarga do pescado aqui em Aveiro, o que, anteriormente, algumas vezes não acontecia; os navios viam-se obrigados a descarregar os seus porões no porto de Leixões. Esta necessidade custava aos armadores cerca de 200 mil escudos por navio.(10)

Em 1935, o Eng.º João Ribeiro Coutinho de Lima fez um anteprojecto de prolongamento do molhe norte e da construção de um novo molhe na praia sul da barra. Com base neste anteprojecto, em 1937 foi apresentado o projecto definitivo, que continha ligeiras alterações feitas pelo Eng. Duarte Abecassis, Director-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos de então – alterações essas que consistiram em deslocar 120 metros para sul o enraizamento do molhe sul, aumentando-se simultaneamente a inflexão com o molhe norte. Estas obras tiveram início em 1948.

O projecto posto em execução, consistiu na construção de dois molhes salientes em relação à linha da costa: um no prolongamento do molhe norte com 710 metros de comprimento, outro enraizado na praia cerca de 400 metros para o sul do molhe sul (meia-laranja) com 912 metros de comprimento e convergente com o primeiro, sendo a distância entre centros das testas dos dois molhes de 375 metros.(11)

Em Junho de 1958 foram lançados os últimos blocos na superstrutura, e assim a conclusão de uma das etapas mais notáveis da Engenharia Nacional, que é a barra de Aveiro, sobre a margem de uma antiga duna, muito susceptível aos ventos, às ondas e às correntes e que tanto prejudicava a comunicação da ria com o mar. Estes dois molhes – norte e sul – formam um aparelho protector do acesso ao porto e constituem um verdadeiro monumento da capacidade construtiva da nossa época.(12)

Actualmente continuam as obras, desta vez não devido a estar obstruída a barra – felizmente! – mas para se obter maior profundidade do canal com a finalidade de permitir a entrada de navios com maior calado do que aqueles que têm entrado. Tais obras consistem no prolongamento do molhe norte em mais 500 metros.

A construção do novo porto de Aveiro, com a participação de uma rede viária de penetração nas zonas de mais directa influência até às regiões interiores do País e da fronteira espanhola, criará condições para o total desempenho da sua missão. Continuará assim o pleno progresso da nossa barra e, consequentemente, o de toda a região aveirense.

 

►  O COFRE DA BARRA

Esta reflexão volta-se agora para o cofre da barra, não que o assunto seja de extrema importância numa breve história da barra de Aveiro, mas porque pessoalmente o considero digno de um apontamento. Como disse Eduardo Cerqueira, «na história do porto de Aveiro cheia de vicissitudes, estes fluxos e refluxos do enamorado cofre, embora como um episódio marginal, constituem, ao que nos quer parecer, uma curiosidade merecedora de registo».(13)

Em 1756, foi criado o cargo de superintendente das Obras da Barra, mais da barra e menos das obras; estas apresentavam enormes dificuldades de ordem técnica, que não se superavam com ligeireza, pois os recursos da época não eram os de hoje. Deste modo, as obras eram de pouca monta e as despesas não absorviam, de maneira alguma, os réditos que se guardavam no cofre.

Por imposição real, também em 1756 foi aplicado um imposto sobre toda a carne e todo o vinho vendidos em Aveiro e seus arredores, que revertia em favor das obras do porto; esse dinheiro era arrecadado no «cofre da barra», que estava na posse e guarda do convento dos frades do Carmo. Como prosseguissem sem êxito as tentativas efectuadas na barra, continuava o cofre virado mais para o lado da enchente do que da vazante. Dir-se-ia que ele tendia para uma situação de superabundância, a ponto de quase transbordar o conteúdo, sem que se conseguisse proveito dessa espécie de «nascente».

 / 52 / Em 10 de Julho de 1758, foi assinada e remetida ao desembargador da Relação da Casa do Porto, Manuel Gonçalves Miranda, uma carta régia pela qual lhe era concedida a jurisdição sobre as dependências da barra, e assim sobre o cofre. O Monarca dizia-lhe estar informado de que, segundo as imposições estabelecidas para a abertura da barra, se encontravam vencidas grandes quantias de dinheiro; ao passar pela então Vila de Aveiro, o desembargador devia tomar conta de todo o dinheiro e guardá-lo em cofre fechado, com quatro chaves, das quais seriam entregues uma ao superintendente, outra ao juiz de fora da Vila, outra a João de Sousa Ribeiro, o capitão-mor de Ílhavo que, conforme se referiu, tinha aberto à sua conta um canal que serviu de barra – e outra ao tesoureiro. O cofre ficaria depositado em local onde não corresse o risco de ser roubado. Além dos dinheiros, no cofre seriam guardados os livros de receitas e despesas, para que só à boca do mesmo se efectuassem recebimentos e pagamentos; nisto teria de haver necessariamente o concurso dos quatro claviculários.

Mais tarde, foi nomeado novo superintendente e pensou-se em retirar o cofre do dito convento. Saliente-se que, com esta medida, não se pretendia pôr em dúvida a segurança do cofre, mas já se tornava impraticável irem várias vezes por dia ao convento as pessoas que detinham as chaves. Todavia, julgava-se inconveniente que o cofre permanecesse lá, carregado como estava, sendo alvo fértil de cobiças; era uma responsabilidade demasiada que não se coadunava com uma casa religiosa. O que é verdade é que o cofre permaneceu no convento do Carmo até Novembro de 1789.

Porém, mais valera não ter ficado, mesmo para o bom nome dos frades. Não obstante o zelo e o cuidado com que era guardado, alguém subtilmente o roubou. Não se poupando a esforços, os gatunos levaram o cofre por inteiro, que depois veio a ser encontrado, mas completamente vazio.

Para se evitar escândalo maior do que aquele que já se tinha verificado, para não haver qualquer melindre dos zelosos carmelitas e ainda para lhes demonstrar que continuavam a ser dignos de confiança, Sua Majestade ordenaria que o cofre prosseguisse na posse e guarda do mesmo convento.

Alguns anos decorridos, o cofre encontrava-se novamente bem cheio; porque o dinheiro foi feito para circular, começou a dar-se-lhe aplicação, antes que outra vez roubassem o cofre. Na altura das doenças palustres – como já se referiu – a Câmara Municipal não tinha dinheiro para suportar a despesa com medicamentos e médicos; recorria-se então ao cofre da barra, apesar de o conteúdo ter destino diferente. Mas não se ficava por aqui; foram inúmeras as aplicações desse dinheiro.

Por exemplo. No dia 28 de Junho de 1828, em plena Revolução Liberal, enquanto na ponte do Marnel as tropas constitucionais se batiam gloriosamente com as miguelistas, três homens, escoltados por alguns soldados do Batalhão de Caçadores 10 e de Cavalaria, vieram buscar o dinheiro existente no cofre da barra. Como tivesse comparecido apenas um dos claviculários – Manuel Luís Nogueira – foi o mesmo arrombado por ordem deste e limpo de todo o conteúdo, que foi posteriormente levado para o Porto; contaram-se 3.827$463 réis.

Mas não foi a primeira vez que o dinheiro do cofre da barra se aplicava em revoluções. Já em 1823, quando foram proclamados os inauferíveis direitos de El-Rei D. João VI, foi com ele que se pagou à tropa que aqui auxiliara na Revolução.(14)

Num artigo publicado no periódico «Revolução de Setembro» e assinado por José Estêvão Coelho de Magalhães, podia ler-se: – «Aveiro tem um imposto especial para as obras da barra, e dos cofres da mesma têm tirado à vontade as revoluções, as prodigalidades reais, os conventos, as indústrias e / 53 / as estradas gerais do Reino».(15) Em suma, «o cofre da barra, que nos documentos oficiais aparece designado quase sem excepção com letras maiúsculas, era pau para toda a colher. Era uma espécie de Fundo de Desemprego, e compreensivelmente, porque sem emprego estava o dinheiro que continha. Servia para tapar, aqui e além, algum buraco e colocar alguma tomba algures, onde os cabedais se houvessem delido até à mais frágil transparência».(16)

 

►  A TERMINAR...

Agora, antes de finalizar, não seria justo se fechasse sem fazer uma breve referência e prestar uma modesta homenagem a todos aqueles que de perto estiveram ligados a tão nobre luta, qual foi a construção de uma barra digna de Aveiro e da sua região. Foram eles: Eng.º Reinaldo Oudinot, Eng.º Luís Gomes de Carvalho, Eng.º Silvério Augusto Pereira da Silva, Eng.º João Henriques Von Hafe, Comandante Silvério Ribeiro da Rocha e Cunha, Gustavo Ferreira Pinto Basto, Dr. José Estêvão Coelho de Magalhães, Dr. Alberto Souto e Dr. Álvaro Sampaio.

Propositadamente guardei as últimas palavras para nomear um homem, bem conhecido, que foi, sem dúvida alguma, a alma do ressurgimento da barra e do porto de Aveiro; o desenvolvimento actual fundamenta-se na acção persistente desse aveirense, tanto numa campanha jornalística pertinaz e inteligente, contra tudo e contra todos, como numa acção devotada de presidente da Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro. Da maneira eficaz como soube enfrentar e solucionar os problemas dependeu o sucesso da barra, há muito aguardado. Este homem, que faleceu em 1943, foi Francisco Manuel Homem

Cristo. Da sua vitória lucramos nós hoje com um porto em franco progresso e aberto a um futuro promissor.

Anotando os seus nomes, fica implícito o meu voto de perenidade a estes homens e aveirenses. Só auguro que nós, que deles nos orgulhamos, sigamos as suas pegadas na dedicação pela nossa terra comum e continuemos a pugnar pelo engrandecimento de Aveiro.

João César Loura

 

NOTA DA REDACÇÃO

O presente artigo é da autoria de um jovem estudante, vivamente interessado em conhecer e dar a conhecer a história aveirense, nos seus diversos capítulos, monumentos e homens ilustres.

Ao publicar este trabalho, o Boletim Municipal de Aveiro também deseja incentivar outros jovens a lançarem-se, com critério e com gosto, na investigação local, para maior e melhor conhecimento da nossa terra.

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Bibliografia consultada

ADOLFO LOUREIRO – O Porto de Aveiro, Imprensa Nacional, (1904).

ÁLVARO SAMPAIO – O Porto de Aveiro e a sua influência no crescimento económico da região, em «Aveiro e o seu Distrito», II, 1966.

EDUARDO CERQUEIRA – O «Cofre da Barra» de Aveiro na função de caixa de empréstimos ou subsídios, em «Arquivo do Distrito de Aveiro», XXXIX (1973), pgs. 120-142.

EDUARDO CERQUEIRA – Porto de Aveiro, um porto das Beiras, (Palestra proferida em Viseu, em 1972); Aveiro, 1980.

FERNANDO DE SOUSA – O Porto de Aveiro (Conferência realizada em 24 de Julho de 1938 no Teatro Aveirense). Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro.

F. FERREIRA NEVES – Breve História da Barra de Aveiro, em «Arquivo do Distrito de Aveiro», I (1935), pgs. 219-239.

F. FERREIRA NEVES – Resumo Histórico da Barra de Aveiro, em «Arquivo do Distrito de Aveiro», XIII (1947), pgs. 20-33.

JOÃO GONÇALVES GASPAR – Aveiro, Notas Históricas, Aveiro, 1983.

JOSÉ MARIA DA SILVA – O Porto de Aveiro e o Projecto do Eng.º Von Hafe.

JUNTA AUTÓNOMA DA RIA E BARRA DE AVEIRO – Obras de Melhoramento da Barra. Gaia, (1932).

MARQUES GOMES – Aveiro, Berço da Liberdade – A Revolução de 16 de Maio de 1928, Aveiro, 1928.

MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS – Porto de Aveiro, (1959).

RANGEL DE QUADROS – Aveiro, Origens, brasão e antigas freguesias; Aveiro, Paisagem Editora, 1984.

ROCHA E CUNHA – Notícia sobre as indústrias marítimas na área da jurisdição da Capitania do Porto de Aveiro; Aveiro, 1939.

ROCHA E CUNHA – O Porto de Aveiro (Conferência pronunciada em 5 de Maio de 1923); 2.8 ed., Aveiro, 1959.

ROCHA E CUNHA – Relance da História Económica de Aveiro - Soluções para o seu problema marítimo, a partir do século XVII;

Observação – Além desta bibliografia, também procurei informações junto de várias entidades e outras pessoas, a quem agradeço reconhecidamente todas as gentilezas.

J. C. L.

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NOTAS

(1) – Cfr. Comando Rocha e Cunha, «Conferência realizada em 5 de Maio de 1923», pg. 8.

(2) – Os cálculos desta distância ou afastamento obedecem a estudos apropriados; a largura varia na razão inversa da profundidade, e vice-versa.

(3) – Cfr. Comando Rocha e Cunha, «Relance da História Económica de Aveiro», pgs. 47-48.

(4) – Cfr. F. Ferreira Neves, em «Arquivo do Distrito de Aveiro», I (1935), pg. 233. A passagem já tinha sido de 24 pés.

(5) – Cfr. idem, pg. 234.

(6) – Cfr. idem.

(7) – Cfr. idem, pg. 236.

(8) – Cfr. idem, pg. 237.

(9) – Cfr. idem.

(10) – Cfr. Dr. Álvaro Sampaio, «O Porto de Aveiro e a sua influência no crescimento económico da região» em «Aveiro e o seu Distrito», II – (1966), pg. 12.

(11) – Cfr.  Ministério das Obras Públicas - Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos - Direcção dos Serviços Marítimos, em «Porto de Aveiro» (1959).

(12) – Cfr.  Acta da Câmara Municipal de Aveiro de 30 de Junho de 1958.

(13) – «Arquivo do Distrito de Aveiro», XXXIX (1973), pg. 142.

(14) – Cfr.  Marques Gomes, «Aveiro, Berço da Liberdade», pgs. 42-43.

(15) – N.º 3937, de 27-5-1855.

(16) – «Arquivo do Distrito de Aveiro», XXXIX (1973), pg. 129.

 

 

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