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Boletim n.º 3 - Ano II - 1984


NOS 550 ANOS DA FEIRA DE MARÇO

 

O DOCUMENTO-BASE

Foi EI-Rei D. Duarte, o «Eloquente», que, com o projecto de engrandecer a povoação e julgando ser do seu serviço e para bem do Reino, ordenou que o Infante D. Pedro, seu «sobre todos muito prezado e amado irmão», mandasse que anualmente se fizesse, «na sua vila de Aveiro» e no mês de Maio, uma feira franca, «a qual se fará por esta guisa começar-se no primeiro dia do dito mês e durará até ao dia de S. Miguel seguinte, que são oito dias». (1)

O documento real, dado em Santarém, é de 27 de Fevereiro de 1434. Por ele se estatuía apenas o pagamento de meia sisa a quem no mercado comprasse ou vendesse quaisquer coisas, excepto no caso de «vinhos que se vendam atabernados» ou de «carne que se venda a talho»; neste caso, a sisa seria cobrada por inteiro. Os que viessem à feira podiam circular livremente com as suas bestas e nelas tornarem a suas casas, sem que fossem constrangidos para qualquer serviço; e bem assim podiam trazer as suas armas, «enquanto na dita feira andarem». O soberano ainda determinava que, na feira, ninguém podia ser preso, acusado ou demandado por quaisquer malefícios em que fosse culpado, «salvo se estes malefícios forem feitos no dito lugar ou seu termo, ou forem feitos novamente na dita feira»; e que ninguém fosse demandado por nenhumas dívidas, «salvo se forem dívidas que devam de coisas que aí comprarem ou venderem». Além disso, proibia-se que os corregedores e meirinhos fossem à feira «para fazer correição»; todavia, se eles lá quisessem ir, seria apenas para comprar ou vender, «e não por nenhuma outra coisa».

A feira franca de Aveiro, que gozava dos mesmos privilégios das suas congéneres de Tomar (1420), / 10 / Montemor-o-Velho (1426), e Penela (1433), começou, pois, a realizar-se na primeira semana de Maio, encerrando-se no dia em que a Igreja Católica comemorava a singular aparição do Arcanjo S. Miguel no Monte Gargano. Contudo, desde cedo, foi transferida para Março; efectivamente, nas confirmações régias posteriores do documento citado, feitas em 1497 por D. Manuel e em 1525 por D. João III, já se permitia que «a dita feira se mude ao primeiro dia de Março, assim como era do primeiro dia de Maio». Rangel de Quadros, ao referir-se a esta mudança, diz que ela foi determinada por insinuação dos dominicanos de Aveiro. (2) Frei Luís de Sousa, escrevendo no século XVII, dá-nos conta do motivo de tal resolução: – «E, porque a maior misericórdia que a Senhora e o mundo receberam do Céu foi a vinda do Filho de Deus à Terra, é a festa mais solene deste Mosteiro (de S. Domingos, de Aveiro) sua Santíssima Encarnação, aos 25 de Março, solenizada sempre com notável concurso dos lugares vizinhos, em memória dos misteriosos princípios desta Casa. Soube El-Rei D. Duarte da devoção, folgou de lhe dar aumento com conceder à Vila uma feira franca e geral, que começa aos vinte do mês e dura oito dias». (3)

 

NOS PRIMÓRDIOS

No início, a hoje chamada «Feira de Março» em pouco se assemelharia ao que ela é em nossos dias. Então, eram diferentes os usos e costumes, as necessidades das pessoas limitavam-se a pouco e não se havia desenvolvido o sistema de comunicações terrestres que, no século XIX e a partir dele, havia de tornar possível e fácil a grande afluência de forasteiros e a extrema mobilidade das gentes. Contudo, graças às vias de acesso que lhe facultavam a ria e o Vouga, Aveiro não se encontrava tão isolada como outros centros urbanos do País, e até desfrutava de uma situação de privilégio pelo seu porto marítimo. A via fluvial e o acesso pelo oceano naturalmente facilitavam as trocas e as relações entre mareantes, marnotos, pescadores, agricultores, artífices e burgueses, num nível relativamente elevado e com certa estabilidade. A feira franca, talvez mais em Maio do que em Março, atrairia a Aveiro as populações da região – o que dava à Vila um movimento desusado e uma importância pouco comum.

O agregado populacional, em pleno período de prosperidade, subiria no século XVI a um índice demográfico de quase doze mil «pessoas de comunhão... afora muita gente estrangeira que aí de contínuo reside» – no testemunho de D. João Soares, bispo de Coimbra, na sua provisão de 1572, pela qual foi partilhada a Vila em quatro freguesias. Não é difícil supor que, num burgo florescente e animado, muitos dos estrangeiros fossem comerciantes que, servindo-se da feira anual, tentassem os forasteiros com as novidades recebidas pela barra... nesses oito dias que, além de tudo, proporcionariam as distracções próprias dos invulgares ajuntamentos humanos.

Há mesmo motivo para presumir que, ao ter-se feito a mudança para Março, a feira principiasse no dia 19, com a «Feira de S. José» – esta reservada exclusivamente a peças e utensílios de madeira – e viesse a terminar no dia 25 em que se festejava solenemente a «Senhora de Março» ou Senhora da Misericórdia, a celeste Titular do Convento dos Padres Dominicanos.

Neste último dia, como ainda hoje acontece, contratavam-se os moços para o trabalho das marinhas na safra do sal, que se aproximava.

 

O LOCAL

A área destinada ao importante mercado desenvolvia-se desde a actual Rua de Viana do Castelo até ao Rossio. Este, porém, com o seu velho pelourinho fronteiro à Rua de Trindade Coelho e com a capela de S. João, do século XVII, ainda se não havia alargado para o sítio da marinha rossia, só expropriada em 1851 e, anos mais tarde, aterrada e terraplanada. Os feirantes estendiam-se, portanto, ao longo da Rua do Cais, até à Praça do Comércio, (4) e ocupavam os Balcões ou os Arcos; os merceeiros instalavam-se na própria ponte, porque o trânsito não tinha grande significado; e os ourives pousavam as tendas numa ruela estreita que corresponderia hoje ao início da referida Rua de Viana do Castelo. As madeiras expunham-se ao longo do cais, tanto de um como do outro lado do canal. Praticamente, toda a feira se efectuava na banda da Vila Nova, na actual freguesia da Vera-Cruz; a antiga Vila, cingida de muralhas, não permitia grande espaço livre, tanto para os comerciantes como para os compradores e visitantes.

O secular mercado, com a melhoria das condições económicas da Cidade e da região a partir da abertura da barra nova em 1808, sofreu certamente a influência do ressurgimento que se verificou em todas as actividades locais. O Município ia até ao ponto de restabelecer regras caídas em desuso ou estabelecia modificações na sua organização. Assim, em 1816, a Câmara acordou em que se não vendessem na Feira de Março madeiras de pinho ou de castanho antes do dia de S. José e «que só neste dia e nos dias 20 e 21 se venderia ao público, e nunca aos revendões, salvo ao rematante da Feira, a quem se podia vender a necessária para estabelecimento das barracas». (5)

Em 1829, os correeiros foram transferidos da / 11 / Rua do Cais para o Rossio de S. João, alegando-se para tal decisão a estreiteza da mencionada artéria, o embaraço que causavam ao desembarcadouro do cais e o prejuízo que os proprietários dos prédios fronteiros sofriam com as cordas que amarravam às mesmas casas. Desta forma, ficaria livre a principal entrada da Feira. (6)

Em 1837, a Vereação, juntamente com a Nobreza e o Povo, considerando o que a realização do mercado anual representava nas receitas municipais, estimava «o rendimento da Feira de Março o primeiro do interesse da Câmara e sem o qual não podia satisfazer as despesas ordinárias». (7)

Nessa ocasião, aumentando o movimento da Cidade e tornando-se inconveniente a instalação de feirantes tanto nos Arcos como na Praça e nas pontes – já eram duas desde os finais do século XVIII – começou o Alboi a ser utilizado como local de venda de madeiras. Na sessão de 3 de Fevereiro de 1836, os vereadores «demarcaram o terreno aonde há-de ser feita a Feira de Março daqui em diante, pela forma seguinte: que a feira de madeira de pinho, castanho e carvalho seria no sítio do Alboi, pela parte de trás do palheiro da Misericórdia, compreendendo todo o espaço que vai do cais que principia à ponte até o outro cais novo, e a feira do abarracamento, madeira de canal e todos os mais géneros principiaria do Pelourinho em diante, estendendo-se em todo o largo do Rossio até a ponte que vai para as pirâmides». (8)

 

►      DURAÇÃO DA FEIRA

O tempo da duração da Feira de Março não era acatado com inteiro rigor, noutros tempos. No que respeita ao século passado, isso se depreende de uma representação dos negociantes aveirenses à Câmara Municipal, então presidida pelo Dr. Manuel José Mendes Leite, onde se rogava que a duração fosse exactamente demarcada. Em 23 de Março de 1839, a Edilidade chegou a acordo e «mandou fixar a postura pedida».

Acentuando-se cada vez mais o progresso da Cidade e o desenvolvimento do mercado anual, onde se apresentavam novos artigos e se verificava maior concorrência de vendedores e compradores, na sessão camarária de 24 de Janeiro de 1854, por iniciativa de Francisco do Vale Guimarães, vereador-fiscal, foi aprovado um novo regulamento e foram estabelecidos preços mais elevados ou mais justos para os «lugares e abarracamentos». No novo aranzel permaneceu o costume de os negociantes do concelho de Aveiro poderem montar barracas à sua custa, satisfazendo apenas metade do assento ocupado, desde que o requeressem até ao dia 1 de Março.

Em 1887, o Dr. Elias Fernandes Pereira, vice-presidente do Município e conhecido professor do Liceu local, propôs uma actualização do regulamento da Feira de Março. Precisamente em 2 de Junho, alvitrou à Câmara a necessidade de se reunir «num só corpo de doutrina tudo o que deva adoptar-se a tal respeito». Foram então aprovadas as posturas que cuidadosamente sistematizara, em 42 artigos e 5 tabelas anexas. «A feira que anualmente tem lugar na Cidade de Aveiro, conhecida pela denominação de Feira de Março, compreende dois períodos: um que vai de 13 a 19 de Março, e outro que, começando a 25 desse mês, não poderá estender-se além do dia 8 de Abril seguinte. O primeiro daqueles dois períodos / 12 / tem o nome de Feira de S. José, e o segundo é conhecido pelo nome de Feira de Nossa Senhora de Março» – assim se lia no regulamento, que fixava datas e prazos e atribuía diferentes designações às duas feiras.

O primeiro mercado ocupava, na freguesia da Glória, o espaço entre o cais e as casas fronteiras, desde a ponte da Praça até à ponte da Dubadoira, exceptuando a parte macadamizada da estrada, e ainda a Rua das Barcas; (9) na freguesia da Vera-Cruz, era-lhe destinada toda a zona da Praça do Comércio e o terreno entre o cais e os prédios da frente, até à entrada do Rossio, ficando apenas livre uma faixa junto às casas para o trânsito. À Feira de Nossa Senhora de Março reserva-se o mencionado Rossio.

Sempre que o dia 25 de Março coincidia com a quinta-feira ou sexta-feira santas, o Município, a pedido dos feirantes, adiava a abertura para data posterior, em geral para o domingo de Páscoa; neste caso, também a data do encerramento era consequentemente prorrogada.

Pelo referido regulamento, era fixada no primeiro dia da Feira de Nossa Senhora de Março a venda de barcos e bateiras, cujo local se estendia desde as pirâmides e malhada dos Santos Mártires até à extremidade do canal, no Côjo, e malhada da Fonte Nova.

Nas décadas seguintes, a Feira de Março continuaria a realizar-se com as diversas especialidades, sem sofrer grandes alterações. A demolição da capela de S. João, decidida em 30 de Outubro de 1910 e concretizada sem delongas, permitiu mais uma fila de barracas que, depois de encher o Rossio em arruamentos paralelos, se estendiam num dos lados da Rua do Cais, até perto da Praça do Comércio. Aconteceu mesmo que, alterando a pacatez do burgo, no princípio do presente século, em instalações improvisadas se levaram à cena comédias, tragédias, operetas e revistas.

Em 1921, registou-se um acontecimento anormal, de grande realce e projecção. Iluminou-se pela primeira vez a feira com luz eléctrica. Forneceu-a graciosamente a Empresa Auto-Metalúrgica, montando e fazendo accionar um pequeno gerador numa das barracas. A iluminação pública da Cidade apenas seria inaugurada após meio ano.

 

 FEIRA-EXPOSIÇÃO

A partir de 1936, a Câmara Municipal, presidida pelo Dr. Lourenço Simões Peixinho, imprimiu ao mercado multissecular um ar moderno, mais consentâneo com as condições dos tempos e com as manifestações da actividade humana; a par da actualização das tabelas, procedeu-se a uma mais adequada disposição, formou-se um recinto praticamente fechado, com um pórtico de entrada voltado para a Cidade, instalou-se um serviço de informações turísticas e de propaganda com amplificação sonora, abriu-se um pavilhão de chá, encheu-se de luzes o largo, renovaram-se muitas barracas, destinaram-se vários «stands» para exposição industrial, proporcionaram-se diversos festivais. Tudo isto incentivou maior afluência de forasteiros e visitantes; a Feira de Março tornara-se também um centro de atracções, num pretexto para visitar Aveiro, não perdendo o carácter de ocasião de transacções comerciais dos artigos costumados. O tipo de «feira-exposição» remoçava efectivamente o secular mercado aveirense que, desde 1979, deixando o local antigo, passou a realizar-se num espaço mais amplo, a montante do Côjo.

Todavia, para os forasteiros de mais longe, comprar na Feira de Março significa quase sempre um mero acidente num passeio turístico ou um pretexto para sair de casa em tarde primaveril. O que lhes importa é certamente mudar de ambiente, vir a Aveiro, ver a ria, compartilhar no bulício das muitas pessoas, aproveitar horas de distracção, divertir-se nas diversas formas reclamadas e tentadoras. Mesmo para os aveirenses, a Feira de Março é local de espontânea comunicabilidade e de vida social mais intensa.

Em 10 de Janeiro do corrente ano de 1984, a Câmara Municipal, em reunião ordinária, acabou por aprovar um novo regulamento; por ele, o certame é confirmado como «feira popular anual, com manifestações de carácter comercial, de exposição e de diversão», que se realiza normalmente de 25 de Março a 25 de Abril.

Como Eduardo Cerqueira, escrevendo em 1947, também nós fazemos votos por que a Feira de Março prossiga num esforço de constante renovamento e atenta actualização, «sobrevivendo a novas gerações, semeando saudades, apertando elos de dedicação bairrista, contribuindo para intensificar e enriquecer a vida de Aveiro». (10)

João Gonçalves Gaspar

Imagem inserida na 1.ª página do Boletim (não inserida neste artigo).

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(1) – Torre do Tombo, Extremadura, Livro 2, fls. 70-71; Vd. Milenário de Aveiro - Colectânea de Documentos Históricos - l, pgs.178-179.

(2) – Aveiro - Apontamentos Históricos - VII, fl. 9.

(3) – História de S. Domingos, lI parte, Livro III, Cap. III.

(4) – A Rua do Cais tem hoje o nome de João Mendonça, e a Praça do Comércio o de Joaquim de Melo Freitas.

(5) – Termo de Vereação, de 30-3-1816.

(6) – Termo de Vereação, de 7-3-1829.

(7) – Termo de Vereação, de 12-11-1834.

(8) – Auto de Vereação, de 3-2-1836.

(9) – A Rua das Barcas tem hoje o nome de José Rabumba.

(10) – Arquivo do Distrito de Aveiro, Ano XIII, 1947, pg. 307.
 

 

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