NOS 550 ANOS DA FEIRA DE
MARÇO
► O DOCUMENTO-BASE
Foi EI-Rei D. Duarte, o «Eloquente», que, com o projecto
de engrandecer a povoação e julgando ser do seu serviço e para bem do
Reino, ordenou que o Infante D. Pedro, seu «sobre todos muito prezado e
amado irmão», mandasse que anualmente se fizesse, «na sua vila de
Aveiro» e no mês de Maio, uma feira franca, «a qual se fará por esta
guisa começar-se no primeiro dia do dito mês e durará até ao dia de S.
Miguel seguinte, que são oito dias».
(1)
O documento real, dado em Santarém, é de 27 de Fevereiro
de 1434. Por ele se estatuía apenas o pagamento de meia sisa a quem no
mercado comprasse ou vendesse quaisquer coisas, excepto no caso de
«vinhos que se vendam atabernados» ou de «carne que se venda a talho»;
neste caso, a sisa seria cobrada por inteiro. Os que viessem à feira
podiam circular livremente com as suas bestas e nelas tornarem a suas
casas, sem que fossem constrangidos para qualquer serviço; e bem assim
podiam trazer as suas armas, «enquanto na dita feira andarem». O
soberano ainda determinava que, na feira, ninguém podia ser preso,
acusado ou demandado por quaisquer malefícios em que fosse culpado,
«salvo se estes malefícios forem feitos no dito lugar ou seu termo, ou
forem feitos novamente na dita feira»; e que ninguém fosse demandado por
nenhumas dívidas, «salvo se forem dívidas que devam de coisas que aí
comprarem ou venderem». Além disso, proibia-se que os corregedores e
meirinhos fossem à feira «para fazer correição»; todavia, se eles lá
quisessem ir, seria apenas para comprar ou vender, «e não por nenhuma
outra coisa».
A feira franca de Aveiro, que gozava dos mesmos
privilégios das suas congéneres de Tomar (1420),
/ 10 /
Montemor-o-Velho (1426), e Penela (1433), começou, pois, a realizar-se
na primeira semana de Maio, encerrando-se no dia em que a Igreja
Católica comemorava a singular aparição do Arcanjo S. Miguel no Monte
Gargano. Contudo, desde cedo, foi transferida para Março; efectivamente,
nas confirmações régias posteriores do documento citado, feitas em 1497
por D. Manuel e em 1525 por D. João III, já se permitia que «a dita
feira se mude ao primeiro dia de Março, assim como era do primeiro dia
de Maio». Rangel de Quadros, ao referir-se a esta mudança, diz que ela
foi determinada por insinuação dos dominicanos de Aveiro.
(2) Frei Luís
de Sousa, escrevendo no século XVII, dá-nos conta do motivo de tal
resolução: – «E, porque a maior misericórdia que a Senhora e o mundo
receberam do Céu foi a vinda do Filho de Deus à Terra, é a festa mais
solene deste Mosteiro (de S. Domingos, de Aveiro) sua Santíssima
Encarnação, aos 25 de Março, solenizada sempre com notável concurso dos
lugares vizinhos, em memória dos misteriosos princípios desta Casa.
Soube El-Rei D. Duarte da devoção, folgou de lhe dar aumento com
conceder à Vila uma feira franca e geral, que começa aos vinte do mês e
dura oito dias». (3)
► NOS PRIMÓRDIOS
No início, a hoje chamada «Feira de Março» em pouco se
assemelharia ao que ela é em nossos dias. Então, eram diferentes os usos
e costumes, as necessidades das pessoas limitavam-se a pouco e não se
havia desenvolvido o sistema de comunicações terrestres que, no século
XIX e a partir dele, havia de tornar possível e fácil a grande afluência
de forasteiros e a extrema mobilidade das gentes. Contudo, graças às
vias de acesso que lhe facultavam a ria e o Vouga, Aveiro não se
encontrava tão isolada como outros centros urbanos do País, e até
desfrutava de uma situação de privilégio pelo seu porto marítimo. A via
fluvial e o acesso pelo oceano naturalmente facilitavam as trocas e as
relações entre mareantes, marnotos, pescadores, agricultores, artífices
e burgueses, num nível relativamente elevado e com certa estabilidade. A
feira franca, talvez mais em Maio do que em Março, atrairia a Aveiro as
populações da região – o que dava à Vila um movimento desusado e uma
importância pouco comum.
O agregado populacional, em pleno período de
prosperidade, subiria no século XVI a um índice demográfico de quase
doze mil «pessoas de comunhão... afora muita gente estrangeira que aí de
contínuo reside» – no testemunho de D. João Soares, bispo de Coimbra, na
sua provisão de 1572, pela qual foi partilhada a Vila em quatro
freguesias. Não é difícil supor que, num burgo florescente e animado,
muitos dos estrangeiros fossem comerciantes que, servindo-se da feira
anual, tentassem os forasteiros com as novidades recebidas pela barra...
nesses oito dias que, além de tudo, proporcionariam as distracções
próprias dos invulgares ajuntamentos humanos.
Há mesmo motivo para presumir que, ao ter-se feito a
mudança para Março, a feira principiasse no dia 19, com a «Feira de S.
José» – esta reservada exclusivamente a peças e utensílios de madeira –
e viesse a terminar no dia 25 em que se festejava solenemente a «Senhora
de Março» ou Senhora da Misericórdia, a celeste Titular do Convento dos
Padres Dominicanos.
Neste último dia, como ainda hoje acontece,
contratavam-se os moços para o trabalho das marinhas na safra do sal,
que se aproximava.
► O LOCAL
A área destinada ao importante mercado desenvolvia-se
desde a actual Rua de Viana do Castelo até ao Rossio. Este, porém, com o
seu velho pelourinho fronteiro à Rua de Trindade Coelho e com a capela
de S. João, do século XVII, ainda se não havia alargado para o sítio da
marinha rossia, só expropriada em 1851 e, anos mais tarde, aterrada e
terraplanada. Os feirantes estendiam-se, portanto, ao longo da Rua do
Cais, até à Praça do Comércio,
(4) e ocupavam os Balcões ou os Arcos; os
merceeiros instalavam-se na própria ponte, porque o trânsito não tinha
grande significado; e os ourives pousavam as tendas numa ruela estreita
que corresponderia hoje ao início da referida Rua de Viana do Castelo.
As madeiras expunham-se ao longo do cais, tanto de um como do outro lado
do canal. Praticamente, toda a feira se efectuava na banda da Vila Nova,
na actual freguesia da Vera-Cruz; a antiga Vila, cingida de muralhas,
não permitia grande espaço livre, tanto para os comerciantes como para
os compradores e visitantes.
O secular mercado, com a melhoria das condições
económicas da Cidade e da região a partir da abertura da barra nova em
1808, sofreu certamente a influência do ressurgimento que se verificou
em todas as actividades locais. O Município ia até ao ponto de
restabelecer regras caídas em desuso ou estabelecia modificações na sua
organização. Assim, em 1816, a Câmara acordou em que se não vendessem na
Feira de Março madeiras de pinho ou de castanho antes do dia de S. José
e «que só neste dia e nos dias 20 e 21 se venderia ao público, e nunca
aos revendões, salvo ao rematante da Feira, a quem se podia vender a
necessária para estabelecimento das barracas».
(5)
Em 1829, os correeiros foram transferidos da
/ 11 /
Rua do Cais para o Rossio de S. João, alegando-se para tal decisão a
estreiteza da mencionada artéria, o embaraço que causavam ao
desembarcadouro do cais e o prejuízo que os proprietários dos prédios
fronteiros sofriam com as cordas que amarravam às mesmas casas.
Desta
forma, ficaria livre a principal entrada da Feira.
(6)
Em 1837, a Vereação, juntamente com a Nobreza e o Povo,
considerando o que a realização do mercado anual representava nas
receitas municipais, estimava «o rendimento da Feira de Março o primeiro
do interesse da Câmara e sem o qual não podia satisfazer as despesas
ordinárias». (7)
Nessa ocasião, aumentando o movimento da Cidade e
tornando-se inconveniente a instalação de feirantes tanto nos Arcos como
na Praça e nas pontes – já eram duas desde os finais do século XVIII –
começou o Alboi a ser utilizado como local de venda de madeiras. Na
sessão de 3 de Fevereiro de 1836, os vereadores «demarcaram o terreno
aonde há-de ser feita a Feira de Março daqui em diante, pela forma
seguinte: que a feira de madeira de pinho, castanho e carvalho seria no
sítio do Alboi, pela parte de trás do palheiro da Misericórdia,
compreendendo todo o espaço que vai do cais que principia à ponte até o
outro cais novo, e a feira do abarracamento, madeira de canal e todos os
mais géneros principiaria do Pelourinho em diante, estendendo-se em todo
o largo do Rossio até a ponte que vai para as pirâmides».
(8)
► DURAÇÃO DA FEIRA
O tempo da duração da Feira de Março não era acatado com
inteiro rigor, noutros tempos. No que respeita ao século passado, isso
se depreende de uma representação dos negociantes aveirenses à Câmara
Municipal, então presidida pelo Dr. Manuel José Mendes Leite, onde se
rogava que a duração fosse exactamente demarcada. Em 23 de Março de
1839, a Edilidade chegou a acordo e «mandou fixar a postura pedida».
Acentuando-se cada vez mais o progresso da Cidade e o
desenvolvimento do mercado anual, onde se apresentavam novos artigos e
se verificava maior concorrência de vendedores e compradores, na sessão
camarária de 24 de Janeiro de 1854, por iniciativa de Francisco do Vale
Guimarães, vereador-fiscal, foi aprovado um novo regulamento e foram
estabelecidos preços mais elevados ou mais justos para os «lugares e
abarracamentos». No novo aranzel permaneceu o costume de os negociantes
do concelho de Aveiro poderem montar barracas à sua custa, satisfazendo
apenas metade do assento ocupado, desde que o requeressem até ao dia 1
de Março.
Em 1887, o Dr. Elias Fernandes Pereira, vice-presidente
do Município e conhecido professor do Liceu local, propôs uma
actualização do regulamento da Feira de Março. Precisamente em 2 de
Junho, alvitrou à Câmara a necessidade de se reunir «num só corpo de
doutrina tudo o que deva adoptar-se a tal respeito». Foram então
aprovadas as posturas que cuidadosamente sistematizara, em 42 artigos e
5 tabelas anexas. «A feira que anualmente tem lugar na Cidade de Aveiro,
conhecida pela denominação de Feira de Março, compreende dois períodos:
um que vai de 13 a 19 de Março, e outro que, começando a 25 desse mês,
não poderá estender-se além do dia 8 de Abril seguinte. O primeiro
daqueles dois períodos
/ 12 /
tem o nome de Feira de S. José, e o segundo é conhecido pelo nome de
Feira de Nossa Senhora de Março» – assim se lia no regulamento, que
fixava datas e prazos e atribuía diferentes designações às duas feiras.
O primeiro mercado ocupava, na freguesia da Glória, o
espaço entre o cais e as casas fronteiras, desde a ponte da Praça até à
ponte da Dubadoira, exceptuando a parte macadamizada da estrada, e ainda
a Rua das Barcas; (9) na freguesia da Vera-Cruz, era-lhe destinada toda
a zona da Praça do Comércio e o terreno entre o cais e os prédios da
frente, até à entrada do Rossio, ficando apenas livre uma faixa junto às
casas para o trânsito. À Feira de Nossa Senhora de Março reserva-se o
mencionado Rossio.
Sempre que o dia 25 de Março coincidia com a quinta-feira
ou sexta-feira santas, o Município, a pedido dos feirantes, adiava a
abertura para data posterior, em geral para o domingo de Páscoa; neste
caso, também a data do encerramento era consequentemente prorrogada.
Pelo referido regulamento, era fixada no primeiro dia da
Feira de Nossa Senhora de Março a venda de barcos e bateiras, cujo local
se estendia desde as pirâmides e malhada dos Santos Mártires até à
extremidade do canal, no Côjo, e malhada da Fonte Nova.
Nas décadas seguintes, a Feira de Março continuaria a
realizar-se com as diversas especialidades, sem sofrer grandes
alterações. A demolição da capela de S. João, decidida em 30 de Outubro
de 1910 e concretizada sem delongas, permitiu mais uma fila de barracas
que, depois de encher o Rossio em arruamentos paralelos, se estendiam
num dos lados da Rua do Cais, até perto da Praça do Comércio. Aconteceu
mesmo que, alterando a pacatez do burgo, no princípio do presente
século, em instalações improvisadas se levaram à cena comédias,
tragédias, operetas e revistas.
Em 1921, registou-se um acontecimento anormal, de grande
realce e projecção. Iluminou-se pela primeira vez a feira com luz
eléctrica. Forneceu-a graciosamente a Empresa Auto-Metalúrgica, montando
e fazendo accionar um pequeno gerador numa das barracas. A iluminação
pública da Cidade apenas seria inaugurada após meio ano.
► FEIRA-EXPOSIÇÃO
A partir de 1936, a Câmara Municipal, presidida pelo Dr.
Lourenço Simões Peixinho, imprimiu ao mercado multissecular um ar
moderno, mais consentâneo com as condições dos tempos e com as
manifestações da actividade humana; a par da actualização das tabelas,
procedeu-se a uma mais adequada disposição, formou-se um recinto
praticamente fechado, com um pórtico de entrada voltado para a Cidade,
instalou-se um serviço de informações turísticas e de propaganda com
amplificação sonora, abriu-se um pavilhão de chá, encheu-se de luzes o
largo, renovaram-se muitas barracas, destinaram-se vários «stands» para
exposição industrial, proporcionaram-se diversos festivais. Tudo isto
incentivou maior afluência de forasteiros e visitantes; a Feira de Março
tornara-se também um centro de atracções, num pretexto para visitar
Aveiro, não perdendo o carácter de ocasião de transacções comerciais dos
artigos costumados. O tipo de «feira-exposição» remoçava efectivamente o
secular mercado aveirense que, desde 1979, deixando o local antigo,
passou a realizar-se num espaço mais amplo, a montante do Côjo.
Todavia, para os forasteiros de mais longe, comprar na
Feira de Março significa quase sempre um mero acidente num passeio
turístico ou um pretexto para sair de casa em tarde primaveril. O que
lhes importa é certamente mudar de ambiente, vir a Aveiro, ver a ria,
compartilhar no bulício das muitas pessoas, aproveitar horas de
distracção, divertir-se nas diversas formas reclamadas e tentadoras.
Mesmo para os aveirenses, a Feira de Março é local de espontânea
comunicabilidade e de vida social mais intensa.
Em 10 de Janeiro do corrente ano de 1984, a Câmara
Municipal, em reunião ordinária, acabou por aprovar um novo regulamento;
por ele, o certame é confirmado como «feira popular anual, com
manifestações de carácter comercial, de exposição e de diversão», que se
realiza normalmente de 25 de Março a 25 de Abril.
Como Eduardo Cerqueira, escrevendo em 1947, também nós
fazemos votos por que a Feira de Março prossiga num esforço de constante
renovamento e atenta actualização, «sobrevivendo a novas gerações,
semeando saudades, apertando elos de dedicação bairrista, contribuindo
para intensificar e enriquecer a vida de Aveiro».
(10)
João Gonçalves Gaspar
Imagem inserida na 1.ª
página do Boletim (não inserida neste artigo).
___________________________________________
(1) – Torre do Tombo, Extremadura, Livro 2, fls. 70-71;
Vd. Milenário de Aveiro - Colectânea de Documentos Históricos - l,
pgs.178-179.
(2) – Aveiro - Apontamentos Históricos - VII, fl. 9.
(3) – História de S. Domingos, lI parte, Livro III, Cap.
III.
(4) – A Rua do Cais tem hoje o nome de João Mendonça, e a
Praça do Comércio o de Joaquim de Melo Freitas.
(5) – Termo de Vereação, de 30-3-1816.
(6) – Termo de Vereação, de 7-3-1829.
(7) – Termo de Vereação, de 12-11-1834.
(8) – Auto de Vereação, de 3-2-1836.
(9) – A Rua das Barcas tem hoje o nome de José Rabumba.
(10) – Arquivo do Distrito
de Aveiro, Ano XIII, 1947, pg. 307.
|