António dos Santos Lé
Evocação e Homenagem
Entre os
habitantes de Aveiro no presente século, encontramos uma personalidade
de grande destaque musical, pela acção relevante e profícua que exerceu
no nosso meio. «Figura de homem do povo estreme» – como o classificou
Eduardo Cerqueira (1) – António dos Santos Lé foi músico-nato e
autodidacta, executante e compositor, mestre de alunos e maestro de
banda e de orquestra. Com sua energia comunicativa e invulgar
sensibilidade, desvendava valores latentes, aglutinava boas vontades e
impulsionava titubeantes.
Seu pai,
António dos Santos, era de Ílhavo, e sua mãe, Ana Maria, da freguesia da
Boa-Viagem, da vila da Moita; contudo, viviam em Lisboa, na freguesia de
S. Miguel de Alfama, quando, em 1 de Setembro de 1879, aí nasceu António
Lé, que, ainda criança e órfão de mãe, veio a ser internado no
Asilo-Escola de Aveiro – hoje Internato Distrital. O pequeno
adolescente, que sentiria gosto em se considerar e ser considerado
aveirense de adopção e, de coração, começou muito cedo a revelar uma
especial vocação para a música; foi aluno da respectiva secção e fez
parte da sua banda.
Atingindo
os dezoito anos de idade, saiu do Asilo-Escola e, pouco depois,
ingressou na Banda Amizade; logo aí se distinguiu como solista de
cornetim. Mais tarde, auxiliado por bons amigos, fundou e impulsionou
vigorosamente a Escola Musical de José Estêvão, onde ensinou e, criou
executantes, insuflando-lhe a mais vigorosa interpretação artística, e
imprimindo-lhe uma maturidade e uma disciplina raras vezes atingida em
meios pequenos. Daqui surgiria uma grande banda, que seria a sua: a
«Banda da Patela» ou a «Música Nova» que, iniciando a sua actividade em
26 de Dezembro de 1909 (2) e perdurando por muitos anos, viria a
alcançar renome memorável e projecção prestigiante, mesmo fora das
fronteiras (3).
Além
disso, António dos Santos Lé passou a dirigir a banda do Asilo-Escola,
sucedendo ao antigo professor. Com saber e tenacidade, o novo mestre
conseguiu fazer do agrupamento juvenil uma banda altamente apreciável.
Manifestando-se como ensaiador carismático de grupos filarmónicos, de
agrupamentos de corda e de massas corais, ensaiou ainda conjuntos de
apoio e de dinamização de grupos cénicos famosos de amadores aveirenses,
de revistas e costumes locais, de zarzuelas difíceis; manteve em elevado
nível orquestras e coros que realçavam as cerimónias litúrgicas,
nomeadamente as da festa de Nossa Senhora das Candeias, tão arreigada na
tradição das gentes da «Beira-Mar».
António
dos Santos Lé era um homem essencialmente bom que, dando sem esperança
de receber, interessava-se pelo bem-estar dos outros, procurava emprego
para os sem-trabalho e alegrava-se com os talentos dos discípulos;
trabalhador incansável por Aveiro, a quem tanto se dedicara e que tanto
dignificara, acabou por falecer em 21 de Maio de 1961, com 82 anos de
idade, na cidade de Viseu, onde ficaram sepultados os seus restos
mortais. «Aveirense que ajudou decisivamente a realçar e firmar a alma
desta terra, exemplo de devoção e pertinácia de esforços, propagador do
renome de Aveiro, ganhou indispensável direito a que a sua terra se
honre, honrando-lhe o nome a tantos títulos exemplar» – assim escreveu
Eduardo Cerqueira em 1979, no primeiro centenário do nascimento de
António dos Santos Lé (4).
Com
efeito, já em 14 de Janeiro de 1968, se realizara uma grande romagem a
Viseu, à qual aderiram algumas das colectividades mais representativas
de Aveiro, o Sport Club Beira-Mar, a banda do Internato Distrital e
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muitas pessoas. Aí, na cidade de Viriato, houve um desfile, até ao
cemitério local; junto da campa onde foi, deposta e descerrada uma
lápide, o Dr. David Cristo evocou o seu labor e a sua vida.
Chegara
finalmente a ocasião de ser prestada uma homenagem na própria terra onde
havia decorrido quase toda a sua existência.
Uma
comissão de aveirenses – um grupo de antigos discípulos – lançou a ideia
de preitear a sua memória. Os diversos actos, realizados sob o
patrocínio da Junta de Freguesia da Vera-Cruz e da Câmara Municipal de
Aveiro, efectuaram-se, na cidade, no dia 25 de Setembro; do programa
constou missa de sufrágio, desfile cívico, descerramento de placa
toponímica, concerto musical e espectáculo folclórico.
Na
ocasião, o Dr. David Cristo evocou o Homem e o Artista e disse, que, «se
não fosse a pequena dimensão de Aveiro, o homenageado mereceria honras
nacionais»; e o Dr. José Girão Pereira, falando como Presidente da
Edilidade, convidaria os aveirenses a seguirem o exemplo de António Lé
em prol da sua terra, «num momento em que o progresso da cidade e, do
concelho faz que os homens se esqueçam do Homem, dando prioridade aos
valores materiais».
Com esta
celebração, tornaram-se autenticamente verídicas as palavras do Dr.
António Cristo, publicadas aquando da sua morte: – «António Lé foi um
grande artista musical e um aveirense como poucos; Aveiro, que muito lhe
ficou a dever, nunca se lembrou de lhe prestar merecida homenagem em
vida, que não depois de morto»
(5).
J. G.
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(1) – Litoral, n.º 1275, 7-12-1979.
(2) – Nesta data, em que ocorreu o primeiro centenário do nascimento de
José Estêvão, foi inaugurado em Aveiro o monumento aos Mártires da
Liberdade, na então Praça do Comércio (actualmente de Melo Freitas).
(3) – Também organizou e foi o primeiro regente da Banida Eixense, que
remonta ao dia 1 de Janeiro de 1923.
(4) – Id.
(5) – Litoral, n." 346, 10-6-1961.
Retrato da «Escola Musical José Estêvão»
«É função desta Escola Musical José Estêvão cultivar a música popular e
educar crianças pobres, gratuitamente, no campo musical. Tem, por isso,
uma orquestra e uma banda. (...) Esta banda é muito conhecida, tendo a
sua fama já atingido terras de Espanha, onde tem ido algumas vezes.
(...) A sua divisa é: Para bem da Arte. (...) Vive apenas dos próprios
executantes que também sustentam o funcionamento da Escola para os
aprendizes pobres.
Não havia nesta terra cinemas, cafés, futebol e outros passatempos; e
assim, os sócios executantes, quando chegava a hora das lições e dos
ensaios, compareciam, e assim trabalhava-se com amor e força de vontade.
Hoje... é muito difícil.»
PEDRO DE FREITAS
(em «História da Música Popular em Portugal»,
Lisboa, 19M; pág. 474)
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