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Boletim n.º 2 - Ano I - 1983 - pp. 47-48

António dos Santos Lé

Evocação e Homenagem

 

Entre os habitantes de Aveiro no presente século, encontramos uma personalidade de grande destaque musical, pela acção relevante e profícua que exerceu no nosso meio. «Figura de homem do povo estreme» – como o classificou Eduardo Cerqueira (1) – António dos Santos Lé foi músico-nato e autodidacta, executante e compositor, mestre de alunos e maestro de banda e de orquestra. Com sua energia comunicativa e invulgar sensibilidade, desvendava valores latentes, aglutinava boas vontades e impulsionava titubeantes.

Seu pai, António dos Santos, era de Ílhavo, e sua mãe, Ana Maria, da freguesia da Boa-Viagem, da vila da Moita; contudo, viviam em Lisboa, na freguesia de S. Miguel de Alfama, quando, em 1 de Setembro de 1879, aí nasceu António Lé, que, ainda criança e órfão de mãe, veio a ser internado no Asilo-Escola de Aveiro – hoje Internato Distrital. O pequeno adolescente, que sentiria gosto em se considerar e ser considerado aveirense de adopção e, de coração, começou muito cedo a revelar uma especial vocação para a música; foi aluno da respectiva secção e fez parte da sua banda.

Atingindo os dezoito anos de idade, saiu do Asilo-Escola e, pouco depois, ingressou na Banda Amizade; logo aí se distinguiu como solista de cornetim. Mais tarde, auxiliado por bons amigos, fundou e impulsionou vigorosamente a Escola Musical de José Estêvão, onde ensinou e, criou executantes, insuflando-lhe a mais vigorosa interpretação artística, e imprimindo-lhe uma maturidade e uma disciplina raras vezes atingida em meios pequenos. Daqui surgiria uma grande banda, que seria a sua: a «Banda da Patela» ou a «Música Nova» que, iniciando a sua actividade em 26 de Dezembro de 1909 (2) e perdurando por muitos anos, viria a alcançar renome memorável e projecção prestigiante, mesmo fora das fronteiras (3).

Além disso, António dos Santos Lé passou a dirigir a banda do Asilo-Escola, sucedendo ao antigo professor. Com saber e tenacidade, o novo mestre conseguiu fazer do agrupamento juvenil uma banda altamente apreciável.

Manifestando-se como ensaiador carismático de grupos filarmónicos, de agrupamentos de corda e de massas corais, ensaiou ainda conjuntos de apoio e de dinamização de grupos cénicos famosos de amadores aveirenses, de revistas e costumes locais, de zarzuelas difíceis; manteve em elevado nível orquestras e coros que realçavam as cerimónias litúrgicas, nomeadamente as da festa de Nossa Senhora das Candeias, tão arreigada na tradição das gentes da «Beira-Mar».

António dos Santos Lé era um homem essencialmente bom que, dando sem esperança de receber, interessava-se pelo bem-estar dos outros, procurava emprego para os sem-trabalho e alegrava-se com os talentos dos discípulos; trabalhador incansável por Aveiro, a quem tanto se dedicara e que tanto dignificara, acabou por falecer em 21 de Maio de 1961, com 82 anos de idade, na cidade de Viseu, onde ficaram sepultados os seus restos mortais. «Aveirense que ajudou decisivamente a realçar e firmar a alma desta terra, exemplo de devoção e pertinácia de esforços, propagador do renome de Aveiro, ganhou indispensável direito a que a sua terra se honre, honrando-lhe o nome a tantos títulos exemplar» – assim escreveu Eduardo Cerqueira em 1979, no primeiro centenário do nascimento de António dos Santos Lé (4).

Com efeito, já em 14 de Janeiro de 1968, se realizara uma grande romagem a Viseu, à qual aderiram algumas das colectividades mais representativas de Aveiro, o Sport Club Beira-Mar, a banda do Internato Distrital e / 48 / muitas pessoas. Aí, na cidade de Viriato, houve um desfile, até ao cemitério local; junto da campa onde foi, deposta e descerrada uma lápide, o Dr. David Cristo evocou o seu labor e a sua vida.

Chegara finalmente a ocasião de ser prestada uma homenagem na própria terra onde havia decorrido quase toda a sua existência.

Uma comissão de aveirenses – um grupo de antigos discípulos – lançou a ideia de preitear a sua memória. Os diversos actos, realizados sob o patrocínio da Junta de Freguesia da Vera-Cruz e da Câmara Municipal de Aveiro, efectuaram-se, na cidade, no dia 25 de Setembro; do programa constou missa de sufrágio, desfile cívico, descerramento de placa toponímica, concerto musical e espectáculo folclórico.

Na ocasião, o Dr. David Cristo evocou o Homem e o Artista e disse, que, «se não fosse a pequena dimensão de Aveiro, o homenageado mereceria honras nacionais»; e o Dr. José Girão Pereira, falando como Presidente da Edilidade, convidaria os aveirenses a seguirem o exemplo de António Lé em prol da sua terra, «num momento em que o progresso da cidade e, do concelho faz que os homens se esqueçam do Homem, dando prioridade aos valores materiais».

Com esta celebração, tornaram-se autenticamente verídicas as palavras do Dr. António Cristo, publicadas aquando da sua morte: – «António Lé foi um grande artista musical e um aveirense como poucos; Aveiro, que muito lhe ficou a dever, nunca se lembrou de lhe prestar merecida homenagem em vida, que não depois de morto» (5).

J. G.

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(1) – Litoral, n.º 1275, 7-12-1979.

(2) – Nesta data, em que ocorreu o primeiro centenário do nascimento de José Estêvão, foi inaugurado em Aveiro o monumento aos Mártires da Liberdade, na então Praça do Comércio (actualmente de Melo Freitas).

(3) – Também organizou e foi o primeiro regente da Banida Eixense, que remonta ao dia 1 de Janeiro de 1923.

(4) – Id.

(5) – Litoral, n." 346, 10-6-1961.

 

 

Retrato da «Escola Musical José Estêvão»

«É função desta Escola Musical José Estêvão cultivar a música popular e educar crianças pobres, gratuitamente, no campo musical. Tem, por isso, uma orquestra e uma banda. (...) Esta banda é muito conhecida, tendo a sua fama já atingido terras de Espanha, onde tem ido algumas vezes. (...) A sua divisa é: Para bem da Arte. (...) Vive apenas dos próprios executantes que também sustentam o funcionamento da Escola para os aprendizes pobres.

Não havia nesta terra cinemas, cafés, futebol e outros passatempos; e assim, os sócios executantes, quando chegava a hora das lições e dos ensaios, compareciam, e assim trabalhava-se com amor e força de vontade. Hoje... é muito difícil.»

PEDRO DE FREITAS

(em «História da Música Popular em Portugal»,

Lisboa, 19M; pág. 474)

 

 

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