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N.º 31

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

1.º Semestre de 1983 

O Marquês de Pombal em Aveiro

Por Eduardo Cerqueira

O Marquês de Pombal – originariamente, como é mais que sabido, Sebastião José de Carvalho e Melo com ter sido, como dizia o Épico, um daqueles que da «morte se vão libertando», e, assim foi um alto vulto perpetuamente projectado na História Nacional; foi uma personalidade extremamente complexa. Cintilava desencontradamente, conforme a face pela qual fosse contemplado. E era, desse modo, no seu tempo, e é ainda hoje.

Com um lado reluzente de realizador expedito, desenvolto, decidido, actualizado e actualizante, e outro sombrio e pouco simpático, sobranceiro e voluntarioso, desumano e cru, tirânico e impositivo, de fel e vinagre, calculista e implacável nas suas revindictas e nos seus premeditados e sopesados actos correntes de governação – de poder pessoal intransigente e férreo, inquebrantável a toda a sorte de pesos, racionais ou de sentimento que divergissem das suas pré-traçadas rotas. Pelo menos à flor da pele, e visível do lado de fora.

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Raul Brandão (1) – que procura dá-lo em corpo inteiro e é muito menos faccioso a apreciá-lo do que Camilo, (2) que dele traçou um retrato execrando – escreve, no seu inconfundível estilo, a que a gente tanto se apega, acerca dessa tão controversa figura, concreta e altaneira, de luz e sombras, de notórios traços nítidos, imediatamente evidentes, e simultaneamente cheia de esconsos, sombrios, de dificultosa análise e medida, e, pois, de muito precárias quotas de possibilidade de avaliação globalizada: É (no seu tempo, claro) a última figura do passado. Mas, reparem, enche a época...»

Camilo escreve (pg. 258, ed. Lello & Irmão, Editores, Porto, 1982, de «Perfil do Marquês de Pombal») na sua conhecida objurgatória, unilateral e enegrecedora: Ele (o Marquês de Pombal) pela sua parte, desde 1759, (o ano exactamente em que Aveiro foi elevada a cidade) inculcava também grande pavor. Escultava-se de um esquadrão de dragões de Aveiro, com as espadas nuas, e nunca se apeava da sege sem se amparar ao ombro do capitão da guarda, que tinha o seu quartel em casa convizinha à do ministro»... (Note-se a coincidência).

Passos adiante, o aguarelista insuperado das laudas, que cheiram à maresia, que em «Os Pescadores» consagrou à Ria de Aveiro, acrescenta, nessas impressionantes e aprofundadas páginas em que se mascara de historiador, e não consegue deixar-se invadir pela subjectividade onírica, definidora e retrospectivamente, em «sentença de artista, certeira por intuição do vidente:

«Um déspota precisa de um século de aflição, e de artifício para dar alicerces à sua obra /.../. É incoerente e sem dúvida esmagou, calcou, teve pedras no lugar do coração. E, prossegue, algumas linhas depois: «É preciso separar a dor da crueldade». (3) / 46 /

E, a dar-me a mão consonante para a circunstância em que nesta terra de liberdade, por excelência e de reduzida memória, e neste ambiente fraternamente congregador, rememoramos, reconhecidos e admiradores, um indiscutível tirano, bom, lúcido e indelével encaminhador para mais folgadas rotas, vê, de fora, e, ao que suponho certo: «EI Rei Banal – assim o considerava num segundo plano da acção governativa ao D. José da equestre estátua machadina – desconfia e engorda, e pergunto a mim mesmo quantas vezes o espinhaço de ferro do Marquês se lhe fundiu perante o olhar do dono. Bajula-o, só se sustenta à custa do poder real, e se D. José, na sua imensa vaidade de homem gordo e balofo (são os piores) chega a suspeitar que papel o futuro lhe destina, o outro [Pombal] acabava no fundo de qualquer masmôrra – na pior.»

E remata-lhe o retrato, ao mesmo tempo altaneiro e com todas as facetas mesquinhas, no ocaso penumbroso físico e do poder desfrenado e inclemente: «Largam-no gasto, na casa friorenta, a dois passos da morte. Está só – está velho – está rico.» (4)

Tratavam-no, com fel acumulado em deçenues, ao déspota que se prosternava defronte do trono para se manter com todo o poderio, como ao leão moribundo.

*   *   *

Mas, verdadeira e concretamente, o que me proponho, aqui e agora, referenciar, não é o Marquês de Pombal inteiro e discutível, o compósito, e controverso, e notável vulto que ficou inapagavelmente na história, como um dos de maior projecção nacional, dos mais execrados e dos mais inspiradores. Apenas e muito restritamente, uma alta figura poderosíssima apenas numa das facetas positivas e consabidas, muito circunscrita e miniaturizada da sua profícua acção pública – a do estadista compreensivo e largo que, como raras individualidades, serviu Aveiro e germinativamente contribuiu para o prestígio e o progresso da vila em decadência.

E, multiformemente, como era atributo acentuado da sua polifacetada personalidade, atento a todos os sectores da incipiente actividade e das não desencadeadas potencialidades do país – cujas rédeas do poder segurava com mão firmíssima. Aliás, ninguém põe em dúvida de quanto Aveiro lhe ficou credora, e a sua aguda e penetrantíssima visão, nem o seu rasgado espírito, impositivo mas ininterrompidamente perscrutante, inovador e antecipador. De um homem que via e concebia longe e largo, e mais que qualquer dos contemporâneos, e que era, ao mesmo tempo – arejado que viera do estrangeiro mais progressivo e que imbuíra de ideias novas o provável conservador da pequena nobreza – um símbolo de opressiva indiscutibilidade de poder absoluto, sem entraves, concentrador, e tirânico, e desapiedado, e um semeador de ideias, pelo menos aparentemente antagónicas das suas práticas governativas de rumos indesviáveis, e rigorosamente impermeáveis a toda a sorte de sugestões extrínsecas, por mais fundamentadas e legítimas.

Não iremos, pois, analisar, em toda a sua extrema complexidade a figura altívola que mais grimpou nesse século de setecentos, no qual o espírito estrangeirado rasgou as nunca mais calafetadas brechas da nossa tantas vezes mal pilotada barca nacional. No próprio também permeável e iluminado Marquês em que tanta influência, mesmo inconsciente, se lhe infiltrou no tempo em que estanciou na estranja.

Muito agudamente, quando o Marquês já chega aos fundos da desgraça, Raul Brandão – esse impressivo escritor, essencial em qualquer colectânea antológica sobre a Ria de Aveiro – escreve ainda lapidarmente: «O velho comido de lepra, comido de dores, é o passado inteiriço – tem grandeza.»

Vejamos, contudo, tão só, e resumidamente, o que Sebastião José de Carvalho e Melo operou em benefício de Aveiro – desta cidade anfíbia de débil memória e de crescente ingratidão por quantos a serviram com proficuidade, desta urbe, em descaracterização paralela do crescimento, que há cem anos celebrou relevantemente, como adiante veremos, sumariamente, essa inolvidável lembrança.

Se há juízos de serena imparcialidade, objectiva e bem coada, eu que tive, há já não sei quanto tempo, o privilegiado ensejo de contemplar vários projectos e plantas que Sebastião José de Carvalho e Melo, nos inícios ou nos acumes do poder, examinou penetradoramente, e rubricou, através de uma carreira ascensional de entrega total voluntária e infatigável, de aprazida opressão e progressivo poderio. Abstrairei, pois do que desborda dessa figura gigântea, de odioso, de cru e de, porventura, sádico, de aperreativo e de antipático.

Colocá-Io-ei, altíssimo na perspectiva da minha avaliação aveirense, distante no tempo e nas hipóteses de opressão, na sua antevisão arguta e na implementação concreta e benévola da vila cheia de virtualidades. Verei, apenas, nesta ocasião, sucintos e pouco mais que enumerados, os prestantes e prestigiadores benefícios que carrilou para Aveiro – onde, acaso, nunca terá estado, e compreendeu lucidamente na sua potencialidade económica, e beneficiou com a largueza e a lucidez, que os recursos do tempo lhe permitiam.

Começarei por aludir, ainda que mais fugazmente do que o assunto requer, a um dos vitais valores da região aveirense, e que está na fase mais positiva e alentadora da nossa prosperidade possível e consequente do que se encontra visível e é logicamente concludente. Como já Filipe II (o nosso primeiro dos três / 47 / castelhanos que usurparam a independência, e, sem dúvida, o mais lúcido), vira de S. Lourenço do Escurial, (de onde dominava meio mundo) na sua amplitude e subtileza de visão rasgadíssima, que Aveiro possuía o porto de mar mais próximo da Meseta Ibérica. O Marquês de Pombal sentiu compreensivamente e como um quase percursor o que essa comunicação com o mar – mais tarde restabelecida, funcionalmente, num ponto, aparentemente pouco indicado, do cordão litoral de dunas, pelo benemérito, o quase salvador e recriador Tenente-Coronel de Engenheiros Luís Gomes de Carvalho – representava em toda a potencialidade e plenitude.

Patrocina, assim, o envio, para o estudo dos problemas portuários aveirenses, intrincados e ariscos aos mais dotados técnicos, dos mais qualificados especialistas de que o país dispunha, nesse período de parturejamento – ainda que não de realizações efectivas, e eficientes, e duradouras.

Há provas incontroversas da sua benévola e impelidora protecção que Aveiro lhe despertara antes mesmo das demonstrações de repulsa da generalidade dos aveirenses pelo atentado de lesa-majestade. (5)

Por aqui passaram, por sua influência, vultos como o expoente máximo das matemáticas em Portugal, o famoso lente da Universidade Monteiro da Rocha, e os estrangeiros de maior qualificação chamados ao país. Desde o susceptibilíssimo italiano Iseppi, aos franceses, muito experimentados e sapientes François Hiacinte Polchet e Louís Alincourt, secundados, por exemplo, por Francisco Pereira da Cunha, de que existem ainda passos concludentes. E aí não esquecem os esforços de João da Silva Ribeiro, para reabertura da barra errante e precaríssima, desse aveirense de gema que representaria Aveiro, no acto de agradecimento pela promoção a cidade, e tantos títulos apresentava para lhe ser confiada essa missão honrosíssima.

O Marquês de Pombal, já aqui em Aveiro, localizara com evidentes propósitos de fomento económico – aliás mais que conhecidos e ensaiados em diversos pontos do país – uma indústria de tecidos, entregando-a ao audaz e de experiência comprovadíssima João Baptista Locatelli. Iludira-o, acaso, o ostentador industrial, atraído pelas aparentes capacidades (6). Não viria ao papel de implementação da economia regional que se lhe confiava esperançadamente.

A região – pela consabida atitude de franco e imediato repúdio que assumiu, sem hesitação, quando do atentado, em 1758 (a 4 de Julho, precisamente, contra a vida, pouco menos que sagrada nesse período de poder absoluto, contra o soberano, frecheiro e sem cautas preocupações ilibatórias das honras femininas. Tanto mais que D. José de Mascarenhas, então Duque de Aveiro, e donatário da vila, morto pela rancorosa sanha pessoal vindicativa do régio e sobranceiro soberano pela «graça de Deus» – não possuía, como donatário, sanguessuguesco, de direito e de facto, a mais pequena simpatia da ainda então vila de Aveiro – estava notória e muito proveitosamente sob a aberta protecção do ainda Conde de Oeiras.

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Aveiro no século XVIII – Gravura cedida por Carlos Candal.

A propósito, abramos aqui um espaço, rememorando o sermão – impresso no Porto, na oficina gráfica de Francisco Mendes Lima, no ano de 1760 e, como é óbvio, com todas as licenças necessárias do Santo Ofício, do Ordinário e do Paço – que o M.to Rev.º P.e M.e Bernardo de S. José Magalhães, dominicano e aveirense de nomeada e envergadura, gongoríssimo, que regia mesmo, como lente proprietário, a cadeira de Terça no Real Colégio de S. Tomás, de Coimbra, no Te-Deum, repetimos, de Acção de Graças a Deus, que se celebrou, com a melhor música sacra possível no acanhado meio provinciano, na Igreja Matriz de S. Miguel, «solenizando a incomparável honra com que Sua Majestade Fidelíssima /.../ quis fazer (até àquele dia 29 de Setembro de 1759?) Nobre e notável Vila» e, a partir dessa data, «Cidade da sua Augusta Monarquia, com todas as honras e privilégios das antigas cidades deste Fidelíssimo Reino. A pomposa cerimónia seria celebrada, com toda a pompa litúrgica, com a assistência do Senado da Câmara, Comunidades Religiosas, Nobreza e Povo – os quais haviam já participado num solene e luzido préstito comemorativo de tamanhos motivos de júbilo.

Na primeira página do texto, aliás, do sermão que recordamos, pode deduzir-se que o texto da superlativante oração (repleta, ao gosto da época, de citações latinas) foi publicado a expensas municipais. O Senado da Câmara subscreve-a mesmo e exprime ao ainda, como já observámos, Conde de Oeiras, penhoradamente, o desejo de que continue a dispensar a sua protecção benéfica à cidade que tanto contribuíra para ser erecta.

O afamado e ditirâmbico pregador aveirense considera os seus «fidelíssimos conterrâneos – e talvez abranja na denominação a minha ufania de «cagaréu» visceral, como águias de nascimento. E porque, desde o Augusto Imperador Romano António Pio, Aveiro teria no seu brasão de armas «a Águia, que ainda hoje – e hoje, nos dias que estamos a viver – se lhe conserva.»

E aponta, em algumas pinceladas coloridas e entusiasticamente laudatórias, alguns dos títulos históricos mais prestigiantes de Aveiro, dizendo, acaso, sem sólido fundamento crítica e histórica: «Seus filhos têm sido famigerados em todas as ciências, achando-se na Biblioteca Portuguesa mais de 30 escritores célebres, naturais de Aveiro; seis Bispos» (cinco dos quais dominicanos). E cita dois apenas; omitindo, por exemplo, Frei Jorge de Santa Luzia, o primeiro prelado católico que teve autoridade apostólica no Oriente; e D. Fr. Miguel Rangel, que teve acção de grande relevo nas ilhas do redor de Timor. Cita, repita-se, apenas dois: D. João / 48 / Ferraz, «que sendo primeiro Bispo de Ceuta, pela renúncia que «daquele Bispado tinha feito o Excelentíssimo e Reverendíssimo D. João Manuel, Religioso do Carmo, filho natural do Sereníssimo Rei D. Duarte» /.../; e D. Frei Miguel de Bulhões e Sousa, /.../ Bispo do Grão Pará» (e, depois, bispo de Leiria) que «ilustram os púlpitos de Portugal, e as Cadeiras de Religião, com grande glória, e esplendor da família Dominicana, sendo também chamado para aluno da Real Academia, em que mostrou ser um dos Príncipes da Oratória» /.../. (7)

E no seguimento dos títulos mais honrosos de Aveiro (8), acrescenta ainda:

«Nas campanhas tem tido a valentia dos braços aveirenses grande glória em catorze Generais, e se viu, entre admirações, o valor Lusitano na última guerra, nos famosos Maias de Aveiro». / 49 /

Mas volvamos ao Conde de Oeiras, a quem o ditirâmbico e laureado orador sacro chama em plena acepção do qualificativo, nada menos que «invicto».

A recordação que deixou entre nós o impiedoso Marquês – eu ia dizer intramuros e à roda deles, pois, então, ainda se encontravam praticamente intactas as muralhas mandadas reconstruir pelo Infante D. Pedro – foi francamente lisonjeira e nunca de todo foram esquecidos os benefícios que aqui operou ou estimulou.

O atentado que «a população de Aveiro verberou indignadamente», qualificando-o – e, quiçá, sentindo-o – como «um horroroso e sacrílego insulto». Na altura foi assim mesmo designado com seu quê de subserviente, ainda que em harmonia com um real sentimento maioritário. Os habitantes da vila, rebelando-se e condenando inequivocamente o antipático e malquisto donatário, solicitaram que a localidade «ficasse sob a tutela do rei» (9)

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Planta setecentista de Aveiro – Destacando-se as 7 igrejas existentes na época dentro das muralhas da cidade. Desenho de J. Gaspar. Gravura gentilmente cedida pelo Sr. Dr. Carlos da Costa Candal.

Verificou-se exactamente na noite de 3 para 4 de Setembro, o «sacrílego» atentado contra a vida do monarca. E apenas decorrido mais de um mês, a 13 de Outubro seguinte – porque tudo ao tempo era cuidadosamente crivado – seriam tornadas públicas as conclusões do processo, aliás, logo mandado instaurar, rigorosíssimo, sem a mínima contemplação de indulgência, e com as conclusões, repito bem mastigadas, antes de dadas ao público, que convinha manter plácido. Aí era inculpado, com graves arguições, e, acaso, mesmo muito provavelmente, sem a directa interferência do implacável Marquês, o mal visto D. José de Mascarenhas, que os aveirenses intimamente detestavam –que era invejoso, ínvio, insidioso, calculista grão-mestre da Casa Real. Ao longo da ascensão de Sebastião José – como resumida, e familiarizadamente denomina Agustina Bessa Luís ao poderoso e altivo Marquês de Pombal – até às cimeiras culminâncias do poder pessoal, de que usou e abusou, e a quem, apenas, não seria posto no caminho senão um só inatingido – e acaso inantingível – dos degraus da vida pública, o mais subido de todos, obviamente / 50 / – o do sólio do soberano absoluto, de direito divino, e de total intangibilidade para quem não houvesse sido gerado num ventre reginável, na circunstância um monarca desdenhosissimamente convicto dos seus privilégios, altivo, donjuanesco e, ao que parece, mais medíocre que renunciante às suas prerrogativas.

Haja, todavia, sido movido por escondidos motivos pouco credores de simpatia e acaso condicentes com o seu maquiavélico espírito (10) – o que me parece pouco verosímil já que o inclemente expulsador dos jesuítas, sem quaisquer motivos inconfessáveis, tomou outras atitudes similares – a verdade é que, por sua influência e por seu estímulo, foi criada, em 12 de Abril de 1774, pela bula do Papa Clemente XIV Militantis Ecclesiae Gubernacula, a primeira Diocese de Aveiro. A referida bula seria executada, volvido um ano, em Abril de 1775, por um procurador daquele que haveria de ser o primeiro Bispo de Aveiro, D. António Freire Gameiro de Sousa, brando, flexível e blandicioso, e, ao tempo, lente de Direito na Universidade e que, como se deduz facilmente, não opôs a Sebastião José, por ambição e tibieza sombra da resistência do primitivamente convidado para a nova Mitra Aveirense, D. Frei Lourenço de Santa Maria e Melo, da bairradina Casa da Graciosa, na altura arcebispo-bispo do Algarve, que, nessa ocasião pelo menos, se mostrou inflexível na não anuência ao comprometedor convite do calculista Marquês, que não dava ponto sem nó.

Alegava-se, na petição remetida por D. José ao Sumo Pontífice para a criação do Bispado de Aveiro, que parecia esta flagrantemente conveniente – como se está hoje, em 1982, a comprovar superabundante e incontroversamente – e, em especial, e entre outros argumentos de mais ou menos ponderosa validade, a «disforme extensão do Bispado de Coimbra».

*   *   *

Não vem ao caso, todavia, nesta oportunidade, alargar com demasiadamente particularizados pormenores, a relevação dos utilíssimos serviços com que o Marquês de Pombal, tão cheio de méritos e pechas, contemplou Aveiro.

Há um século (e, pois, em 1882), no velho tempo em que a cidadezinha anfíbia e patrazanalmente ronceira apenas começava a emergir de um triste século de retrogradação populacional, económica e até urbanística, havia em Aveiro um verdadeiro escol intelectual. Desse modo, o primeiro centenário da morte do eminente e negregado Marquês de Pombal obteve a significativa e relevante expressão que a efeméride requeria – e merecia.

Na verdade, depois do Criador, que foi o grande arquitecto desta terra de tantas peculiaridades diferenciadoras; e de Luís Gomes de Carvalho, que, com a atilada biqueira do seu botim de esclarecido e proficiente major de engenheiros, nos trouxe, do mesmo passo que a água impoluída e revivescedora do oceano, a seiva ressurgente da nossa existência comunitária e, pois, como ele próprio escreveu, «um segundo dia de criação»; e desse sempre lembrado e inspirador José Estêvão, aveirense medular e prestimosíssimo – o Marquês de Pombal foi, e logo a seguir, o grande benfeitor e incentivador da estiolada vila que fez cidade e que procurou bem alicerçar para um rasgado porvir.

Então se editou na rotineira cidadezinha o número único de uma publicação a que foi dado o título Ao Marquês de Pombal – Homenagem do Grémio Moderno – 8 de Maio de 1882 – que hoje constitui um raro espécime da aveirografia. Presumo, aliás, que se ficou a dever ao incansável e inexaurivelmente suscitado aveirógrafo João Augusto Marques Gomes – que, subscreve precisamente um artigo relevando os serviços de Pombal a Aveiro.

Nele elaboraram as mais gradas figuras aveirenses que, de qualquer modo, cultivavam as letras, mais ou menos relevantemente. A par do citado, lembraremos, por exemplo, desde o então aplaudido comediógrafo e poeta apreciado, General Joaquim da Costa Cascais, ao ainda moço e muito promissor Jaime de Magalhães Lima.

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Selo comemorativo do «2.º centenário da morte do Marquês de Pombal».

E, para além desses, recordaremos Joaquim Simões Franco – que ainda conheci, de trato quase quotidiano, nos fins da avançada vida e que foi o primeiro compilador dos famosos discursos estevanianos – o jornalista cheio de experiência José Eduardo de Almeida Vilhena, que trabalhou em diversos diários, em funções de evidência, foi, durante largos anos, o redactor principal do prestigioso e influente Campeão das Províncias e que ainda também conheci no ocaso. E, talvez o mais jovem de todos os autores de artigos, Homem Cristo (Francisco Manuel Homem Christo) que nessa precisa data completou vinte e dois anos, e, já depois dos primeiros voos, noutros periódicos, entre os quais / 51 / o Século, de que. na fase inicial foi o encarregado da secção do estrangeiro e por vezes escrevia os fundos, e tinha na rua, há pouco, o semanário que o viria a celebrizar – o famoso Povo de Aveiro.

E, a par dele, supúnhamos, o sempre bem-humorado Padre Manuel Rodrigues Vieira ou Joaquim de Melo Freitas, aveirense medular, um e outro com méritos literários muito apreciáveis e ainda agora muito merecedores de apreço e louvor.

Para não mencionar outras figuras do distrito – não propriamente da cidade – cingir-me-ei, v. g., a Albano Coutinho, que foi o primeiro governador civil do distrito depois da implantação da República, e o Engenheiro Alexandre da Conceição que, sem demérito, antes com predicados reafirmados, não se arreceou de polemicar com o temido Camilo, o grande torturado de Ceide, que viria a confessar-se admirador do engenheiro tão aberto às musas e aos ideais do liberalismo. Nem sequer, o que me seria fácil mas suponho desnecessário, numerarei os colaboradores dessa já rara publicação comemorativa.

Neste momento, bastará talvez acrescentar que nesse mesmo ano centenário do Marquês de Pombal, o mesmo efémero e meritoriamente empreendedor Grémio Moderno (11) promoveu uma famosa exposição de arte e antiguidades de diverso carácter. E essa copiosa e excelente mostra do que de altamente valioso havia no distrito, mais em particular, na cidade de Aveiro e seu imediato alfoz, além da memória muito prestigiante, deixou um catálogo – um tomo descritivo, escrupulosíssimo, e outro de ilustrações – devidos ao inexcedido aveirógrafo Marques Gomes, cuja inspiração se pressente em todas as iniciativas aveirenses do género, e o cotadíssimo especialista Joaquim de Vasconcelos – que hoje constitui uma disputada, muito valorizada raridade bibliográfica.

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E, para me não alongar em excessivos pormenores monocordicamente fastientos, lembrarei que, pouco após a instauração empolgada do regime republicano na administração aveirense, foi dado, consagradoramente, o nome do Marquês de Pombal, à praça que ainda mantém essa denominação comprovadora do reconhecimento da geração que, no momento, serviu a nossa edilidade, com novas ideias e renovados entusiasmos, há pouco mais de seis decénios. À que, pela força das circunstâncias, teve de ficar uma praça, à qual Gostava Ferreiro Pinto Basto havia dado, depois da tempestade que desencadeou a nível nacional, com o corte do convento carmeliano de S. João Evangelista, deu a designação toponímica – também a exprimir reconhecimento, mas de evidente parcialismo político – de Avenida de Albano de Melo. Sim, exactamente aquele que um dia disse peremptoriamente que «Águeda é o País».

Retrato do Marquês de Pombal.

*  *  *

Não me parece de todo despropositado, se bem que com feição pronunciadamente apendicular e de surgimento fortuito, rebuscar nos pormenores com algum significado aveirense o Alvará Régio, que, no consulado pombalino, efectua a «geral reforma» do ensino, subsequente à expulsão dos jesuítas.

Prosseguiremos, pois, com o que nesse diploma legal, que figura como um dos mais meritórios padrões profícuos dessa opressiva época pombalina revolvedora e semeadora (12-1-1759) do então ainda Conde de Oeiras – que a ele tanto da sua atenção arguta e fixa consagrou «iluminadamente» – no que mais directamente concerne a Aveiro. E igualmente se não me afigura de todo inútil rasgar aqui, em simples esboço, algumas pistas para trabalhos futuros, mais minuciosos, sobre esse aveirense período de fomento da novel cidade, em declínio em variados aspectos.

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Como sobejamente se sabe, foram então criadas – ou em largas parcelas recriadas – 358 escolas secundárias e 479 escolas primárias, como se pode verificar, com minúcia e exactidão, pela Lista dos Professores Régios de Filosofia Racional, Retórica, Língua Grega e / 53 / Gramática Latina e dos Mestres de Ler, Escrever e Contar despachados por resolução de S. Majestade de 10 de Novembro deste presente ano de 1773...» (12).

Lá se inclui, e com a importância que o Marquês consagrava à sua protegida Aveiro, a Comarca que por impulso pombalino na novel cidade passara a ter a sua sede, logo no seguimento das prerrogativas alcançadas após o reconhecimento oficial e público da culpabilidade do notário, D. José de Mascarenhas, Duque de Aveiro, no atentado contra o soberano.

Ao mesmo tempo que se reconduzia no ministração de Filosofia Racional o professor Diogo José Fernandes, que já vinha de antes, designam-se, para o ensino de Retórica, Luís Pedro Pacheco de Almeida, e para o de Gramática Latina, a José Marques de Oliveira.

Estes para exercerem o seu magistério na própria recém-promovida a cidade. Mas, na mais dilatada área da comarca aparecem professores em Estarreja, Bemposta, Anadia, Ílhavo e Eixo.

E para ensinar a Ler, Escrever e Contar – e, assim, os conhecimentos gerais mais rudimentares – explicita-se, na longa lista, para a cidade de Aveiro, o professor Bernardo Baptista de Melo.

Aliás, na Lista de Terras, Conventos e Pessoas destinadas para professores de Filosofia Racional, Retórica, Língua Grega, Gramática Latina, e Mestres de Ler, Escrever e Contar /.../, de 12 Janeiro de 1778 (13) – e, assim, já no reinado, fundilhador e reaferidor do que fosse considerado excesso do inovador consulado pombalino – surgem modificações facilmente enxergáveis. Se os nomes dos professores de Gramática Latina e do mestre de Ler, Escrever e Contar se mantêm, não se verifica já outro tanto com a leccionação de Filosofia Racional. Esta passa a ficar a cargo, especificamente, e porque naturalmente aí haveria mais seguras garantias de ortodoxia, de «O Convento dos Religiosos da Ordem dos Pregadores» – facto similar, embora de variadas comunidades religiosas, ao que se regista na generalidade das localidades com requisitos idênticos. (14)

Nesse extenso rol aparece, igualmente alargado, o número de localidades que usufruirá da ministração das matérias mais correntes e de menor periculosidade doutrinal. Especialmente. na restrita área em que se ensinavam os rudimentos, mais ou menos frutuosamente, de leitura, escrita e aritmética elementares. Citarei, no que a essas se refere (15), Assequins, Brunhido, Ferreiros, Oliveira do Bairro, Paus, Serem, Sôza, Salreu e Trofa – todas na área, como é evidente, e aqui exclusivo de abarcamento lógico, da comarca de Aveiro, há menos de dois decénios, como referimos, instituída. Já anteriormente se citavam, para além destas povoações, Anadia e S. Lourenço do Bairro, que, entretanto, haviam apresentado e fundamentado as suas pretensões.

E, porque vem a talho de foice, do bem anotado trabalho a que me venho arrimando nesta claudicante digressão. transcrevo o seguinte breve período: (16) «Para o ensino da Língua Grega haveria 4 Professores em Lisboa, 2 em cada uma das cidades de Coimbra, Évora e Porto, e 1 em cada uma das outras cidades e vilas que fossem cabeças de comarca.»

Os interesses, e prosapiosas prerrogativas aveirenses, nesse aspecto ficaram salvaguardados, pelo menos durante algum breve trecho de tempo, para o futuro. Somente em Aveiro, na altura, não haveria – ou não se terá topado quem, com os dotes requeridos aqui quisesse fixar-se – pessoa com reconhecida competência para leccionar o clássico idioma helénico. E, não obstante na antiga vila haver nascido Aires Barbosa que ficou conhecido pela antonomásia de «Mestre Grego» e que é considerado como o introdutor, no século de quinhentos, do aprendizado desse idioma fundamentalmente civilizador, no nosso país. O lugar, pelo que tudo leva a crer, ficou e permaneceu vago. E, apenas há poucos decénios essa língua desvendadora voltou a ser ministrada, superficialmente embora, nos cursos complementares de letras do extinto liceu.

Observe-se que o recém-nomeado Director-Geral dos Estudos, D. Tomás de Almeida (17), em 28 de Julho de 1759, divulgou um convite aos interessados no magistério em qualquer das várias matérias a leccionar, a endereçar-lhe o seu requerimento, declarando o que pretendiam ensinar e se já haviam «exercitado o magistério. público ou particularmente, e o Bairro ou Ruas em que o praticaram, para que, tirando-se as informações necessárias de cada um e aproveitamento de seus discípulos, se os tiverem tido, se possa passar aos exames de capacidade e literatura, conforme a cadeira que pretendem.» (18) É transparente que ninguém, já domiciliado ou estranho à população local, se abalançou a essas, presumivelmente rigorosas, provas de aptidão científica e pedagógica.

F. J. dos Santos Marrocos, (19) que foi mestre régio de Filosofia, e, assim, estará ferido da asa, na sua acerva crítica aos docentes religiosos, de nomeação nos tempos de D. Maria, aponta defeitos graves. no domínio da pedagogia e das remunerações parquíssimas, e que chega a escrever: «... a educação da mocidade» levou a escolher para mestres indivíduos incapazes: alguns de nenhum préstimo entre eles, como empurrados para as cadeiras, desforrando-se finalmente com inválidos, como são os porteiros, homens vergados de anos e achaques». E conclui na sequência: ... «acrescendo a este número grande parte de leigos velhos que, com as chaves da dispensa, ou da portaria, exercitam o carácter de mestres régios de primeiras letras, depondo os sacos e mais trastes do peditório, excedendo a tudo isto certos Prelados fofos, levados de ufania, darem como de / 54 / empreitada a alguns criados, entre eles denominados sotainas, que além de certas obrigações ou serviços do convento, terão conta de ensinar os rapazes da Escola e os de Gramática Latina».

E o mesmo severo autor noutro passo, em 1799, dá-nos a seguinte notícia: «Da Língua Grega ficaram existindo somente duas (aulas) na Corte, com a de Braga, Évora e Porto: porém, ocupados em sujeitos seculares, abolidas todas as mais». Logo Aveiro ficou, a partir de 12 de Agosto de 1799, nesse aspecto também... a ver navios!

*   *   *

(A primeira parte deste trabalho foi a base de uma palestra pronunciada na reunião rotária de 8-11-1982).

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NOTAS:

(1) – El-Rei Junot – Ed. da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pg. 24.

(2) – Vide fI. a seguir, a nota.

(3) Ob.ª Cit.ª, pg. 25.

(4) – Ob.ª Cit.ª, pg. 26.

(5) – No precioso livro manuscrito existente na Junta Autónoma da Porto de Aveiro que, segundo o termo de abertura, «há de servir p.ª o Registo de todas ordens que se remetam para esta Superintendência e Vella» e que alude precisamente: ao «louvável zelo» de João de Sousa Ribeiro para abrir, à sua própria custa, uma vala que dê corrente e expedição interina às águas que invadam essa vila (de Aveiro) sangrando-a pela dita abertura até se meterem no mar). Subscrevia essa licença o ainda então (Fevereiro de 1757) apenas Sebastião José de Carvalho o Melo.

(6)O Cofre da Barra de Aveiro na função de Caixa de Empréstimos e Subsídios, do autor, pg. 16.

(7) Ob.ª Cit.ª.

(8) – Ob.ª Cit.ª

(9) – P.e João Gonçalves Gaspar, in A Diocese de Aveiro no século XVIII, pg. 9.

(10) – P.e João Gonçalves Gaspar, Ob.ª Cit.ª

(11) – Vd. o trabalho do autor Relance sobre uma prestimosa colectividade aveirense, 1971.

(12) – Colectânea Legislação Portuguesa, da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, 20 (1772 -1773), n.º 107,» citada pelo Prof. Joaquim Ribeiro Gomes, in O Marquês de PombaI e as Reformas do Ensino, Coimbra, 1982, pg. 26.

(13) – In Suplemento ao mapa dos Professores e Mestres das Escolas Menores, inserto na ob. cit, pg. 18.

(14) – Ob.ª Cit.ª, pg. 6.

(15) – Ob.ª Cit.ª, pg. 6.

(16) – Ob.ª Cit.ª, pg. 10.

(17)Ob.ª Cit.ª, pg. 10.

(18) – Cit.º nas pgs. 40 e 68 e seg.tes na Ob.ª Cit.ª, com referência ao trabalho Memória sobre o estado actual dos Estudos Menores, pgs. 523 a 526.

 

páginas 45 a 54

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