O Marquês de Pombal –
originariamente, como é mais que sabido, Sebastião José de Carvalho
e Melo –
com ter sido, como dizia o Épico, um
daqueles que da «morte se vão libertando», e, assim foi um alto
vulto perpetuamente projectado na História Nacional; foi uma
personalidade extremamente complexa. Cintilava desencontradamente,
conforme a face pela qual fosse contemplado. E era, desse modo, no
seu tempo, e é ainda hoje.
Com um lado reluzente de realizador
expedito, desenvolto, decidido, actualizado e actualizante, e outro
sombrio e pouco simpático, sobranceiro e voluntarioso, desumano e
cru, tirânico e impositivo, de fel e vinagre, calculista e
implacável nas suas revindictas e nos seus premeditados e sopesados
actos correntes de governação – de poder pessoal intransigente e
férreo, inquebrantável a toda a sorte de pesos, racionais ou de
sentimento que divergissem das suas pré-traçadas rotas. Pelo menos à
flor da pele, e visível do lado de fora.
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Raul Brandão
(1) – que procura dá-lo em corpo inteiro e é
muito menos faccioso a apreciá-lo do que Camilo,
(2) que dele traçou um retrato execrando –
escreve, no seu inconfundível estilo, a que a gente tanto se apega,
acerca dessa tão controversa figura, concreta e altaneira, de luz e
sombras, de notórios traços nítidos, imediatamente evidentes, e
simultaneamente cheia de esconsos, sombrios, de dificultosa análise
e medida, e, pois, de muito precárias quotas de possibilidade de
avaliação globalizada: É (no seu tempo, claro) a última figura do
passado. Mas, reparem, enche a época...»
Camilo escreve (pg. 258, ed. Lello &
Irmão, Editores, Porto, 1982, de «Perfil do Marquês de Pombal»)
na sua conhecida objurgatória, unilateral e enegrecedora: Ele (o
Marquês de Pombal) pela sua parte, desde 1759, (o ano exactamente em
que Aveiro foi elevada a cidade) inculcava também grande pavor.
Escultava-se de um esquadrão de dragões de Aveiro, com as espadas
nuas, e nunca se apeava da sege sem se amparar ao ombro do capitão
da guarda, que tinha o seu quartel em casa convizinha à do
ministro»... (Note-se a coincidência).
Passos adiante, o aguarelista
insuperado das laudas, que cheiram à maresia, que em «Os Pescadores»
consagrou à Ria de Aveiro, acrescenta, nessas impressionantes e
aprofundadas páginas em que se mascara de historiador, e não
consegue deixar-se invadir pela subjectividade onírica, definidora e
retrospectivamente, em «sentença de artista, certeira por intuição
do vidente:
«Um déspota precisa de um século de
aflição, e de artifício para dar alicerces à sua obra /.../. É
incoerente e sem dúvida esmagou, calcou, teve pedras no lugar do
coração. E, prossegue, algumas linhas depois: «É preciso separar a
dor da crueldade». (3)
/
46 /
E, a dar-me a mão consonante para a
circunstância em que nesta terra de liberdade, por excelência e de
reduzida memória, e neste ambiente fraternamente congregador,
rememoramos, reconhecidos e admiradores, um indiscutível tirano,
bom, lúcido e indelével encaminhador para mais folgadas rotas, vê,
de fora, e, ao que suponho certo: «EI Rei Banal – assim o
considerava num segundo plano da acção governativa ao D. José da
equestre estátua machadina – desconfia e engorda, e pergunto a mim
mesmo quantas vezes o espinhaço de ferro do Marquês se lhe fundiu
perante o olhar do dono. Bajula-o, só se sustenta à custa do poder
real, e se D. José, na sua imensa vaidade de homem gordo e balofo
(são os piores) chega a suspeitar que papel o futuro lhe destina, o
outro [Pombal] acabava no fundo de qualquer masmôrra – na pior.»
E remata-lhe o retrato, ao mesmo
tempo altaneiro e com todas as facetas mesquinhas, no ocaso
penumbroso físico e do poder desfrenado e inclemente: «Largam-no
gasto, na casa friorenta, a dois passos da morte. Está só – está
velho – está rico.» (4)
Tratavam-no, com fel acumulado em
deçenues, ao déspota que se prosternava defronte do trono para se
manter com todo o poderio, como ao leão moribundo.
* * *
Mas, verdadeira e concretamente, o
que me proponho, aqui e agora, referenciar, não é o Marquês de
Pombal inteiro e discutível, o compósito, e controverso, e notável
vulto que ficou inapagavelmente na história, como um dos de maior
projecção nacional, dos mais execrados e dos mais inspiradores.
Apenas e muito restritamente, uma alta figura poderosíssima apenas
numa das facetas positivas e consabidas, muito circunscrita e
miniaturizada da sua profícua acção pública – a do estadista
compreensivo e largo que, como raras individualidades, serviu Aveiro
e germinativamente contribuiu para o prestígio e o progresso da vila
em decadência.
E, multiformemente, como era
atributo acentuado da sua polifacetada personalidade, atento a todos
os sectores da incipiente actividade e das não desencadeadas
potencialidades do país – cujas rédeas do poder segurava com mão
firmíssima. Aliás, ninguém põe em dúvida de quanto Aveiro lhe ficou
credora, e a sua aguda e penetrantíssima visão, nem o seu rasgado
espírito, impositivo mas ininterrompidamente perscrutante, inovador
e antecipador. De um homem que via e concebia longe e largo, e mais
que qualquer dos contemporâneos, e que era, ao mesmo tempo – arejado
que viera do estrangeiro mais progressivo e que imbuíra de ideias
novas o provável conservador da pequena nobreza – um símbolo de
opressiva indiscutibilidade de poder absoluto, sem entraves,
concentrador, e tirânico, e desapiedado, e um semeador de ideias,
pelo menos aparentemente antagónicas das suas práticas governativas
de rumos indesviáveis, e rigorosamente impermeáveis a toda a sorte
de sugestões extrínsecas, por mais fundamentadas e legítimas.
Não iremos, pois, analisar, em toda
a sua extrema complexidade a figura altívola que mais grimpou nesse
século de setecentos, no qual o espírito estrangeirado rasgou as
nunca mais calafetadas brechas da nossa tantas vezes mal pilotada
barca nacional. No próprio também permeável e iluminado Marquês em
que tanta influência, mesmo inconsciente, se lhe infiltrou no tempo
em que estanciou na estranja.
Muito agudamente, quando o Marquês
já chega aos fundos da desgraça, Raul Brandão – esse impressivo
escritor, essencial em qualquer colectânea antológica sobre a Ria de
Aveiro – escreve ainda lapidarmente: «O velho comido de lepra,
comido de dores, é o passado inteiriço – tem grandeza.»
Vejamos, contudo, tão só, e
resumidamente, o que Sebastião José de Carvalho e Melo operou em
benefício de Aveiro – desta cidade anfíbia de débil memória e de
crescente ingratidão por quantos a serviram com proficuidade, desta
urbe, em descaracterização paralela do crescimento, que há cem anos
celebrou relevantemente, como adiante veremos, sumariamente, essa
inolvidável lembrança.
Se há juízos de serena
imparcialidade, objectiva e bem coada, eu que tive, há já não sei
quanto tempo, o privilegiado ensejo de contemplar vários projectos e
plantas que Sebastião José de Carvalho e Melo, nos inícios ou nos
acumes do poder, examinou penetradoramente, e rubricou, através de
uma carreira ascensional de entrega total voluntária e infatigável,
de aprazida opressão e progressivo poderio. Abstrairei, pois do que
desborda dessa figura gigântea, de odioso, de cru e de, porventura,
sádico, de aperreativo e de antipático.
Colocá-Io-ei, altíssimo na
perspectiva da minha avaliação aveirense, distante no tempo e nas
hipóteses de opressão, na sua antevisão arguta e na implementação
concreta e benévola da vila cheia de virtualidades. Verei, apenas,
nesta ocasião, sucintos e pouco mais que enumerados, os prestantes e
prestigiadores benefícios que carrilou para Aveiro – onde, acaso,
nunca terá estado, e compreendeu lucidamente na sua potencialidade
económica, e beneficiou com a largueza e a lucidez, que os recursos
do tempo lhe permitiam.
Começarei por aludir, ainda que mais
fugazmente do que o assunto requer, a um dos vitais valores da
região aveirense, e que está na fase mais positiva e alentadora da
nossa prosperidade possível e consequente do que se encontra visível
e é logicamente concludente. Como já Filipe II (o nosso primeiro dos
três
/ 47 / castelhanos que
usurparam a independência, e, sem dúvida, o mais lúcido), vira de S.
Lourenço do Escurial, (de onde dominava meio mundo) na sua amplitude
e subtileza de visão rasgadíssima, que Aveiro possuía o porto de mar
mais próximo da Meseta Ibérica. O Marquês de Pombal sentiu
compreensivamente e como um quase percursor o que essa comunicação
com o mar – mais tarde restabelecida, funcionalmente, num ponto,
aparentemente pouco indicado, do cordão litoral de dunas, pelo
benemérito, o quase salvador e recriador Tenente-Coronel de
Engenheiros Luís Gomes de Carvalho – representava em toda a
potencialidade e plenitude.
Patrocina, assim, o envio, para o
estudo dos problemas portuários aveirenses, intrincados e ariscos
aos mais dotados técnicos, dos mais qualificados especialistas de
que o país dispunha, nesse período de parturejamento – ainda que não
de realizações efectivas, e eficientes, e duradouras.
Há provas incontroversas da sua
benévola e impelidora protecção que Aveiro lhe despertara antes
mesmo das demonstrações de repulsa da generalidade dos aveirenses
pelo atentado de lesa-majestade.
(5)
Por aqui passaram, por sua
influência, vultos como o expoente máximo das matemáticas em
Portugal, o famoso lente da Universidade Monteiro da Rocha, e os
estrangeiros de maior qualificação chamados ao país. Desde o
susceptibilíssimo italiano Iseppi, aos franceses, muito
experimentados e sapientes François Hiacinte Polchet e Louís
Alincourt, secundados, por exemplo, por Francisco Pereira da Cunha,
de que existem ainda passos concludentes. E aí não esquecem os
esforços de João da Silva Ribeiro, para reabertura da barra errante
e precaríssima, desse aveirense de gema que representaria Aveiro, no
acto de agradecimento pela promoção a cidade, e tantos títulos
apresentava para lhe ser confiada essa missão honrosíssima.
O Marquês de Pombal, já aqui em
Aveiro, localizara com evidentes propósitos de fomento económico –
aliás mais que conhecidos e ensaiados em diversos pontos do país –
uma indústria de tecidos, entregando-a ao audaz e de experiência
comprovadíssima João Baptista Locatelli. Iludira-o, acaso, o
ostentador industrial, atraído pelas aparentes capacidades
(6). Não viria ao papel de implementação
da economia regional que se lhe confiava esperançadamente.
A região – pela consabida atitude de
franco e imediato repúdio que assumiu, sem hesitação, quando do
atentado, em 1758 (a 4 de Julho, precisamente, contra a vida, pouco
menos que sagrada nesse período de poder absoluto, contra o
soberano, frecheiro e sem cautas preocupações ilibatórias das honras
femininas. Tanto mais que D. José de Mascarenhas, então Duque de
Aveiro, e donatário da vila, morto pela rancorosa sanha pessoal
vindicativa do régio e sobranceiro soberano pela «graça de Deus» –
não possuía, como donatário, sanguessuguesco, de direito e de facto,
a mais pequena simpatia da ainda então vila de Aveiro – estava
notória e muito proveitosamente sob a aberta protecção do ainda
Conde de Oeiras.
Aveiro no século XVIII – Gravura cedida por Carlos Candal.
A propósito, abramos aqui um espaço,
rememorando o sermão – impresso no Porto, na oficina gráfica de
Francisco Mendes Lima, no ano de 1760 e, como é óbvio, com todas as
licenças necessárias do Santo Ofício, do Ordinário e do Paço – que o
M.to Rev.º P.e M.e Bernardo de S.
José Magalhães, dominicano e aveirense de nomeada e envergadura,
gongoríssimo, que regia mesmo, como lente proprietário, a cadeira de
Terça no Real Colégio de S. Tomás, de Coimbra, no Te-Deum,
repetimos, de Acção de Graças a Deus, que se celebrou, com a melhor
música sacra possível no acanhado meio provinciano, na Igreja Matriz
de S. Miguel, «solenizando a incomparável honra com que Sua
Majestade Fidelíssima /.../ quis fazer (até àquele dia 29 de
Setembro de 1759?) Nobre e notável Vila» e, a partir dessa data,
«Cidade da sua Augusta Monarquia, com todas as honras e privilégios
das antigas cidades deste Fidelíssimo Reino. A pomposa cerimónia
seria celebrada, com toda a pompa litúrgica, com a assistência do
Senado da Câmara, Comunidades Religiosas, Nobreza e Povo – os quais
haviam já participado num solene e luzido préstito comemorativo de
tamanhos motivos de júbilo.
Na primeira página do texto, aliás,
do sermão que recordamos, pode deduzir-se que o texto da
superlativante oração (repleta, ao gosto da época, de citações
latinas) foi publicado a expensas municipais. O Senado da Câmara
subscreve-a mesmo e exprime ao ainda, como já observámos, Conde de
Oeiras, penhoradamente, o desejo de que continue a dispensar a sua
protecção benéfica à cidade que tanto contribuíra para ser erecta.
O afamado e ditirâmbico pregador
aveirense considera os seus «fidelíssimos conterrâneos – e talvez
abranja na denominação a minha ufania de «cagaréu» visceral, como
águias de nascimento. E porque, desde o Augusto Imperador Romano
António Pio, Aveiro teria no seu brasão de armas «a Águia, que ainda
hoje – e hoje, nos dias que estamos a viver – se lhe conserva.»
E aponta, em algumas pinceladas
coloridas e entusiasticamente laudatórias, alguns dos títulos
históricos mais prestigiantes de Aveiro, dizendo, acaso, sem sólido
fundamento crítica e histórica: «Seus filhos têm sido famigerados em
todas as ciências, achando-se na Biblioteca Portuguesa mais de 30
escritores célebres, naturais de Aveiro; seis Bispos» (cinco dos
quais dominicanos). E cita dois apenas; omitindo, por exemplo, Frei
Jorge de Santa Luzia, o primeiro prelado católico que teve
autoridade apostólica no Oriente; e D. Fr. Miguel Rangel, que teve
acção de grande relevo nas ilhas do redor de Timor. Cita, repita-se,
apenas dois: D. João
/ 48 / Ferraz, «que sendo
primeiro Bispo de Ceuta, pela renúncia que «daquele Bispado tinha
feito o Excelentíssimo e Reverendíssimo D. João Manuel, Religioso do
Carmo, filho natural do Sereníssimo Rei D. Duarte» /.../; e D. Frei
Miguel de Bulhões e Sousa, /.../ Bispo do Grão Pará» (e, depois,
bispo de Leiria) que «ilustram os púlpitos de Portugal, e as
Cadeiras de Religião, com grande glória, e esplendor da família
Dominicana, sendo também chamado para aluno da Real Academia, em que
mostrou ser um dos Príncipes da Oratória» /.../.
(7)
E no seguimento dos títulos mais
honrosos de Aveiro (8),
acrescenta ainda:
«Nas campanhas tem tido a valentia
dos braços aveirenses grande glória em catorze Generais, e se viu,
entre admirações, o valor Lusitano na última guerra, nos famosos
Maias de Aveiro».
/ 49 /
Mas volvamos ao Conde de Oeiras, a
quem o ditirâmbico e laureado orador sacro chama em plena acepção do
qualificativo, nada menos que «invicto».
A recordação que deixou entre nós o
impiedoso Marquês – eu ia dizer intramuros e à roda deles, pois,
então, ainda se encontravam praticamente intactas as muralhas
mandadas reconstruir pelo Infante D. Pedro – foi francamente
lisonjeira e nunca de todo foram esquecidos os benefícios que aqui
operou ou estimulou.
O atentado que «a população de
Aveiro verberou indignadamente», qualificando-o – e, quiçá,
sentindo-o – como «um horroroso e sacrílego insulto». Na altura foi
assim mesmo designado com seu quê de subserviente, ainda que em
harmonia com um real sentimento maioritário. Os habitantes da vila,
rebelando-se e condenando inequivocamente o antipático e malquisto
donatário, solicitaram que a localidade «ficasse sob a tutela do
rei» (9)
Planta setecentista de Aveiro – Destacando-se as 7 igrejas
existentes na época dentro das muralhas da cidade. Desenho de J.
Gaspar. Gravura gentilmente cedida pelo Sr. Dr. Carlos da Costa
Candal.
Verificou-se exactamente na noite de
3 para 4 de Setembro, o «sacrílego» atentado contra a vida do
monarca. E apenas decorrido mais de um mês, a 13 de Outubro seguinte
– porque tudo ao tempo era cuidadosamente crivado – seriam tornadas
públicas as conclusões do processo, aliás, logo mandado instaurar,
rigorosíssimo, sem a mínima contemplação de indulgência, e com as
conclusões, repito bem mastigadas, antes de dadas ao público, que
convinha manter plácido. Aí era inculpado, com graves arguições, e,
acaso, mesmo muito provavelmente, sem a directa interferência do
implacável Marquês, o mal visto D. José de Mascarenhas, que os
aveirenses intimamente detestavam –que era invejoso, ínvio,
insidioso, calculista grão-mestre da Casa Real. Ao longo da ascensão
de Sebastião José – como resumida, e familiarizadamente denomina
Agustina Bessa Luís ao poderoso e altivo Marquês de Pombal – até às
cimeiras culminâncias do poder pessoal, de que usou e abusou, e a
quem, apenas, não seria posto no caminho senão um só inatingido – e
acaso inantingível – dos degraus da vida pública, o mais subido de
todos, obviamente
/ 50 / – o do sólio do
soberano absoluto, de direito divino, e de total intangibilidade
para quem não houvesse sido gerado num ventre reginável, na
circunstância um monarca desdenhosissimamente convicto dos seus
privilégios, altivo, donjuanesco e, ao que parece, mais medíocre que
renunciante às suas prerrogativas.
Haja, todavia, sido movido por
escondidos motivos pouco credores de simpatia e acaso condicentes
com o seu maquiavélico espírito
(10) – o que me parece pouco verosímil já que o inclemente
expulsador dos jesuítas, sem quaisquer motivos inconfessáveis, tomou
outras atitudes similares – a verdade é que, por sua influência e
por seu estímulo, foi criada, em 12 de Abril de 1774, pela bula do
Papa Clemente XIV Militantis Ecclesiae Gubernacula, a primeira
Diocese de Aveiro. A referida bula seria executada, volvido um ano,
em Abril de 1775, por um procurador daquele que haveria de ser o
primeiro Bispo de Aveiro, D. António Freire Gameiro de Sousa,
brando, flexível e blandicioso, e, ao tempo, lente de Direito na
Universidade e que, como se deduz facilmente, não opôs a Sebastião
José, por ambição e tibieza sombra da resistência do primitivamente
convidado para a nova Mitra Aveirense, D. Frei Lourenço de Santa
Maria e Melo, da bairradina Casa da Graciosa, na altura
arcebispo-bispo do Algarve, que, nessa ocasião pelo menos, se
mostrou inflexível na não anuência ao comprometedor convite do
calculista Marquês, que não dava ponto sem nó.
Alegava-se, na petição remetida por
D. José ao Sumo Pontífice para a criação do Bispado de Aveiro, que
parecia esta flagrantemente conveniente – como se está hoje, em
1982, a comprovar superabundante e incontroversamente – e, em
especial, e entre outros argumentos de mais ou menos ponderosa
validade, a «disforme extensão do Bispado de Coimbra».
* * *
Não vem ao caso, todavia, nesta
oportunidade, alargar com demasiadamente particularizados
pormenores, a relevação dos utilíssimos serviços com que o Marquês
de Pombal, tão cheio de méritos e pechas, contemplou Aveiro.
Há um século (e, pois, em 1882), no
velho tempo em que a cidadezinha anfíbia e patrazanalmente ronceira
apenas começava a emergir de um triste século de retrogradação
populacional, económica e até urbanística, havia em Aveiro um
verdadeiro escol intelectual. Desse modo, o primeiro centenário da
morte do eminente e negregado Marquês de Pombal obteve a
significativa e relevante expressão que a efeméride requeria – e
merecia.
Na verdade, depois do Criador, que
foi o grande arquitecto desta terra de tantas peculiaridades
diferenciadoras; e de Luís Gomes de Carvalho, que, com a atilada
biqueira do seu botim de esclarecido e proficiente major de
engenheiros, nos trouxe, do mesmo passo que a água impoluída e
revivescedora do oceano, a seiva ressurgente da nossa existência
comunitária e, pois, como ele próprio escreveu, «um segundo dia de
criação»; e desse sempre lembrado e inspirador José Estêvão,
aveirense medular e prestimosíssimo – o Marquês de Pombal foi, e
logo a seguir, o grande benfeitor e incentivador da estiolada vila
que fez cidade e que procurou bem alicerçar para um rasgado porvir.
Então se editou na rotineira
cidadezinha o número único de uma publicação a que foi dado o título
Ao Marquês de Pombal – Homenagem do Grémio Moderno – 8 de Maio de
1882 – que hoje constitui um raro espécime da aveirografia.
Presumo, aliás, que se ficou a dever ao incansável e
inexaurivelmente suscitado aveirógrafo João Augusto Marques Gomes –
que, subscreve precisamente um artigo relevando os serviços de
Pombal a Aveiro.
Nele elaboraram as mais gradas
figuras aveirenses que, de qualquer modo, cultivavam as letras, mais
ou menos relevantemente. A par do citado, lembraremos, por exemplo,
desde o então aplaudido comediógrafo e poeta apreciado, General
Joaquim da Costa Cascais, ao ainda moço e muito promissor Jaime de
Magalhães Lima.
|
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Selo
comemorativo do «2.º centenário da morte do Marquês de Pombal». |
E, para além desses, recordaremos
Joaquim Simões Franco – que ainda conheci, de trato quase
quotidiano, nos fins da avançada vida e que foi o primeiro
compilador dos famosos discursos estevanianos – o jornalista cheio
de experiência José Eduardo de Almeida Vilhena, que trabalhou em
diversos diários, em funções de evidência, foi, durante largos anos,
o redactor principal do prestigioso e influente Campeão das
Províncias e que ainda também conheci no ocaso. E, talvez o mais
jovem de todos os autores de artigos, Homem Cristo (Francisco Manuel
Homem Christo) que nessa precisa data completou vinte e dois anos,
e, já depois dos primeiros voos, noutros periódicos, entre os quais
/ 51 / o Século, de
que. na fase inicial foi o encarregado da secção do estrangeiro e
por vezes escrevia os fundos, e tinha na rua, há pouco, o semanário
que o viria a celebrizar – o famoso Povo de Aveiro.
E, a par dele, supúnhamos, o sempre
bem-humorado Padre Manuel Rodrigues Vieira ou Joaquim de Melo
Freitas, aveirense medular, um e outro com méritos literários muito
apreciáveis e ainda agora muito merecedores de apreço e louvor.
Para não mencionar outras figuras do
distrito – não propriamente da cidade – cingir-me-ei, v. g., a
Albano Coutinho, que foi o primeiro governador civil do distrito
depois da implantação da República, e o Engenheiro Alexandre da
Conceição que, sem demérito, antes com predicados reafirmados, não
se arreceou de polemicar com o temido Camilo, o grande torturado de
Ceide, que viria a confessar-se admirador do engenheiro tão aberto
às musas e aos ideais do liberalismo. Nem sequer, o que me seria
fácil mas suponho desnecessário, numerarei os colaboradores dessa já
rara publicação comemorativa.
Neste momento, bastará talvez
acrescentar que nesse mesmo ano centenário do Marquês de Pombal, o
mesmo efémero e meritoriamente empreendedor Grémio Moderno
(11) promoveu uma famosa exposição de arte
e antiguidades de diverso carácter. E essa copiosa e excelente
mostra do que de altamente valioso havia no distrito, mais em
particular, na cidade de Aveiro e seu imediato alfoz, além da
memória muito prestigiante, deixou um catálogo – um tomo descritivo,
escrupulosíssimo, e outro de ilustrações – devidos ao inexcedido
aveirógrafo Marques Gomes, cuja inspiração se pressente em todas as
iniciativas aveirenses do género, e o cotadíssimo especialista
Joaquim de Vasconcelos – que hoje constitui uma disputada, muito
valorizada raridade bibliográfica.
|
E, para me não alongar em excessivos
pormenores monocordicamente fastientos, lembrarei que, pouco após a
instauração empolgada do regime republicano na administração
aveirense, foi dado, consagradoramente, o nome do Marquês de Pombal,
à praça que ainda mantém essa denominação comprovadora do
reconhecimento da geração que, no momento, serviu a nossa edilidade,
com novas ideias e renovados entusiasmos, há pouco mais de seis
decénios. À que, pela força das circunstâncias, teve de ficar uma
praça, à qual Gostava Ferreiro Pinto Basto havia dado, depois da
tempestade que desencadeou a nível nacional, com o corte do convento
carmeliano de S. João Evangelista, deu a designação toponímica –
também a exprimir reconhecimento, mas de evidente parcialismo
político – de Avenida de Albano de Melo. Sim, exactamente aquele que
um dia disse peremptoriamente que «Águeda é o País».
|
Retrato do Marquês de Pombal. |
*
* *
Não me parece de todo
despropositado, se bem que com feição pronunciadamente apendicular e
de surgimento fortuito, rebuscar nos pormenores com algum
significado aveirense o Alvará Régio, que, no consulado pombalino,
efectua a «geral reforma» do ensino, subsequente à expulsão dos
jesuítas.
Prosseguiremos, pois, com o que
nesse diploma legal, que figura como um dos mais meritórios padrões
profícuos dessa opressiva época pombalina revolvedora e semeadora
(12-1-1759) do então ainda Conde de Oeiras – que a ele tanto da sua
atenção arguta e fixa consagrou «iluminadamente» – no que mais
directamente concerne a Aveiro. E igualmente se não me afigura de
todo inútil rasgar aqui, em simples esboço, algumas pistas para
trabalhos futuros, mais minuciosos, sobre esse aveirense período de
fomento da novel cidade, em declínio em variados aspectos.
Como sobejamente se sabe, foram
então criadas – ou em largas parcelas recriadas – 358 escolas
secundárias e 479 escolas primárias, como se pode verificar, com
minúcia e exactidão, pela Lista dos Professores Régios de
Filosofia Racional, Retórica, Língua Grega e
/ 53 / Gramática Latina e
dos Mestres de Ler, Escrever e Contar despachados por resolução de
S. Majestade de 10 de Novembro deste presente ano de 1773...»
(12).
Lá se inclui, e com a importância
que o Marquês consagrava à sua protegida Aveiro, a Comarca que por
impulso pombalino na novel cidade passara a ter a sua sede, logo no
seguimento das prerrogativas alcançadas após o reconhecimento
oficial e público da culpabilidade do notário, D. José de
Mascarenhas, Duque de Aveiro, no atentado contra o soberano.
Ao mesmo tempo que se reconduzia no
ministração de Filosofia Racional o professor Diogo José Fernandes,
que já vinha de antes, designam-se, para o ensino de Retórica, Luís
Pedro Pacheco de Almeida, e para o de Gramática Latina, a José
Marques de Oliveira.
Estes para exercerem o seu
magistério na própria recém-promovida a cidade. Mas, na mais
dilatada área da comarca aparecem professores em Estarreja,
Bemposta, Anadia, Ílhavo e Eixo.
E para ensinar a Ler, Escrever e
Contar – e, assim, os conhecimentos gerais mais rudimentares –
explicita-se, na longa lista, para a cidade de Aveiro, o professor
Bernardo Baptista de Melo.
Aliás, na Lista de Terras,
Conventos e Pessoas destinadas para professores de Filosofia
Racional, Retórica, Língua Grega, Gramática Latina, e Mestres de
Ler, Escrever e Contar /.../, de 12 Janeiro de 1778
(13) – e, assim, já no reinado, fundilhador e
reaferidor do que fosse considerado excesso do inovador consulado
pombalino – surgem modificações facilmente enxergáveis. Se os nomes
dos professores de Gramática Latina e do mestre de Ler, Escrever e
Contar se mantêm, não se verifica já outro tanto com a leccionação
de Filosofia Racional. Esta passa a ficar a cargo, especificamente,
e porque naturalmente aí haveria mais seguras garantias de
ortodoxia, de «O Convento dos Religiosos da Ordem dos Pregadores» –
facto similar, embora de variadas comunidades religiosas, ao que se
regista na generalidade das localidades com requisitos idênticos.
(14)
Nesse extenso rol aparece,
igualmente alargado, o número de localidades que usufruirá da
ministração das matérias mais correntes e de menor periculosidade
doutrinal. Especialmente. na restrita área em que se ensinavam os
rudimentos, mais ou menos frutuosamente, de leitura, escrita e
aritmética elementares. Citarei, no que a essas se refere
(15), Assequins, Brunhido, Ferreiros,
Oliveira do Bairro, Paus, Serem, Sôza, Salreu e Trofa – todas na
área, como é evidente, e aqui exclusivo de abarcamento lógico, da
comarca de Aveiro, há menos de dois decénios, como referimos,
instituída. Já anteriormente se citavam, para além destas povoações,
Anadia e S. Lourenço do Bairro, que, entretanto, haviam apresentado
e fundamentado as suas pretensões.
E, porque vem a talho de foice, do
bem anotado trabalho a que me venho arrimando nesta claudicante
digressão. transcrevo o seguinte breve período:
(16) «Para o ensino da Língua Grega haveria 4
Professores em Lisboa, 2 em cada uma das cidades de Coimbra, Évora e
Porto, e 1 em cada uma das outras cidades e vilas que fossem cabeças
de comarca.»
Os interesses, e prosapiosas
prerrogativas aveirenses, nesse aspecto ficaram salvaguardados, pelo
menos durante algum breve trecho de tempo, para o futuro. Somente em
Aveiro, na altura, não haveria – ou não se terá topado quem, com os
dotes requeridos aqui quisesse fixar-se – pessoa com reconhecida
competência para leccionar o clássico idioma helénico. E, não
obstante na antiga vila haver nascido Aires Barbosa que ficou
conhecido pela antonomásia de «Mestre Grego» e que é considerado
como o introdutor, no século de quinhentos, do aprendizado desse
idioma fundamentalmente civilizador, no nosso país. O lugar, pelo
que tudo leva a crer, ficou e permaneceu vago. E, apenas há poucos
decénios essa língua desvendadora voltou a ser ministrada,
superficialmente embora, nos cursos complementares de letras do
extinto liceu.
Observe-se que o recém-nomeado
Director-Geral dos Estudos, D. Tomás de Almeida
(17), em 28 de Julho de 1759, divulgou um
convite aos interessados no magistério em qualquer das várias
matérias a leccionar, a endereçar-lhe o seu requerimento, declarando
o que pretendiam ensinar e se já haviam «exercitado o magistério.
público ou particularmente, e o Bairro ou Ruas em que o praticaram,
para que, tirando-se as informações necessárias de cada um e
aproveitamento de seus discípulos, se os tiverem tido, se possa
passar aos exames de capacidade e literatura, conforme a cadeira que
pretendem.» (18) É
transparente que ninguém, já domiciliado ou estranho à população
local, se abalançou a essas, presumivelmente rigorosas, provas de
aptidão científica e pedagógica.
F. J. dos Santos Marrocos,
(19) que foi mestre régio de Filosofia, e,
assim, estará ferido da asa, na sua acerva crítica aos docentes
religiosos, de nomeação nos tempos de D. Maria, aponta defeitos
graves. no domínio da pedagogia e das remunerações parquíssimas, e
que chega a escrever: «... a educação da mocidade» levou a escolher
para mestres indivíduos incapazes: alguns de nenhum préstimo entre
eles, como empurrados para as cadeiras, desforrando-se finalmente
com inválidos, como são os porteiros, homens vergados de anos e
achaques». E conclui na sequência: ... «acrescendo a este número
grande parte de leigos velhos que, com as chaves da dispensa, ou da
portaria, exercitam o carácter de mestres régios de primeiras
letras, depondo os sacos e mais trastes do peditório, excedendo a
tudo isto certos Prelados fofos, levados de ufania, darem como de
/ 54 / empreitada a alguns
criados, entre eles denominados sotainas, que além de certas
obrigações ou serviços do convento, terão conta de ensinar os
rapazes da Escola e os de Gramática Latina».
E o mesmo severo autor noutro passo,
em 1799, dá-nos a seguinte notícia: «Da Língua Grega ficaram
existindo somente duas (aulas) na Corte, com a de Braga, Évora e
Porto: porém, ocupados em sujeitos seculares, abolidas todas as
mais». Logo Aveiro ficou, a partir de 12 de Agosto de 1799, nesse
aspecto também... a ver navios!
* * *
(A primeira parte deste trabalho foi
a base de uma palestra pronunciada na reunião rotária de 8-11-1982).
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NOTAS:
(1)
– El-Rei Junot – Ed. da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pg. 24.
(2)
– Vide fI. a seguir, a nota.
(3) –
Ob.ª Cit.ª, pg. 25.
(4)
– Ob.ª Cit.ª, pg. 26.
(5)
– No precioso livro manuscrito existente na Junta Autónoma da Porto
de Aveiro que, segundo o termo de abertura, «há de servir p.ª o
Registo de todas ordens que se remetam para esta Superintendência e
Vella» e que alude precisamente: ao «louvável zelo» de João de Sousa
Ribeiro para abrir, à sua própria custa, uma vala que dê corrente e
expedição interina às águas que invadam essa vila (de Aveiro)
sangrando-a pela dita abertura até se meterem no mar). Subscrevia
essa licença o ainda então (Fevereiro de 1757) apenas Sebastião José
de Carvalho o Melo.
(6)
– O Cofre da Barra de Aveiro na função de Caixa de Empréstimos e
Subsídios, do autor, pg. 16.
(7) –
Ob.ª Cit.ª.
(8)
– Ob.ª Cit.ª
(9)
– P.e João Gonçalves Gaspar, in A Diocese de Aveiro no
século XVIII, pg. 9.
(10)
– P.e João Gonçalves Gaspar, Ob.ª Cit.ª
(11)
– Vd. o trabalho do autor Relance sobre uma prestimosa
colectividade aveirense, 1971.
(12)
– Colectânea Legislação Portuguesa, da Biblioteca da Academia
das Ciências de Lisboa, 20 (1772 -1773), n.º 107,» citada pelo Prof.
Joaquim Ribeiro Gomes, in O Marquês de PombaI e as Reformas do
Ensino, Coimbra, 1982, pg. 26.
(13)
– In Suplemento ao mapa dos Professores e Mestres das Escolas
Menores, inserto na ob. cit, pg. 18.
(14)
– Ob.ª Cit.ª, pg. 6.
(15)
– Ob.ª Cit.ª, pg. 6.
(16)
– Ob.ª Cit.ª, pg. 10.
(17)
– Ob.ª Cit.ª,
pg. 10.
(18)
– Cit.º nas pgs. 40 e 68 e seg.tes na Ob.ª Cit.ª, com
referência ao trabalho Memória sobre o estado actual dos Estudos
Menores, pgs. 523 a 526. |