INTRODUÇÃO
Aveiro ocupa no contexto português
uma posição muito singular quanto à qualidade de vida que faculta
aos seus habitantes. Para isso contribuem múltiplos factores, alguns
deles puramente naturais, outros criados pelo homem ao longo dos
tempos. A acção humana sobre o ambiente da região tem sido muito
variada nas formas, nas intenções e nos resultados. A importância de
que ela se reveste resulta não só do que foi feito, bom e mau, mas
ainda do que foi omitido por ignorância, negligência ou simples
incapacidade.
Este artigo pretende pôr em
evidência alguns aspectos do ambiente aveirense com o objectivo
principal de convidar os leitores a pensarem neles, a formarem a sua
própria opinião sobre o que será mais urgente fazer, como fazê-lo,
com que meios e para que fins, na certeza de que é aos aveirenses
que compete defender e gerir o seu património ambiental, certos de
que eles serão os primeiros beneficiários ou vítimas das acções
implementadas.
AVEIRO – Uma visão superficial
A primeira impressão que um
forasteiro, como eu, colhe ao chegar à região de Aveiro é bastante
agradável. A cidade tem ainda uma dimensão humana. Colhe-se das
pessoas e das coisas uma sensação de familiaridade. Dão-se dois
passos e está-se no campo que se vê produtivo, esse campo que
penetra a cidade e com ela tão perfeitamente se mistura. E é só
necessário rodar meia volta para se poder extasiar a vista sobre a
imensidão de água e sal, no seu rendilhado tão típico, que é a Ria.
Ria que só o tempo nos revela na sua extrema complexidade e nos seus
profundos problemas. Um passeio um pouco mais longo põe em frente
dos olhos a vastidão de um oceano que, à escala humana, parece não
ter fim e sob os pés a areia fina de praias largas, onde se pode
ainda encontrar o isolamento que dá o repouso do espírito e o
descanso do corpo.
Cedo o forasteiro se apercebe que
Aveiro não é só a cidade e os seus arredores próximos. Existe à sua
volta uma extensa gama de outros centros susceptíveis de interessar
os amantes da natureza, da cultura e do recreio. Pense-se, por
exemplo, na beleza das serras do Caramulo e do Buçaco, na riqueza
dos seus museus, nos centros de repouso que são as termas do Luso e
Curia, todas eles acessíveis em actividades de fim-de-semana.
Embora sejam as belezas
paisagísticas e a natureza amável das pessoas as fontes das
impressões mais salientes que se colhem logo à chegada, outros
aspectos da região não tardam a fazer-se notadas. O extenso e
variado parque industrial salta aos olhos como um exemplo claro da
capacidade de iniciativa, do dinamismo, do apego ao trabalho e da
indomável força de vontade dos aveirenses, esse povo que, antes e
depois do seu turno na fábrica, tem coragem e descobre forças para
cultivar os campos com eficiência, e até carinho, obtendo produções
que são significativas no contexto nacional.
AVEIRO – Uma visão mais cuidadosa
Antes de ter tempo para visitar os
quatro ventos do distrito e obter dele um conhecimento de pormenor,
o forasteiro que chegou a Aveiro percorre a cidade e vai, pouco a
pouco, aprendendo o seu caminho pelos meandros das ruas e
identificando os aspectos que o interessam e os que lhe causam
preocupação.
Aqui, como em qualquer lado, há que
olhar a realidade física com um certo realismo. Seria despropositado
estar a meditar sobre as vantagens que se teriam colhido se a rua A
tivesse sido feita mais direita ou mais larga ou se a bairro B
tivesse sido localizado
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sítio e provido de um jardim ou de um parque mais ou menos extenso.
A superstrutura da cidade está fixa, presa ao chão, imóvel. E se é
certo que é possível ir corrigindo, no tempo, alguns dos seus
aspectos que se tornam mais abrasivos, basicamente a cidade física
está. O que vale a pena pensar é a utilização que se faz dela, é
imaginar aquelas acções, às vezes uns pequenos nadas, que tornam a
vida de todos os dias mais agradável, que fazem aumentar a
identificação das pessoas com a sua terra, que as fazem sentir-se em
casa mesmo enquanto percorrem as ruas.
É talvez dentro da perspectiva acima
esboçada que o forasteiro recebe o seu primeiro choque. A cidade é
pequena; a topografia pouco acidentada; o clima é em geral ameno.
Esta é, pois, uma cidade que convida a andar a pé. Mas as ruas são
estreitas; os passeios aparecem, por força disso, frequentemente
reduzidos a magras nesgas onde duas pessoas não podem cruzar; os
pavimentos estão habitualmente em mau estado. Nestas condições é
incompreensível para muitos de nós como continua a ser permitida a
circulação do automóvel por todos os cantos e vielas. Repare-se,
além disso, que uma fracção muito larga dos carros que se encontram
estacionados por todo o lado foram usados para percorrer uma
distância que, a pé, teria levado um quarto de hora. Repare-se ainda
que o espaço que esse estacionamento rouba faz falta não apenas aos
peões mas também àqueles que, pela natureza das suas actividades,
têm necessidade de usar o automóvel e de o estacionar por alguns
minutos aqui e ali os quais, por força das circunstâncias, se vêem
forçados a desrespeitar as regras de trânsito com estacionamentos
paralelos ou irregulares criando problemas à circulação do próprio
tráfego automóvel.
Festa no Canal Central, em Aveiro.
Mas há aqui também razões de
princípio sobre as quais o forasteiro, como o homem comum, não deixa
de meditar. Os automobilistas são em todo o mundo, e neste país em
particular, uma fracção pequena da população que usa a cidade. Por
que razão há-de pois essa minoria ter o direito de usar só para si
um património, neste caso as ruas, que são de todos? As cidades
nasceram e cresceram para as pessoas e foram concebidas à sua medida
para dar satisfação às suas necessidades. Essas necessidades não se
resumem à troca de bens; incluem ainda o convívio, o recreio, o
prazer simples de um passeio calmo, sem barulho, sem cheiros
agressivos, um passeio para conversar com os amigos, brincar com os
filhos ou gozar o sol. Quando o automóvel chegou, e não nos
esqueçamos que ele é um intruso muito recente, as pessoas cederam um
pouco da sua liberdade para poderem acomodá-lo entre elas mas nunca
lhes passou pela cabeça consentir que o automóvel lhes roubasse a
liberdade toda. E ainda há pior. A maioria das pessoas não sabe, mas
acontece que em ruas estreitas com densidade de tráfego apreciável
se acumulam no ar concentrações de certos produtos tóxicos emitidos
pelos /
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causar danos físicos permanentes, especialmente às crianças. Os
sintomas são subclínicos e é por isso que as pessoas os não notam;
mas efeitos como o aumento da agressividade e perturbações no
desenvolvimento do sistema nervoso estão provados e há fortes
suspeitas de que possa ocorrer atraso no desenvolvimento intelectual
senão mesmo abaixamento no coeficiente de inteligência.
Parece legítimo concluir-se, não
apenas pelo que acima se disse mas também por variadíssimos outros
argumentos que cada um não teria dificuldade em acrescentar, que o
problema, do tráfego automóvel em Aveiro, constitui um tópico
prioritário a ser tratado por quem tem a responsabilidade da gestão
do ambiente local.
A bicicleta é quase um símbolo de transporte regional entre o lar e
o trabalho.
Os problemas de tráfego nas grandes
metrópoles têm uma complexidade difícil de imaginar. O seu estudo
ocupa equipas de especialistas numa gama extensa de disciplinas e a
procura de soluções adequadas requer longo tempo e grande riqueza de
meios. A compatibilização da cidade com o automóvel, quando não é
feita logo na fase de concepção, como em Brasília, por exemplo, é um
exercício extremamente dispendioso tanto em termos de custos
materiais como de custos sociais. Contudo, não há razão para nos
sentirmos paralisados, aqui em Aveiro, com esse tipo de
dificuldades. Para começar, lembremo-nos de que as dificuldades e
custos não crescem linearmente com a população; esse crescimento é
exponencial.
Os problemas das cidades pequenas
são em geral relativamente fáceis de resolver se houver a coragem de
os encarar com determinação. Isso implica dois níveis de actuação.
Um, visando soluções a médio e longe prazo, traduz-se no planeamento
cuidadoso da utilização dos recursos do ambiente, tomando à partida
como parâmetros importantes os que vêm a traduzir a qualidade de
vida. É aqui que se vai decidir, sabendo bem porquê, onde as pessoas
vão viver e trabalhar e como se vão deslocar entre os dois sítios,
se forem diferentes. É também aqui que se vão estudar as
alternativas que se levantam como possíveis para um melhor
ordenamento da vida na cidade que já existe. Uma tal alternativa
para Aveiro seria, por exemplo, a criação de um conjunto de parques
de estacionamento periféricos, com fácil acesso do exterior, e um
adequado sistema de transportes públicos internos. Uma tal
alternativa apontaria para a localização dos terminais dos
autocarros de longo curso nesses parques e a introdução de
autocarros pequenos que os ligariam ao centro da cidade e entre si.
Aveiro parece, à primeira vista pelo menos, excepcionalmente
adequada para uma solução deste tipo. Dada a localização de algumas
zonas ainda livres talvez fosse possível construir os parques por
forma que uma fracção apreciável das pessoas pudesse, a partir
deles, alcançar a pé os seus postos de trabalho.
O outro nível de actuação visa obter
soluções a curto prazo. E aí há um extenso campo para manobra, sem
necessidade de grandes recursos. O uso de balizas
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móveis permite fechar ruas ao tráfego automóvel, a título
experimental, sem comprometer a implementação de soluções que
porventura se venham a revelar mais adequadas. A limitação do tempo
de estacionamento levaria muita gente, que efectivamente não
necessita de deslocar-se de carro para o seu local de trabalho, a
deixar o carro em casa. O mesmo efeito teria a progressiva redução
das áreas de estacionamento, nomeadamente as que se situam em ruas
mais estreitas, de maior circulação de peões ou de maior actividade
comercial. Soluções deste tipo têm sido adoptadas por todo o lado,
em cidades grandes e pequenas, no país e no estrangeiro, e os
resultados têm sido surpreendentes. Não se vê razão para que uma
política deste tipo não possa ser imediatamente iniciada em Aveiro e
não se acredita que os resultados que ela permitiria obter fossem
menos espectaculares do que os obtidos noutros sítios.
Quando o forasteiro já aprendeu a
pisar as ruas da cidade ele vai naturalmente procurando satisfação
palra os seus interesses culturais. Não o espera uma tarefa fácil.
Talvez apressadamente, talvez erradamente, ele começa por concluir
que caiu num deserto. E a primeira reacção é usar os seus
fins-de-semana para se escapar e procurar noutros sítios o bom
cinema, algum teatro, porventura uma galeria de arte ou um ciclo de
conferências com que possa saciar a sua fome. Alguns nunca recuperam
desse choque inicial e fazem dessas escapadelas um hábito que vão
mantendo pela vida fora, porventura alimentando lá no fundo a vaga
esperança de poderem um dia fugir ou buscando activamente uma saída
para um mundo mais do seu agrado. Outras, procurando melhor,
baixando talvez um tanto as suas exigências, lá vão descobrindo, de
vez em quando, uma ou outra iniciativa que lhes traz algum conforto.
O forasteiro sente uma certa
dificuldade em compreender uma tal situação. Aveiro é, só por si,
uma cidade média. Há dez anos atrás o seu distrito tinha mais de 500
mil habitantes. Não longe da cidade existem vários centros
populacionais com significado que olham para Aveiro como o seu
centro, que se consideram na sua esfera de influência económico e
cultural. Aveiro já tem uma universidade e um conservatório, além de
vários clubes desportivos e recreativos. Uma população de 60 a 80
mil habitantes é suficiente para manter uma vida cultural própria.
Tem-se, pais, a impressão de que Aveiro começa a ter condições para
assumir as responsabilidades que lhe cabem como centro que é e que
só lhe falta a determinação de fazê-lo. Este é um campo onde parece
haver lugar para uma intervenção directa dos gestores locais no
sentido de se tornarem os catalizadores de uma vida nova. Com um
programa não exageradamente ambicioso servindo de suporte a acções
bem organizadas poder-se-iam obter resultados muito satisfatórios.
Veja-se, por exemplo, a grande expansão que recentemente tiveram as
actividades gimnodesportivas após uma intervenção directa do
Ministério da Educação e Cultura.
Aveiro não será uma cidade muita
rica do ponto de vista arquitectónico; mas o que tem também não é de
todo insignificante. Cedo o forasteiro descobre o caminho até ao
Convento de Santa Joana e eu diria que, na maioria dos casos, não
regressa de lá desiludido. Aliás, esse é um bom exemplo da
importância que pode ter uma intervenção de natureza paisagística.
Não sei como terá sido no passado o enquadramento do Convento. Mas é
óbvio que a criação do jardim de um lado e do largo fronteiriço do
outro muito contribuíram para a valorização do monumento. E cada um
é livre de imaginar o efeito que não teria uma intervenção ainda
mais extensa que desse à Sé o destaque que ela merece e a
enquadrasse num plano maior conjuntamente com o Convento. Do mesmo
modo se não escapa à tentação de pensar no efeito que não teria
sobre a panorâmica geral da cidade um conjunto de acções que
pusessem em destaque outras peças do património artístico aveirense
que continuam escondidas em alguns pontos da cidade. A esse
propósito eu não queria deixar de referir o extraordinário interesse
histórico e cultural já não de peças isoladas mas de todo o conjunto
arquitectónico que é a zona velha da cidade em volta da praça do
peixe. As obras de renovação que têm vindo a ser executadas nessa
área nem sempre têm sido interpretadas na perspectiva da preservação
e valorização do ambiente. Essa é uma das zonas que o forasteiro,
mesmo quando totalmente desconhecedor da história da cidade, mais
aprecia pelo seu pitoresco e julga mais característica e mais
representativa de Aveiro. Deixa-se uma vez mais ao julgamento de
cada um a importância que não teria na qualidade de vida do
aveirense uma gestão dessa zona que a tornasse convidativa para o
passeio ao ar livre, a deambulação meditativa, a cavaqueira com os
amigos ou o simples respirar da brisa fresca que sopra da Ria.
Ao falar de novo na Ria lembrei-me
de que me havia proposto deixar-vos neste escrito alguns motivos de
meditação sobre o ambiente aquático que penetra e ladeia a cidade.
Aconteceu que me demorei, talvez demais, a escrever sobre outras
coisas. Daí que as minhas reflexões sobre esse outro ambiente fiquem
para melhor oportunidade. |