Acesso à hierarquia superior.

N.º 23/25

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

1977/1978

Algumas reflexões sobre a qualidade de vida em Aveiro

Por Aristides Hall

INTRODUÇÃO

Aveiro ocupa no contexto português uma posição muito singular quanto à qualidade de vida que faculta aos seus habitantes. Para isso contribuem múltiplos factores, alguns deles puramente naturais, outros criados pelo homem ao longo dos tempos. A acção humana sobre o ambiente da região tem sido muito variada nas formas, nas intenções e nos resultados. A importância de que ela se reveste resulta não só do que foi feito, bom e mau, mas ainda do que foi omitido por ignorância, negligência ou simples incapacidade.

Este artigo pretende pôr em evidência alguns aspectos do ambiente aveirense com o objectivo principal de convidar os leitores a pensarem neles, a formarem a sua própria opinião sobre o que será mais urgente fazer, como fazê-lo, com que meios e para que fins, na certeza de que é aos aveirenses que compete defender e gerir o seu património ambiental, certos de que eles serão os primeiros beneficiários ou vítimas das acções implementadas.

 

AVEIRO – Uma visão superficial

A primeira impressão que um forasteiro, como eu, colhe ao chegar à região de Aveiro é bastante agradável. A cidade tem ainda uma dimensão humana. Colhe-se das pessoas e das coisas uma sensação de familiaridade. Dão-se dois passos e está-se no campo que se vê produtivo, esse campo que penetra a cidade e com ela tão perfeitamente se mistura. E é só necessário rodar meia volta para se poder extasiar a vista sobre a imensidão de água e sal, no seu rendilhado tão típico, que é a Ria. Ria que só o tempo nos revela na sua extrema complexidade e nos seus profundos problemas. Um passeio um pouco mais longo põe em frente dos olhos a vastidão de um oceano que, à escala humana, parece não ter fim e sob os pés a areia fina de praias largas, onde se pode ainda encontrar o isolamento que dá o repouso do espírito e o descanso do corpo.

Cedo o forasteiro se apercebe que Aveiro não é só a cidade e os seus arredores próximos. Existe à sua volta uma extensa gama de outros centros susceptíveis de interessar os amantes da natureza, da cultura e do recreio. Pense-se, por exemplo, na beleza das serras do Caramulo e do Buçaco, na riqueza dos seus museus, nos centros de repouso que são as termas do Luso e Curia, todas eles acessíveis em actividades de fim-de-semana.

Embora sejam as belezas paisagísticas e a natureza amável das pessoas as fontes das impressões mais salientes que se colhem logo à chegada, outros aspectos da região não tardam a fazer-se notadas. O extenso e variado parque industrial salta aos olhos como um exemplo claro da capacidade de iniciativa, do dinamismo, do apego ao trabalho e da indomável força de vontade dos aveirenses, esse povo que, antes e depois do seu turno na fábrica, tem coragem e descobre forças para cultivar os campos com eficiência, e até carinho, obtendo produções que são significativas no contexto nacional.

 

AVEIRO – Uma visão mais cuidadosa

Antes de ter tempo para visitar os quatro ventos do distrito e obter dele um conhecimento de pormenor, o forasteiro que chegou a Aveiro percorre a cidade e vai, pouco a pouco, aprendendo o seu caminho pelos meandros das ruas e identificando os aspectos que o interessam e os que lhe causam preocupação.

Aqui, como em qualquer lado, há que olhar a realidade física com um certo realismo. Seria despropositado estar a meditar sobre as vantagens que se teriam colhido se a rua A tivesse sido feita mais direita ou mais larga ou se a bairro B tivesse sido localizado / 66 / em qualquer outro sítio e provido de um jardim ou de um parque mais ou menos extenso. A superstrutura da cidade está fixa, presa ao chão, imóvel. E se é certo que é possível ir corrigindo, no tempo, alguns dos seus aspectos que se tornam mais abrasivos, basicamente a cidade física está. O que vale a pena pensar é a utilização que se faz dela, é imaginar aquelas acções, às vezes uns pequenos nadas, que tornam a vida de todos os dias mais agradável, que fazem aumentar a identificação das pessoas com a sua terra, que as fazem sentir-se em casa mesmo enquanto percorrem as ruas.

É talvez dentro da perspectiva acima esboçada que o forasteiro recebe o seu primeiro choque. A cidade é pequena; a topografia pouco acidentada; o clima é em geral ameno. Esta é, pois, uma cidade que convida a andar a pé. Mas as ruas são estreitas; os passeios aparecem, por força disso, frequentemente reduzidos a magras nesgas onde duas pessoas não podem cruzar; os pavimentos estão habitualmente em mau estado. Nestas condições é incompreensível para muitos de nós como continua a ser permitida a circulação do automóvel por todos os cantos e vielas. Repare-se, além disso, que uma fracção muito larga dos carros que se encontram estacionados por todo o lado foram usados para percorrer uma distância que, a pé, teria levado um quarto de hora. Repare-se ainda que o espaço que esse estacionamento rouba faz falta não apenas aos peões mas também àqueles que, pela natureza das suas actividades, têm necessidade de usar o automóvel e de o estacionar por alguns minutos aqui e ali os quais, por força das circunstâncias, se vêem forçados a desrespeitar as regras de trânsito com estacionamentos paralelos ou irregulares criando problemas à circulação do próprio tráfego automóvel.

Clicar para ampliar.
Festa no Canal Central, em Aveiro.

Mas há aqui também razões de princípio sobre as quais o forasteiro, como o homem comum, não deixa de meditar. Os automobilistas são em todo o mundo, e neste país em particular, uma fracção pequena da população que usa a cidade. Por que razão há-de pois essa minoria ter o direito de usar só para si um património, neste caso as ruas, que são de todos? As cidades nasceram e cresceram para as pessoas e foram concebidas à sua medida para dar satisfação às suas necessidades. Essas necessidades não se resumem à troca de bens; incluem ainda o convívio, o recreio, o prazer simples de um passeio calmo, sem barulho, sem cheiros agressivos, um passeio para conversar com os amigos, brincar com os filhos ou gozar o sol. Quando o automóvel chegou, e não nos esqueçamos que ele é um intruso muito recente, as pessoas cederam um pouco da sua liberdade para poderem acomodá-lo entre elas mas nunca lhes passou pela cabeça consentir que o automóvel lhes roubasse a liberdade toda. E ainda há pior. A maioria das pessoas não sabe, mas acontece que em ruas estreitas com densidade de tráfego apreciável se acumulam no ar concentrações de certos produtos tóxicos emitidos pelos / 67 / escapes dos automóveis que são suficientes para causar danos físicos permanentes, especialmente às crianças. Os sintomas são subclínicos e é por isso que as pessoas os não notam; mas efeitos como o aumento da agressividade e perturbações no desenvolvimento do sistema nervoso estão provados e há fortes suspeitas de que possa ocorrer atraso no desenvolvimento intelectual senão mesmo abaixamento no coeficiente de inteligência.

Parece legítimo concluir-se, não apenas pelo que acima se disse mas também por variadíssimos outros argumentos que cada um não teria dificuldade em acrescentar, que o problema, do tráfego automóvel em Aveiro, constitui um tópico prioritário a ser tratado por quem tem a responsabilidade da gestão do ambiente local.

Clicar para ampliar.
A bicicleta é quase um símbolo de transporte regional entre o lar e o trabalho.

Os problemas de tráfego nas grandes metrópoles têm uma complexidade difícil de imaginar. O seu estudo ocupa equipas de especialistas numa gama extensa de disciplinas e a procura de soluções adequadas requer longo tempo e grande riqueza de meios. A compatibilização da cidade com o automóvel, quando não é feita logo na fase de concepção, como em Brasília, por exemplo, é um exercício extremamente dispendioso tanto em termos de custos materiais como de custos sociais. Contudo, não há razão para nos sentirmos paralisados, aqui em Aveiro, com esse tipo de dificuldades. Para começar, lembremo-nos de que as dificuldades e custos não crescem linearmente com a população; esse crescimento é exponencial.

Os problemas das cidades pequenas são em geral relativamente fáceis de resolver se houver a coragem de os encarar com determinação. Isso implica dois níveis de actuação. Um, visando soluções a médio e longe prazo, traduz-se no planeamento cuidadoso da utilização dos recursos do ambiente, tomando à partida como parâmetros importantes os que vêm a traduzir a qualidade de vida. É aqui que se vai decidir, sabendo bem porquê, onde as pessoas vão viver e trabalhar e como se vão deslocar entre os dois sítios, se forem diferentes. É também aqui que se vão estudar as alternativas que se levantam como possíveis para um melhor ordenamento da vida na cidade que já existe. Uma tal alternativa para Aveiro seria, por exemplo, a criação de um conjunto de parques de estacionamento periféricos, com fácil acesso do exterior, e um adequado sistema de transportes públicos internos. Uma tal alternativa apontaria para a localização dos terminais dos autocarros de longo curso nesses parques e a introdução de autocarros pequenos que os ligariam ao centro da cidade e entre si. Aveiro parece, à primeira vista pelo menos, excepcionalmente adequada para uma solução deste tipo. Dada a localização de algumas zonas ainda livres talvez fosse possível construir os parques por forma que uma fracção apreciável das pessoas pudesse, a partir deles, alcançar a pé os seus postos de trabalho.

O outro nível de actuação visa obter soluções a curto prazo. E aí há um extenso campo para manobra, sem necessidade de grandes recursos. O uso de balizas / 68 / móveis permite fechar ruas ao tráfego automóvel, a título experimental, sem comprometer a implementação de soluções que porventura se venham a revelar mais adequadas. A limitação do tempo de estacionamento levaria muita gente, que efectivamente não necessita de deslocar-se de carro para o seu local de trabalho, a deixar o carro em casa. O mesmo efeito teria a progressiva redução das áreas de estacionamento, nomeadamente as que se situam em ruas mais estreitas, de maior circulação de peões ou de maior actividade comercial. Soluções deste tipo têm sido adoptadas por todo o lado, em cidades grandes e pequenas, no país e no estrangeiro, e os resultados têm sido surpreendentes. Não se vê razão para que uma política deste tipo não possa ser imediatamente iniciada em Aveiro e não se acredita que os resultados que ela permitiria obter fossem menos espectaculares do que os obtidos noutros sítios.

Quando o forasteiro já aprendeu a pisar as ruas da cidade ele vai naturalmente procurando satisfação palra os seus interesses culturais. Não o espera uma tarefa fácil. Talvez apressadamente, talvez erradamente, ele começa por concluir que caiu num deserto. E a primeira reacção é usar os seus fins-de-semana para se escapar e procurar noutros sítios o bom cinema, algum teatro, porventura uma galeria de arte ou um ciclo de conferências com que possa saciar a sua fome. Alguns nunca recuperam desse choque inicial e fazem dessas escapadelas um hábito que vão mantendo pela vida fora, porventura alimentando lá no fundo a vaga esperança de poderem um dia fugir ou buscando activamente uma saída para um mundo mais do seu agrado. Outras, procurando melhor, baixando talvez um tanto as suas exigências, lá vão descobrindo, de vez em quando, uma ou outra iniciativa que lhes traz algum conforto.

O forasteiro sente uma certa dificuldade em compreender uma tal situação. Aveiro é, só por si, uma cidade média. Há dez anos atrás o seu distrito tinha mais de 500 mil habitantes. Não longe da cidade existem vários centros populacionais com significado que olham para Aveiro como o seu centro, que se consideram na sua esfera de influência económico e cultural. Aveiro já tem uma universidade e um conservatório, além de vários clubes desportivos e recreativos. Uma população de 60 a 80 mil habitantes é suficiente para manter uma vida cultural própria. Tem-se, pais, a impressão de que Aveiro começa a ter condições para assumir as responsabilidades que lhe cabem como centro que é e que só lhe falta a determinação de fazê-lo. Este é um campo onde parece haver lugar para uma intervenção directa dos gestores locais no sentido de se tornarem os catalizadores de uma vida nova. Com um programa não exageradamente ambicioso servindo de suporte a acções bem organizadas poder-se-iam obter resultados muito satisfatórios. Veja-se, por exemplo, a grande expansão que recentemente tiveram as actividades gimnodesportivas após uma intervenção directa do Ministério da Educação e Cultura.

Aveiro não será uma cidade muita rica do ponto de vista arquitectónico; mas o que tem também não é de todo insignificante. Cedo o forasteiro descobre o caminho até ao Convento de Santa Joana e eu diria que, na maioria dos casos, não regressa de lá desiludido. Aliás, esse é um bom exemplo da importância que pode ter uma intervenção de natureza paisagística. Não sei como terá sido no passado o enquadramento do Convento. Mas é óbvio que a criação do jardim de um lado e do largo fronteiriço do outro muito contribuíram para a valorização do monumento. E cada um é livre de imaginar o efeito que não teria uma intervenção ainda mais extensa que desse à Sé o destaque que ela merece e a enquadrasse num plano maior conjuntamente com o Convento. Do mesmo modo se não escapa à tentação de pensar no efeito que não teria sobre a panorâmica geral da cidade um conjunto de acções que pusessem em destaque outras peças do património artístico aveirense que continuam escondidas em alguns pontos da cidade. A esse propósito eu não queria deixar de referir o extraordinário interesse histórico e cultural já não de peças isoladas mas de todo o conjunto arquitectónico que é a zona velha da cidade em volta da praça do peixe. As obras de renovação que têm vindo a ser executadas nessa área nem sempre têm sido interpretadas na perspectiva da preservação e valorização do ambiente. Essa é uma das zonas que o forasteiro, mesmo quando totalmente desconhecedor da história da cidade, mais aprecia pelo seu pitoresco e julga mais característica e mais representativa de Aveiro. Deixa-se uma vez mais ao julgamento de cada um a importância que não teria na qualidade de vida do aveirense uma gestão dessa zona que a tornasse convidativa para o passeio ao ar livre, a deambulação meditativa, a cavaqueira com os amigos ou o simples respirar da brisa fresca que sopra da Ria.

Ao falar de novo na Ria lembrei-me de que me havia proposto deixar-vos neste escrito alguns motivos de meditação sobre o ambiente aquático que penetra e ladeia a cidade. Aconteceu que me demorei, talvez demais, a escrever sobre outras coisas. Daí que as minhas reflexões sobre esse outro ambiente fiquem para melhor oportunidade.

 

páginas 65 a 68

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte