Extractos de uma conferência realizada em 14 de Junho de 1930 pelo
Comandante G. R. da Rocha e Cunha sobre
Relance da História Económica de Aveiro, soluções para o seu
problema marítimo a partir do século XVII.
Quando o canal da barra esteve
situado entre a Torreira e o Almundazel, ainda próximo da foz do
Vouga, era muito sensível o declive do rio sobre o mar, na
baixa-mar, resultando deste facto que as cheias eram menores e de
menor duração, e pela mesma razão escavavam mais o leito do rio
dando-lhe capacidade para conter as enchentes. As profundidades do
canal principal da laguna assim o demonstravam no fim do século XVII,
mantendo-se ainda a de 39 palmos no rio do Almundazel e a de 36
palmos em frente da Senhora das Areias, local do canal da barra nos
séculos XV e XVI. A amplitude das marés oceânicas, pelo contrário,
dava em todas as posições que a barra ocupou, desde o Bico até à
Senhora das Areias, um grande declive do mar sobre a laguna e sobre
o Vouga, e portanto dava grandes marés salgadas, havia uma grande
diferença de altura entre a baixa-mar e preia-mar, que favorecia a
indústria salineira, e, como eram renovadas as águas da laguna duas
vezes em cada 24 horas, não podia aparecer a impaludismo.
Nas vazantes a grande massa de águas
do mar entradas nas enchentes, engrossada pelas águas do Vouga,
conservava o canal da barra largo e profundo.
Com este regímen de marés os campos
do Vouga estavam sempre enxutos e mantinham-se em nível superior ao
leito do rio e dos canais, os quais ainda tinham a profundidade
necessária para manter as águas em equilíbrio, transbordando apenas
nas ocasiões de cheias, e fecundando as terras. As sementeiras eram
feitas na primavera e as colheitas no outono, com toda a
regularidade, regímen essencial para garantir a produção. Durante o
avanço do cordão litoral até à Senhora das Areias, manteve-se sempre
este regímen de equilíbrio, favorável ao progresso de todas as
actividades e à expansão demográfica.
O tráfico marítimo, rapidamente
intensificado depois da tomada de Lisboa, deslocara-se do estuário
para a laguna; igualmente se deslocou a indústria salineira,
apropriando os terrenos lagunares em condições, no Bunheiro, Ovar,
Aveiro, Sá, Vagos, Ílhavo; a agricultura expande-se pelas ilhas do
delta e terrenos de aluvião, desenvolvem-se a pesca lagunar e a
marítima; a expansão demográfica era a consequência de tão
abundantes e variados recursos. O agrupamento urbano de Aveiro
crescera em importância; os seus pescadores obtiveram de D. Afonso
IV, por 1330, os primeiros privilégios e apareceram organizados em
confraria, a da Senhora da Alegria. Esta confraria constituía a
organização corporativa de pescadores e mareantes com o respectivo
estatuto; desde o Infante D. Pedro até ao seu estatuto de 1577, dado
no reinado de D. Sebastião, concedem-se, confirmam-se, renovam-se,
importantes privilégios e liberdades, que no conjunto constituem
providências de fomento de maior utilidade. É no reinado de D.
Sebastião uma força social que consegue impor-se ao Bispo de
Coimbra, obtendo uma provisão real que impede a ingerência da
autoridade eclesiástica na sua administração, afirmando clara e
expressamente a supremacia do poder civil.
Em 1380 as urcas de Aveiro
incorporaram-se na frota, que saiu do porto em defesa de Lisboa
ameaçada pelos castelhanos.
Em 1413 o Infante Regente funda o
convento de S. Domingos, e cinge a vila com muralhas. As condições
precárias de segurança da vida social, na idade média, aconselhavam
esta providência para as povoações abastadas. Em 1422 tinha 2769
habitantes; Vila Nova já surgira com as suas cabanas e casas
colmadas, e expandia-se gradualmente por campos e vinhas até Sá.
Pelos documentos da sua confraria
verifica-se que a pesca é activíssima no mar e na laguna; as medidas
proteccionistas de que é objecto tomam algumas vezes aspectos
interessantes.
A navegação estrangeira frequenta de
há muito o porto; assim o prova o embargo de navios franceses
ordenado por D. João II.
A produção dos campos do Vouga é de
30 000 moiros de pão; as quinhentas marinhas produzem 16 000 moios
de sal.
/ 70 /
No século XVI a população da vila
atinge 14 mil almas com 2500 fogos; os pescadores, mareantes e
construtores, habitam Vila Nova; há na vila numerosos comerciantes
estrangeiros, ingleses e flamengos, que vivem em bairro especial.
*
«Na sua «História de Portugal» o Sr.
António Sérgio define da seguinte maneira a função dos portos na
fase da vida da nacionalidade, que precedeu os descobrimentos:
«Os portos eram mais numerosos do
que hoje, e constituíam uma escala indispensável entre o Norte e o
Sul da Europa. Daí proveio a formação no litoral de uma burguesia
cosmopolita, oposta em mentalidade e interesses aos senhores rurais
do interior. O antagonismo entre a burguesia comercial marítima e os
senhores do interior teve uma participação importantíssima na
evolução da sociedade. As cruzadas do século XI promoveram o
desenvolvimento dos portos, e portanto a não incorporação de
Portugal no todo político a que presidia Castela.»
Desenvolvendo a sua teoria, o Sr. A.
Sérgio explica com muita clareza a decadência económica da nação nos
séculos XV e XVI, e a desorganização da sua vida nos séculos
seguintes.
A crise rural manifestava-se desde o
século XIV, as providências tomadas para fomentar o trabalho
agrícola poucos resultados tinham produzido. A nobreza, em vez de
acompanhar e dirigir o trabalho produtor, agravava a terra e as
indústrias com encargos parasitários; D. Diniz não consegue
convencê-la da dignidade e da nobreza do trabalho agrícola. Assim a
vida campestre e as profissões manuais assustavam e arruinavam os
indivíduos que as exerciam; as crises de subsistência eram
frequentes. Os campos despovoam-se para as terras do litoral,
entregando as suas energias ao tráfico marítimo, favorecido pela
situação geográfica do país e pelas necessidades económicas da
Europa do Norte.
A política de transportes venceu a
política de produção; este fenómeno dominou a vida económica da
nação, intensificou-se com os descobrimentos e conquistas, e
arruinou-a promovendo a crise que veio até ao nosso século.
Resumindo: o sr. António Sérgio
demonstra que não foi possível equilibrar a política de produção com
a política de transportes. A falta de comunicações terrestres deve
ter sido uma causa importante desta crise. De que serviria produzir
muito nas terras interiores, se o excedente do consumo local não
podia ser transportado para centros não produtores, ou de consumo
superior à produção? A mesma dificuldade impedia a colocação no
interior dos produtos do litoral, e dos que por via marítima afluíam
aos portos.
O fenómeno económico, tão
lucidamente exposto pelo Sr. A. Sérgio, tem causas muito complexas,
e entre elas a que acabamos de indicar.
É porém em plena
crise de produção nacional, no primeiro quartel do século XVI, que a
prosperidade de Aveiro atinge o seu máximo esplendor, e a destaca,
como excepção, no sombrio quadro da economia nacional. Arruinada a
indústria agrícola sucedem-se as crises de subsistências,
importam-se grandes quantidades de cereais e produtos
manufacturados, há grandezas e muita ociosidade, morre-se de fome, e
as riquezas do oriente não chegam para pagar o deficit, mas na
região aveirense a agricultura, a indústria salineira, a pesca, o
comércio, continuam prósperos, as sisas entram pontualmente no
Tesouro Real e há sobras, porque se mantinha o equilíbrio entre a
política de produção e a de transporte, explorando activamente as
riquezas da terra e do mar numa qualidade económica muito rural,
agrícola, de mentalidades diferentes, é certo, mas ligadas por
interesses comuns cimentados na facilidade das comunicações
lagunares e navais.
A vila vendia sal, bacalhau, peixe,
tecidos, esparto, aduela, ferro, papel, vidros, pólvora, linho e
consumia e transportava madeiras, cereais, legumes, vinhos e frutas.
O antagonismo de mentalidades só
explodia em conflitos irredutíveis, quando a catástrofe política e o
cataclismo da natureza estancarem todas as fontes de riqueza,
submetendo uns e outros à soberania devastadora da fome, um século
mais tarde, já no esvaecer dos fumos da Índia.
A influência decisiva das condições
físico-geográficas revela-se na persistência da actividade das
forças produtoras, quando a sua decadência já era visível por toda a
parte. Nem as pestes que flagelaram a região puderam deter este
progresso; em 1348 Aveiro ficou quase despovoada pela peste;
seguem-se as de 1469, 1470, 1485, 1524, uma das mais graves, de 1569
que deu origem a uma fome por falta de braços para as culturas, de
1579 a 1580 que produziu graves perdas, e as actividades locais
reconstituem-se e retomam a sua marcha ascendente.
Agora os factos comprovativos.
No movimento do porto de Aveiro de
1619 a 1624 figuram duzentos e oitenta navios ingleses, franceses,
flamengos e espanhóis, numa média de 46 navios por ano, dos quais
102 ingleses vindos directamente da Terra Nova com bacalhau, 81 de
várias nacionalidades com cereais provenientes da França, Flandres,
Alemanha e Holanda, e aparece já a importação de sardinha
/ 71 / salgada e arenques. A
exportação é representada apenas por 34 navios estrangeiros que
carregaram sal, menos de seis cada ano.
A navegação nacional tinha
desaparecido.
De 1683 a 1699 entraram apenas 245
navios estrangeiros, média anual de 14, dos quais 77 ingleses com
bacalhau da Terra Nova, o qual representava 50% das importações,
mantendo-se as mesmas características em relação à natureza das
outras mercadorias importadas.
Durante o século XVIII entraram 238
navios, média anual 2, 3; o tráfico é intermitente, há dois largos
períodos, um de cinco, outro de onze anos, em que não há entrada
alguma; desapareceu a importação do bacalhau e a exportação de sal
foi diminuta.
No fim do século XVII a burguesia
mercantil tinha desaparecido e os comerciantes estrangeiros tinham
abandonado a praça.
A ruína da agricultura, a ruína das
salinas, causará o empobrecimento geral; o mercado não tinha
portanto capacidade de absorção. O único comerciante inglês, que em
1685 ainda estava na vila, tinha mandado vir um navio de bacalhau, e
queixava-se de que não tinha comprador.
A decadência da pesca lagunar vinha
do tempo dos Filipes. Escasseara e encarecera o peixe; o almotacé
tabelava os preços, fixava o número de peixes de cada cambo, e
quantos deveriam ser grados.
Era porém o último recurso dos
pescadores; durante o inverno exploravam a laguna sem ordem; a
capitação da produção era insignificante, o que os obrigava a
emigrar para o Tejo, para o Douro, e outros rios, com os barcos e
redes, tendência emigratória que ainda hoje se mantém. Com precárias
comunicações com o mar, e impossíveis até durante largos períodos
exerciam de Junho em diante a pesca marítima saindo directamente da
costa para o mar com as artes de xavéga. Em 1789 Constantino Botelho
encontrou em Aveiro apenas dois barcos de pesca, e duas companhas de
xávega de 80 homens cada uma que trabalhavam de Junho a Fevereiro, e
emigravam depois para o Tejo; os filhos dos pescadores raramente
tomavam o modo de vida dos pais, preferindo qualquer outro.
Os campos permaneciam por largos
períodos alagados e incultos; poucas marinhas davam sal, de péssima
qualidade, muito negro, e o mercado externo repudiava-o; os da
terra, por economia, salgavam o peixe numa salmoira escura e infecta
onde apodrecia à espera de raro comprador.
A desvalorização da propriedade
rural é o melhor índice do empobrecimento geral; as freiras do
Lorvão deviam receber das rendas dos seus campos do Vouga em cada
ano, seis mil alqueires de milho e feijão; no fim do século XVIII
traziam arrendadas por sete mil e duzentos reis anuais aos ervagens
e juncos desses campos, sua única produção. Os mesmos campos tinham
produzido no fim do século XVI milhão e meio de alqueires de milho e
feijão.
Nos fins do século XVII, a freguesia
de S. Gonçalo tinha 370 fogos; só trinta viviam das suas fazendas,
sendo os restantes muito pobres e alimentando-se miseravelmente; a
freguesia da Vera-Cruz, tinha 455 fogos, pobríssimos na sua grande
maioria, andando os filhos a mendigar. As casas foram derruindo, e
raras vezes eram erguidas. A vila de Esgueira estava também em
ruínas, e os poucos habitantes de Aveiro, que podiam reparar as suas
habitações, aproveitavam delas os materiais, que não podiam
conseguir por outra forma. A miséria remendava-se com os despojos de
outra miséria.
No fim do século XVIII Aveiro tinha
900 fogos e 1400 casas e pardieiros em ruínas, e desabitados ou
abandonados; a desvalorização da propriedade urbana atingira o seu
limite máximo.
DAS CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA
CENTRALIZAÇÃO / REGIONALIZAÇÃO
Por J. Tiago de Oliveira
Pequeno Estado feudal da Ibéria
multiforme, Portugal resistiu à atracção centrípeta de Madrid e
manteve-se um Estado independente, mercê de vários factores ainda
insuficientemente estudados. Mas o tempo passa e de D. Afonso
Henriques a D. Manuel I, com altos e baixos, vai sendo tentada uma
centralização do Estado, com o abater das estruturas locais. À
expressão «meu Pai deixou-me rei das Estradas de Portugal» segue-se
uma acção centralizadora de que a revisão dos forais é sintoma
sistemático. Pode dizer-se que, desde então, o nosso País é um
Estado centralizado que os sucessivos governantes vão reforçando. A
quebra das liberdades municipais, das autonomias, foi de resto
analisada, entre outros, por Herculano.
E hoje, o nosso País é, tão somente,
uma estrutura profundamente centralizada, dependente de uma
/ 72 / oligarquia que decide,
muitas vezes, associada a oligarquias locais, em mútua convivência,
mal servida de caminhos e estradas, ao invés do que deveria ser,
quando muitas decisões, mesmo pequenas, têm de vir ao Terreiro do
Paço para ser homologadas, autorizadas, despachadas. Os poderes
reais das Câmaras Municipais, de quase todas, são diminutos, mal
servidas como são de autonomias financeiras, com ligações legais e
orçamentos dependentes do centro tentacular, multiforme,
disfuncional que é Lisboa. Correm parelhas, pois, a dependência
central e a pequena autonomia local, mormente no sector cultural:
veja-se, por exemplo, os locais onde há exibições de Arte, sessões
musicais ou palestras de tipo cultural, para não falar de
conferências científicas ou técnicas. Tirando Lisboa, Porto e
Coimbra mais ou menos habituais (a capital, a capital do Norte, a
Lusa-Atenas, no calão habitual), o que fica? Évora, Aveiro, Braga
e raramente outra capital de distrito ou cidade. De vilas, raro reza
a História.
Terra monocéfala (ou talvez
bicéfala, de profundas distorções regionais – compare-se com o
equilíbrio distributivo da Holanda e da Suíça, países da nossa
dimensão –
há que lhe dar nova vida, de modo a igualar as possibilidades de
todos os cidadãos, pois a centralização atrofia o interior,
concentrando quase toda a actividade no litoral, especialmente no
pequeno rectângulo de que Porto, Lisboa e Coimbra dão
aproximadamente os lados.
A resposta que todos dão é,
evidentemente, a regionalização ou, pelo menos, a desconcentração.
Porém, qual das regionalizações? A da Administração Interna ou a do
Plano? A da Igreja Católica ou a da Justiça? A da Educação ou a do
Exército? A do Saneamento Hídrico ou a da Agricultura? Parece que se
podem contar mais de uma vintena de regionalizações do Continente!
Todas motivadas unidireccionalmente, sob uma só perspectiva, tomando
tão-só algumas das muitas variáveis.
Apesar da centralização, todavia, na
Monarquia Absoluta existiam regiões homogéneas, com unidade
ecológica, agro-clímica, .económica, cultural. Eram as províncias. A
formação dos Distritos, que corre várias oscilações durante a
Monarquia Liberal, desfez essas unidades que, em geral, apenas
subsistem na linguagem: é-se minhoto ou ribatejano, transmontano ou
algarvio, beirão ou alentejano. Ninguém se define num distrito,
excepto talvez Aveiro.
Parece, pois, de tentar, de novo,
definir unidades homogéneas do País, com estruturas funcionais,
facilitando transferências de funcionários e indústrias, servindo-as
de eixos de transporte, de modo a refazer a vida local e regional
destruída, tornar dinâmicas áreas em morte lenta, submetidas à
atracção das cidades.
É pois de crer que, nesta linha, se
deve tentar uma análise multidimensional, não sendo difícil fixar as
regiões/províncias às quais se possa atribuir capacidades de
decisão, controladas equilibradamente, para evitar propensões
excitadamente regionalistas.
Por isso, é evidente que uma
regionalização tem de ter dimensões experimentais, procurando lenta,
mas metodicamente o caminho de reviver das comunidades integradas,
moderando as cidades dominadoras, procurando uma vida efectiva para
todos, tentando legislar de modo a incentivar o equilíbrio
democrático necessário.
Talvez seja, pois, de fazer reviver
a fórmula dos Altos Comissários, agora para zonas de intervenção,
com poderes alargados, podendo conduzir de modo global e integrado
os problemas da área. Três áreas de intervenção parecem surgir
naturalmente, contemplando uma amostra de zonas de comportamentos
sócio-económico-culturais homogéneos, mas diferentes: o
Nordeste, Aveiro e o Algarve. Nestas zonas, definidas as
autonomias administrativa e financeira necessárias, em passos
pequenos, mas certos, pode ensaiar-se o modo de regionalizar, a fim
de desconcentrar poderes e desenvolver as áreas em causa.
Por que não se faz? Daqui a anos já
haveria ideias eficazes, experimentadas, permitindo melhorar a vida
de todos os portugueses, aliviando a pressão distante, mas forte, do
poder central, com a descentralização das escolas e do comércio, da
agro-pecuária e das pescas, da administração e da indústria, sem
perder a ideia de que o País é total. E, ao mesmo tempo, dar maiores
«forais» aos Municípios, excitando as actividades autónomas,
refazendo comunidades que o tempo destruiu parcialmente. Eis uma
tarefa urgente que se não pode adiar.
LUTA,
27 de Maio de 1978 |