|
Comove-me profundamente
a manifestação afectuosa que acabam de me fazer.
Comoveram-me as palavras
do senhor Morais Sarmento, sinceramente o digo.
Não me lembrava já da
sua recente camaradagem.
Mas no encontro tive um
grande prazer.
Comovem-me também, mas
por maneira diversa, as palavras do Dr. Mário Sacramento.
Com todo o gosto, fazer a minha história desta maneira,
creio estar ouvindo antecipadamente o meu elogio fúnebre.
E na verdade choca-me.
Porque ainda me sinto vigoroso para interpretar, aqui, os
sentimentos do povo e os sentimentos do povo de Aveiro numa
das suas maiores datas. |
Quero agradecer também ao
público que me escuta e no meio do qual vejo amigos que vieram
de longe para ouvir-me, agradecer-lhes comovidamente a honra que
me dão. E receio muito desiludi-los, talvez eu não seja a pessoa
mais própria para falar hoje aqui, mas, velho que sou, cansado,
atribulado por doenças e aflições, entendi, que convidado pela
comissão promotora das homenagens e da celebração da data do 16
de Maio, era meu dever comparecer aqui, era meu dever em nome
dos Liberais percorrer, em nome dos democratas portugueses vir
aqui homenagear a cidade de Aveiro. E aqui estou; sem prazer,
digo. Já não me vangloria ver uma multidão com sede das minhas
palavras. Mas sinto, sim, a alegria de quem cumpre um dever e,
velho embora, vem aqui, fiel à sua velha fé de democrata,
afirmá-la mais uma vez com todo o vigor de que é capaz.
Senhor Presidente, Senhores
membros da Mesa, minhas senhoras e meus senhores.
Quando, a 16 de Maio de
1828, se sentiram os primeiros sintomas do absolutismo
/
50 / no
governo de D. Miguel, estalou uma revolução em Aveiro, que,
agora de desastre em desastre, logo de triunfo em triunfo, e, no
intervalo, pisando um calvário de aflições, tragédia, horror e
lances de epopeia, acabou por implantar, com a Convenção de
Évora-Monte, o liberalismo em Portugal e por um século.
Muitos dos que então
entraram nessa revolução vieram a pagar com a cabeça no
cadafalso, com a perda de bens, com a prisão, com o sofrimento,
com a miséria, o crime de terem sido fiéis às suas ideias e de
lutar por elas. Foi pois desta terra regada pelo sangue e as
lágrimas dos mártires, foi deste céu onde ainda hoje drapeja a
bandeira da liberdade, que partiu o movimento de resgate que
moldou uma face nova a Portugal e para todo um século.
Vejamos rapidamente como se
passaram os factos. Falecido D. João VI, em 1826, passado mês e
meio, D. Pedro, então Imperador do Brasil, renunciou à coroa de
Portugal na pessoa de sua filha D. Maria da Glória e outorgou
uma carta constitucional a Portugal na intenção de nomear
regente seu irmão D. Miguel, que casaria coma princesa D. Maria
desde que jurasse a Carta. Estava D. Miguel em Viena de Áustria,
jurou a Carta, jurou a Carta não obstante já então conspirar
contra as intenções de seu irmão. Passado pouco tempo, celebrava
os esponsais com sua sobrinha, que era representada pelo Barão
de Vila Seca. No ano seguinte veio para Portugal. Reunidas as
Câmaras no Palácio da Ajuda, que ele elegera para sua
residência, jurou novamente e solenemente, perante as Câmaras,
fidelidade à Carta, declarando, palavras textuais, que
reconhecia a legitimidade de D. Pedro IV e de sua sobrinha D.
Maria como soberanos legítimos de Portugal. Não obstante,
passados poucos dias deste juramento solene e público, ele
começava a trair a sua palavra e, imediatamente, tratou de
deitar por todos os meios mão do Poder. Demitiu da administração
pública todas as pessoas que ocupavam lugares importantes, que
fez substituir, transferiu oficiais, nomeou novos comandantes
para os corpos, instaurou a censura, aumentou em quantidade
enorme a polícia e, também imediatamente, inaugurou um sistema
de repressão, o mais violento de que há memória na História de
Portugal, contra os seus inimigos políticos.
Volvidos dias, ele
convocava, suprema irrisão, em nome da Carta Constitucional, mas
com desprezo das Câmaras, que eram a base do regime, os velhos
estados do reino, com a indicação, com a exigência de que só
fossem nomeados representantes para essas novas Câmaras pessoas
escolhidas a dedo mas que fossem inteiramente tementes a Deus e
obedientes ao trono. É claro, reunidos os três estados, sob o
peso da ameaça e pelo suborno, e escolhidos a dedo os menos
capazes mas os mais subservientes, os mais falhos de carácter,
podia adivinhar-se o que havia de sair daquela Câmara. E saiu,
em Julho de 1828, a anulação da Carta e a escolha do Sr. D.
Miguel I para Rei absoluto.
Já então, era tamanha a
atmosfera de terror no país, desencadeavam-se tão
precipitadamente os desmandos contra os liberais que as
consciências livres, isentas, puras, que abundavam no país,
começaram a sentir-se no desejo e na necessidade de reagir. É
claro, como sucede sempre àqueles que ligam, que unem à intuição
o medo, começaram a fugir para o estrangeiro. Mas, as
consciências mais ardentes sentiram a necessidade de lutar.
Faltava-lhes o mando, faltava-lhes uma consciência mais ardente
que fosse capaz de unir as vontades e lançá-las na acção. Esse
homem existia e habitava aqui próximo, em Verdemilho, chamava-se
Joaquim José de Queirós, era um antigo desembargador da Baía e
então membro das Câmaras que iam ser abolidas.
Joaquim José de Queirós foi
o verdadeiro chefe da revolução e foi um verdadeiro chefe da
revolução porque encontrou em Aveiro o ambiente eminentemente
propício, encontrou magníficos auxiliares e uma sociedade que
correspondia inteiramente aos seus anseios e às suas directivas.
Não que não houvesse aqui
legitimistas, mas os homens mais activos, as consciências mais
ardentes, as vontades mais decididas e capazes de sacrificar-se
pertenciam ao partido liberal. Contava-se entre eles João de
Morais Sarmento, que era então sargento de Caçadores 10 mas uma
destas almas devotadas e ardentes que se tornou imediatamente o
auxiliar de Joaquim José de Queirós.
Eu não lhes vou fazer a
história da Revolução. E a história das lutas liberais, que
levam seis anos, não se metem, não se encerram no espaço de uma
conferência, que seis anos de lutas épicas, de miséria, de
tirania, de sofrimento, de exílio, de derrotas, de vitórias, que
tantas se desenrolaram durante este período. Vou, sim, dar-vos
uma ideia muito rápida do que foi esse movimento. A revolução de
16 de Maio fracassou nos primeiros dias. E fracassou, porquê? É
que ninguém pode lutar com um vulcão, ou com um terramoto, e o
que de Lisboa subiu para o Norte não eram as forças de um
exército, eram a lava incandescente, a lava formada por todos os
instintos ferozes do homem primitivo, mas que se tinham
amontoado no coração das massas ignorantes envilecidas por três
séculos de absolutismo. As forças liberais tiveram que recuar
para a Galiza, aí embarcar para a Inglaterra, da Inglaterra para
a Terceira e da Terceira voltaram a Portugal para desembarcar em
Julho de 32 nas Praias de Pampelido.
O que foi esse filme
movimentado e dramático
/ 51 /
conta-o um dos contemporâneos e testemunha dos acontecimentos, o
historiador Luz Soriano. Filme dramático, com efeito, em que
aparece o êxodo de milhares de homens, guiados por uma figura
extraordinária, destas que lhes peço para guardarem na vossa
memória, o Major Sá Nogueira, mais tarde mutilado no cerco do
Porto, mais tarde Marquês de Sá da Bandeira. Homem que faz honra
à Humanidade e aos Portugueses, porque ele foi a alma, a
consciência, o mando que levou estes milhares de homens para o
êxodo através de dificuldades terríveis e que pôde conservar a
unidade dessa falange que veio a ser o núcleo mais importante de
sete mil e quinhentos bravos do Mindelo.
Nas páginas de Luz Soriano
aparecem, com pormenores por vezes fastidiosos mas sempre com
perfeita lealdade e fidelidade, os acampamentos álgidos sob a
chuva torrencial nas montanhas fronteiriças da Galiza. À avareza
dos aldeões que se aproveitaram da miséria dos soldados para
lhes vender a peso de oiro o pão que eles comiam, a prepotência
das autoridades espanholas, que abusaram infamemente da situação
dos emigrados, vendidos como estavam a D. Miguel para roubar, é
à palavra, ao regimento não só a caixa da tropa mas os próprios
haveres pessoais.
E depois, o embarque de
25.000 homens famintos, esquálidos, cobertos de farrapos e de
piolhos, para a Inglaterra.
A vida no célebre barracão
de Plymouth, barracão à beira-mar, destinado apenas a guardar
madeira de construção naval, em cujos baixos entrava a maré e no
primeiro andar se amontoavam e dormiam, quando dormiam, os
emigrados portugueses, mergulhados na neblina do mar e ao som
dos ventos que entravam pelas frinchas das tábuas mal unidas do
barracão e levantavam dentro, com as palhas do chão, com a
neblina, no mesmo torvelinho ardente, as recordações das insones
imagens da pátria que eles entreveriam ao longe através das
tábuas da forca.
Pouco depois, renascia a
esperança, formavam-se novos batalhões, os batalhões embarcavam
para a Terceira, repeliam o assalto da esquadra miguelista,
conquistavam todo o arquipélago dos Açores.
Depois, D. Pedro, que
renunciara o trono Imperial do Brasil, vem à Terceira tomar o
comando das tropas e formar seu Governo, o seu Governo para a
qual entra imediatamente um nome que todos nós devemos guardar
também na memória com veneração: o de Mousinho da Silveira.
7500 bravos do Mindelo
saltam a 7 de Julho de 32 nas praias de Pampelido. Conta-se que
muitas deles se lançaram por terra, chorando, para beijar a
areia da costa, a areia, o chão da pátria portuguesa.
Eu compreendo o que é essa
emoção e compreendo muito mais e todos o compreendemos quando
soubermos o que entretanto se passara em Portugal. Porque, se os
emigrados tinham sofrido, os que ficaram cá sofreram mais. A
reacção mais brutal, repito, que jamais se desencadeou em
Portugal, acirrada pelos sermões de maus padres e maus frades
desencadeou-se sobre os liberais, desencadeou-se em primeiro
lugar, de maneira oficial. A célebre alçada do Porto começou a
julgar os homens que tinham entrado na revolução. Foram muitos
condenados à morte e a 7 de Maio foram justiçados os dez
primeiros, pouco depois mais alguns.
Rezavam as sentenças que
esses homens, cujo crime era de ter ideias próprias políticas
contrárias ao Governo absolutista e ter lutado por elas, esses
homens perderiam todos os direitos, honras e privilégios, seriam
levados pela cidade com baraços e pregão e depois conduzidos à
forca onde seriam enforcados para depois lhes cortarem a cabeça
e as cabeças serem espetadas num tronco nos lugares onde havia
sido praticado o delito.
Dessas cabeças couberam seis
ao distrito de Aveiro, uma delas foi a do desembargador Gravito,
a outra a de João Morais Sarmento. No dia 7 de Maio, pois, no
Porto, deu-se o suplício dos condenados. Foram levados pela
cidade, as tropas abriam e fechavam o cortejo, no meio iam eles
vestidos com a alva e o capucho do suplício e embrulhados na
cinta pelo cordão com que haviam de ser enforcados. Junto ia a
tumba ou as tumbas onde os restos mortais haviam de ser
conduzidos. Os frades salmodeavam de uma maneira lúgubre e atrás
do povo entoavam o miserere. Foram assim conduzidos para
a Praça Nova, para duas forcas e, durante 3 horas, durou este
espectáculo. Os pobres condenados, vivos ou agonizantes, eram
arrastados pelas escadas para a forca; aí o carrasco
embrulhava-os rapidamente no capucho, traçava-lhes a corda ao
pescoço, saltava sobre eles, eram arrastados para baixo,
decapitava-se-lhes a cabeça.
E, Senhores e Senhoras,
havia homens que riam, mulheres estavam à janela e davam vivas a
D. Miguel e à santa religião.
Houve homens, houve
portugueses que misturaram o nome de Deus com este crime. Mais
uma vez a religião assistiu ao Estado para exercitar os piores
crimes da tirania.
Não parou por aqui o horror.
As cabeças desses homens foram levadas quatro para Aveiro, duas
para a Feira e uma para Albergaria-a-Velha. Em Aveiro, quiseram
alguns miguelistas que a cabeça de João de Morais Sarmento fosse
espetada num pinheiro em frente da casa onde morava sua mãe.
Houve alguns
/ 52 /
legitimistas que guardavam ainda um pedaço de humanidade
no coração que se opuseram a isso.
As lojas, as casas na
cidade, tinham fechado. Foi preciso ir buscar carpinteiros à
força para preparar os madeiros onde se havia de espetar as
cabeças. Mas, em Albergaria-a-Velha, a cabeça de um dos
justiçados foi posta em frente da casa dos pais. E eu tremo, eu
sinto o arrepio nas carnes, eu sinto-me envergonhado de terem
sido portugueses capazes desta infâmia. (Palmas)
Não parou por aqui o
suplício dos Liberais que ficaram em Portugal. Eram perseguidos
a cacete nas ruas, eram levados para a prisão, na prisão
violentados de toda a forma e havia sempre um padre ou um frade
incitando, pedindo que os liberais fossem levados para a forca e
mais ainda como eu vos direi.
Entretanto, as tropas
desembarcadas em Mindelo avançavam sobre o Porto, dava-se o
cerco do Porto. Passado menos de um ano a surtida do Duque da
Terceira sobre o Algarve, a sua marcha fulminante sobre Lisboa,
a entrada em Lisboa passado um mês, depois da derrota de Teles
Jordão na Cova da Piedade. Vêm depois as batalhas de Pernes e de
Asseiceira até à convenção de Évora-Monte e o Liberalismo foi
implantado em Portugal.
Como explicar esta rápida
vitória, quando os liberais eram 7.500 e D. Miguel dispunha de
80.000 homens? Oliveira Martins, no «Portugal Contemporâneo»,
referindo estes factos mostra-os como um absurdo, não que ele o
diga, mas o que ele diz é que D. Miguel, valentão, brutal, homem
com tinetas e garbos de toureiro era o ideal representante
legítimo do povo português, um povo que ele considerava,
totalmente ou na sua totalidade, envilecido por três séculos de
inquisição, de despotismo e fradaria.
E, pergunta-se ele a si
próprio, porque venceu a causa liberal? Palavras textuais: pela
força das coisas e por uma série de acasos.
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Jaime
Cortesão cumprimentando João de Morais Sarmento, descendente
de um dos supliciados do 16 de Maio |
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Tanto um romantismo serôdio,
um pessimismo de escritor e um amor às tintas negras pode levar
a falsear a verdade e a negar a justiça.
Não que Oliveira Martins
defendesse o absolutismo, mas ele foi quase sempre mais um
artista que um historiador.
Respondeu-lhe imediatamente
uma das almas mais nobres e puras do Portugal desse tempo:
Rodrigues de Freitas.
Já nesse tempo Herculano
tinha feito a distinção, a justa distinção, entre uma populaça
de facto envilecida pelo absolutismo, que era capaz de
acompanhar os sentimentos dos seus mentores, os poderosos, já
/ 53 /
ele tinha feito a distinção entre essa populaça e o verdadeiro
povo, aquele que trabalha e que produz. O verdadeiro povo que
trabalha e que produz, que foi o que deu a vitória aos liberais.
E o próprio Herculano, o
grande, o austero, o monolítico Herculano, a ele se aponta,
ainda que por maneira indirecta, algumas das causas que deram a
vitória aos Liberais.
Essas causas podem
resumir-se da seguinte maneira.
A viciosa, a viciosíssima
estrutura económico-social da Nação, formada durante 3 séculos
de absolutismo, tomou-se patente, viu-se a nu, quando o Brasil
declarou a sua independência. Reconheceram-se então os males,
melhor, os males de que enfermava o país e também qual o remédio
a aplicar.
Eu gostaria muito, por
tendência de historiador, de dilatar neste momento a minha
conferência para explicar-vos o que foi a formação
económico-social do país durante a Idade Média, a organização
democrática das classes na base do trabalho, a preponderância
destas classes imprimindo directiva ao próprio Governo e
destinos da Nação e como ela se transformou quando dos
descobrimentos passámos às conquistas, e o espaço que teve de
amparar, nutrir e guiar uma nova classe, a fidalguia guerreira
que mantinha essas conquistas. Vou poupá-los a essa dissertação
erudita. O essencial está dito.
A estrutura económico-social
de Portugal era tão viciosa que Herculano disse: Nos vinte ou
trinta anos anteriores ao Governo Liberal Portugal tinha para
alimentar-se apenas o suficiente para uns tantos meses; nos
últimos três meses do ano os portugueses não tinham que comer e
tinham que o importar a peso de ouro.
A agricultura definhara, as
indústrias tinham morrido, mercê do tratado de Methwen, e o
clero, sobretudo os frades, os conventos, as ordens, tinham
prosperado de maneira, que é também o testemunho insuspeito de
Mousinho da Silveira, que era aliás católico, que declarou num
dos seus relatórios que o clero absorvia mais, mais rendimentos
que a própria Nação, quer dizer, que o próprio Estado, e que a
sua acção era tal que prejudicava em dois terços a capacidade
tributária do Estado.
Para se compreenderem as
medidas de Mousinho da Silveira e mais tarde de Joaquim António
de Aguiar é preciso entrar na intimidade desses factos. Esse
Portugal do princípio do século XIX, roído pela parasitagem
fidalga e das ordens, sofre sucessivamente a catástrofe das
invasões francesas. A agricultura esmorece de novo, cessam as
poucas indústrias que existiam, a propriedade imobiliária
devastada pelo saque e pelo fogo reduz-se ainda mais. Mas, dá-se
então um caso extraordinário: verifica-se que o povo português
existia, porque o povo português ergue-se como um só homem
contra, os invasores, e o marechal Soult, o glorioso marechal de
Napoleão, diz nas suas memórias que, ao entrar em Portugal, toda
a Nação se levantou contra as forças francesas, e homens e
mulheres alucinadas se precipitavam contra as baionetas e as
armas de fogo com desprezo da morte. Mas esse povo, heróico mas
mísero, estava então sem chefe.
D. João VI e a corte
portuguesa tinham emigrado para o Brasil. E diz Herculano:
Portugal tornara-se duplamente colónia. Colónia do Brasil,
porque o Rei estava lá e porque se tinham invertido os papéis, e
em vez de vir o dinheiro de lá, era daqui que ia dinheiro, como
por exemplo 50 contos mensais para a expedição ao Uruguai.
Enquanto durou essa Guerra, dizia Herculano, era colónia do
Brasil e colónia da Inglaterra, porque quem governava aqui eram
os ingleses, era o marechal Beresford e os seus oficiais.
Governavam a Nação, diziam eles, para defender os interesses
portugueses, mas de facto para defender os interesses da Ilha,
para proteger a Ilha contra qualquer surpresa de invasão. E
faziam-no e governavam esta colónia como os ingleses então
governavam as outras colónias que tinham pelo mundo, sem
respeito pelos direitos humanos, oprimindo, chamando a tropa
como se fosse no seu país e, se aparecia alguma consciência pura
e recta que quisesse protestar, como aconteceu com Gomes Freire
de Andrade, ele mandava-lhes tapar a boca e a garganta com a
corda da forca. Foi então que veio a revolução de 20, de 1820, o
Rei estava fora, o Governo, o País sob a pata do estrangeiro. E
esses revolucionários idealistas e cândidos fizeram uma
revolução cordial, lírica, sem efusão de sangue, mas sem ir de
maneira nenhuma à raiz, ao descobrimento e ao castigo das
causas.
É certo que eles expulsaram
os ingleses, acabaram com a inquisição, ainda então havia
inquisição em Portugal, e chamaram o Rei, D. João VI. O bonachão
do D. João VI voltou a Portugal, voltou a Portugal mas durou
pouco, e começa então a desenrolar-se esta tragédia.
Mas voltemos novamente ao
nervo lógico do que lhes estou dizendo.
Neste momento o que eram as
causas da rebelião primeira vão coincidir com as consequências.
Entrado Mousinho da Silveira para o Governo, viu imediatamente
qual era o mal e ele próprio o diz: que a separação do Brasil, a
independência que o Brasil tinha proclamado era mais fértil em
consequências do que tinha sido o seu descobrimento. Ele dizia
também que era necessário que Portugal readquirisse pelo
trabalho o que antigamente lhe vinha em ouro do Brasil e do
trabalho escravo nas colónias.
/
54 / Visão
perfeita, visão que define o génio do estadista e visão também
que nos faz entrar no segredo íntimo da própria revolução e que
nos explica porque foi um desembargador da Baía, Joaquim José de
Queirós, o Chefe da Revolução do 16 de Maio. É que ele estava em
condições magníficas para compreender que o mesmo mal que
afligia o Brasil afligia Portugal; que os brasileiros tinham
sacudido o regime absolutista e que o remédio para os
portugueses era também sacudir o governo absolutista. E ninguém
como uma pessoa inteligente e um homem que tinha experiência das
coisas do Brasil podia vislumbrar melhor as consequências que
representavam para Portugal a separação da antiga colónia. Mais
ainda, nós compreendemos melhor a lógica íntima da revolução, e
vemos que não só é natural e perfeito que tivesse sido um
desembargador da Baía mas que ele encontrasse o melhor ambiente
em Aveiro.
Aveiro, porto marítimo, e os
portos marítimos são sempre muito mais sensíveis a estes
movimentos ideológicos que lhes vêm de fora. Além disso, em
Aveiro, desde a abertura da Barra em 1808, começara a dar-se uma
reestruturação das classes. Isso explica o ambiente magnífico
que encontrou aqui o desembargador, e se a Sociologia nos diz
que assim viria a acontecer, a História o comprova. No livrinho
de Marques Gomes sobre a revolução de 16 de Maio eu vi que entre
os conspiradores avultavam os comerciantes, não faltavam também
os homens das profissões liberais, os do Foro e também os
mecânicos, os pintores, os sapateiros e, o que é extremamente
significativo, os estudantes, à frente dos quais José Estêvão —
já era então estudante de Direito em Coimbra.
Entrado Mousinho da Silveira
no Governo e ainda na Terceira ele começa imediatamente a
legislar, e a legislar no sentido de curar as velhas taras
absolutistas que pesaram sobre a terra e sobre o trabalho em
Portugal. Numa série de leis de que eu lhes vou dar muito
rapidamente o resumo, ele acabou com os dízimos, dízimos que
chegavam por vezes a 50 % do rendimento bruto da propriedade,
com os dízimos e com os direitos senhoriais, e é Herculano que
nos diz: eliminando dízimos e direitos senhoriais ele libertava
a terra, libertava o trabalhador da terra e o das pequenas
indústrias e o comerciante de duas terças partes dos impostos
que pesavam até então sobre o trabalho produtivo fosse qual
fosse. A seguir, ele elimina em grande parte as sisas, sisas que
tinham sido um imposto democrático, no tempo da revolução do
Mestre de Avis, mas que se tinham tornado um elemento opressor.
Ele acaba com as ordenanças, que tinham sido também um elemento
democrático mas que por intermédio dos capitães-mores pesavam
esmagadoramente sobre as populações rurais. Ele acaba com a
arbitrariedade dos cargos, tomando-os apenas pessoais, ele
regula as funções da magistratura e separa a magistratura das
funções administrativas. Ele realiza um pacto e suprime os bens
da coroa afectos às ordens monásticas. É ele quem dá o primeiro
golpe, mais tarde terminado por Joaquim António de Aguiar, sobre
as ordens religiosas. É ele também que dá o primeiro golpe sobre
o morgadio. Enfim, ele foi o verdadeiro revolucionário, o mais
substancial, o que foi verdadeiramente às causas económicas e
sociais da revolução, fazendo acompanhar a revolução política de
uma profunda revolução económica e social. Mouzinho da Silveira
ia ao ponto de dizer que só tinha direito à terra aquele que a
trabalhava com o seu suor, porque a terra sem isso não tinha
verdadeiro valor. Mas aqui, como lhes dizia, as causas
confundem-se com as consequências. É Herculano que nos diz que,
quando esses decretos começaram a circular entre a tropa
miguelista, os homens do povo compreenderam que estavam a lutar
contra si próprios, e o que lhes convinha era trabalhar pela
vitória Liberal. E foi o que fizeram.
Temos então que a revolução
liberal iniciada a 16 de Maio pôde, como eu disse de princípio,
moldar depois de 6 anos de luta uma face mais justa e mais
humana a Portugal. Essa grande glória cabe a todos,
evidentemente, mas, mais do que a ninguém, a esse estadista de
quem acabo de falar.
Mas, meus Senhores, se a
revolução liberal não tivesse essa grande conquista, entre os
benefícios que trouxe a Portugal uma outra coroa de glória lhe
cabe: a grande renovação das ideias, políticas, sociais e
literárias, que se deu imediatamente após a sua implantação. O
liberalismo é por essência um regime de convívio e discussão com
o inimigo político, de tolerância, e isso permitiu que o ideal
republicano como o socialista pudessem livremente ser explicados
e exaltados durante muitos anos, durante o regime liberalista em
Portugal. Nasceu daí uma plêiade de apóstolos.
Eu não irei agora
enumerá-los, mas quero chamar a vossa atenção, como o mais
significativo dos efeitos do liberalismo e das virtudes da
liberdade, para a grande floração literária que então se deu em
Portugal, por algumas gerações, a primeira das quais é a que
saiu directamente da revolução; a dos chamados românticos, que
pertenciam, é certo, a uma escola de romantismo, mas tiveram o
mérito de chamar as letras, de uma maneira peculiar e
portuguesa, para a interpretação da vida e da vida junto da
terra.
Nesse Instituto de altos
estudos, sim, de altos estudos, que foi a emigração, mas em que
os pupilos em vez de subsídio oficial tiveram, sim, a
elucidá-los os paralelos e as experiências dolorosas, os
paralelos de um estado de civilização que eles tinham visto e
/ 55 /
presenciado no estrangeiro, estes pupilos de altos estudos
chamavam-se nomes tão gloriosos, como Almeida Garrett,
Herculano, José Estêvão e Luz Soriano, para citar apenas os
principais.
Todos eles são filhos da
Liberdade. Garrett, mais romântico que nenhum dos outros, porque
viveu o romantismo como um estilo de vida novo, abriu mais
caminhos, os mais diversos, às gerações futuras.
Ele foi poeta e prosador de
ritmos novos que, nas «Viagens à Minha Terra», escreveu as
viagens na minha terra, com aquele fôlego curto e vivo e
palpitante da linguagem falada.
Ele foi o folclorista «avant
Ia lettre», aquele que pela primeira vez apreendeu em Portugal o
penetrante sentido e encanto da poesia popular.
De espécie, de sebe de
estevas e madressilva em flor pelas azinhagas dos casais, ele
foi o dramaturgo que reatou, até à sobriedade, da tragédia grega
«O Frei Luís de Sousa», o génio do teatro português, que se
havia perdido com Gil Vicente. Ele foi o parlamentar que,
ombreando com José Estêvão, erguem a eloquência política até uma
das supremas afirmações da consciência livre; Garrett,
espontâneo até à ingenuidade, elegante até ser janota, foi
mestre no verso de João de Deus, precursor na prosa de Eça de
Queirós, foi o precursor também de uma escola de teatro que vai
desde Marcelino Mesquita a Lopes de Mendonça. E no estudo do
folclore iniciou uma ciência que teve o seu grande mestre em
Leite de Vasconcelos.
Esse Garrett foi uma espécie
de rosa de ventos aberta a todas as inspirações das artes e da
vida pública. Herculano, esse moldou-se a si próprio, como uma
estátua, um símbolo vivo de exemplaridade austera, de vivência
na história da consciência política da actualidade. Tem-se dito
e tem-se increpado Alexandre Herculano porque, acusam-no, ele
foi violento e apaixonado no julgamento de D. João III na sua
«História da Inquisição em Portugal». Eu direi: bem haja o
escritor quem a cólera impeliu a pena e bem haja o chicote com
que ele flagelou esse monarca chamado, por antífrase, o piedoso,
que comprou a peso de ouro o direito de afogar a fé alheia e a
consciência livre no patíbulo ou na fogueira.
Mas passemos agora para a
outra, a mais bela geração produzida pelo Liberalismo em
Portugal. Eu refiro-me à que vai da chamada Escola de Coimbra
aos Vencidos da Vida e a que pertencem Eça de Queirós, o neto de
Joaquim José de Queirós, que foi educado em Verdemilho, o filho
da Ria de Aveiro, como ele próprio se chama. Eça de Queirós,
Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Antero, Teófilo, tantos
outros!
E peço-lhes que sigam agora
o meu raciocínio. Como é que esse Ramalho, o íntegro Ramalho, o
forte, o sadio, o puro, o franco, o aberto, o despejado, que
tinha arte de escrever, como quem fala sem papas na língua, como
é que Junqueiro, em cuja lira ressoam as angústias da Pátria
vilipendiada, como é que o próprio Oliveira Martins, que
escreveu «Portugal Contemporâneo» com um sentido tragicómico,
misto de genial e caricatura, como é que Antero, o Santo Antero,
o poeta, o crítico, filósofo, o homem que ergueu o conceito da
liberdade às últimas culminâncias na sua obra sobre as
tendências actuais da filosofia em Portugal no século XIX, como
é que eles poderiam escrever essas páginas supremamente livres
num regime nem que não dominasse, já não digo a liberdade de
imprensa, mas em que o livre espírito crítico fosse por assim
dizer a suprema afirmação da cultura e da civilização?
O caso de Eça de Queirós,
meus senhores, é mais típico porque ele, espécie de Jeová
malicioso, pegou nesse barro da estupidez humana e dos vícios
que ele encontrara à sua volta e moldou essa galeria de tipos
que fazem ainda hoje o nosso encanto e o encanto de todo o mundo
lá fora; tão verídicos, tão palpitantes de vida e de grotesco
que os próprios contemporâneos, muitos deles, tiveram de se rir
ao espelho, de envergonhados, ao ler a sua própria imagem
pintada no romance.
Digam-me, como é que
podíamos conceber o autor do Crime do Padre Amaro, dos Maias, da
Relíquia, do Mandarim, num regime miguelista, no regime
anterior, em que dominava a censura, em que dominava o arrocho,
a perseguição da polícia e, sobretudo, o medo, esse medo que
enxovalha e humilha a criatura humana! Esse medo que abafa a voz
nas gargantas e nas consciências e faz dos homens míseras rezes
de um rebanho. Ah! Adeus Conselheiro Acácio, bexiga de ridículo
e grotesco. Adeus Pacheco, cujo imenso talento brilhava apenas
nos cristais dos seus óculos. Adeus cínico Primo Basílio, adeus
cínico padre Amaro, adeus repulsivo Salsede e tantos outros.
Que digo eu, adeus cóleras
sagradas de Herculano, adeus risadas sadias de Ramalho, adeus
veemências proféticas de Junqueiro! Ah! tudo isto desaparecia! E
eles seriam, quando muito, magníficos amanuenses, que talvez nas
horas vagas pudessem compor poesias líricas para o «Almanaque de
Lembranças».
Na sua vez, na vez desses
réprobos, réprobos para o miguelismo, tínhamos uma literatura
cediça e bolorenta, de conformismo, de erudição gulosa, de
homilia e Iausperene, de panegírico baboso dum lado, e, do
outro, ah! E do outro! A «Besta Esfolada» do Padre José
Agostinho de Macedo, que pedia que houvesse, para regalo do
povo, todos os dias, carne fresca de liberais enforcados.
Ou a contramina do Padre
Fortunato, Frei Fortunato de São Boaventura, que
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pedia ao Senhor, que pedia a Deus, que as florestas dessem todas
as vergônteas necessárias aos cacetes que eram necessários para
esmagar os miolos dos que não seguiam a verdade miguelista.
Melhor ainda, a que pedia o
Padre Alvito Ruela, na sua «Defesa de Portugal» que chegava a
pedir que se arrancassem os fetos dos ventres das mulheres dos
liberais para que se lhes acabasse com a raça.
Senhores: e se houvesse
algum recalcitrante, algum recalcitrante das Ietras, lá estava o
General Peres Jordão, o devotado guarda da Torre de S. Julião da
Barra, para amassar os ossos e abafar os gritos nas masmorras
subterrâneas, aos contumazes que não acreditassem com a fervor
bastante nas virtudes e nos benefícios sublimes do Salvador da
Pátria, e do Messias e enviado de Deus, o Senhor D. Miguel.
Meus Senhores, isto já vai
longe e eu vou terminar.
Oliveira Martins, que eu
aqui citei mais que uma vez, quando dá o balanço às lutas
liberais, pergunta:
Mas que é a Liberdade?
Segundo ele, é uma palavra vaga e cujo conceito varia e que de
facto não resolveu, por si só, os problemas portugueses.
Eu direi: Se Oliveira
Martins tivesse penado nas prisões, as violências do cárcere, a
fome, a miséria, se de tivesse tido de negar, infamado, ferido
na sua honra e incapacitado de a defender, se ele tivesse sido
acusado de traidor à Pátria e no entanto a tivesse defendido e
procurado exaltar constantemente em toda a sua vida e durante o
exílio e não pudesse sequer dizer que não e defender-se, ele
saberia o que era a Liberdade.
Eu sei a que é a Liberdade!
Vou terminar por onde
comecei, o agradecimento à cidade de Aveiro.
Aveiro, cidade precursora!
Bem hajas pelo teu grito
anunciador, Aveiro, cidade sempre igual a ti mesma, no passado e
no presente, bendita sejas pela tua constância e a tua fé.
Aveiro, mártir regada de
sangue e de lágrimas, ensina-nos com o teu exemplo, diz-nos que
a liberdade não morre porque ela é tão certa como a manhã depois
da noite e eu sei que desde o fundo lôbrego das idades, através
de milénios, todo o esforço dos homens tem sido a conquista
progressiva da liberdade.
E eu te vejo, Aveiro, como a
própria figura ideal da Liberdade, coroada de esperança e na
frente a estrela refulgente da certeza no futuro.
E eu oiço, nos teus canais,
na tua Ria, nos teus campos, nos teus barcos, nas tuas oficinas,
nos teus tribunais, nos teus consultórios, a alma e a voz de
José Estêvão difundida mas clamando com voz mais imperiosa e
eloquente do que nunca: — pão, justiça, Liberdade!
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Da esquerda
para a direita: Júlio Calisto, Álvaro Neves, Mário
Sacramento, João Sarabando, Jaime Cortesão, Costa e Melo,
Manuel Figueiredo, Armando Castela, João Morais Sarmento,
Manuel das Neves e Joaquim José de Santana. |
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