Minhas Senhoras e
meus Senhores:
Chegou enfim o
ensejo, há tanto aguardado pelos democratas do Distrito de Aveiro,
de festejar, com jubiloso carinho, o regresso do filho pródigo.
Depositários de uma herança de estrénua fidelidade aos interesses do
povo, legada pelos precursores e mártires cuja memória e exemplo
estão celebrando, eles sentem-se investidos em sua pessoa colectiva,
no mandato já centenário de pais e de filhos, que lidimamente se
orgulham de haverem nascido nas orlas da laguna, junto à qual se
ergue a cidade que Marques Gomes baptizou de berço da liberdade.
E é esse mandato
que hoje vêm cumprir, uma vez mais, deixando transbordar de um
coração represo, estas comovidas palavras:
Bem-vindo, Jaime
Cortesão! Bem vindo ao seio ardente do povo a que pertence e que tão
orgulhosamente se revê em si e na sua obra.
Filho pródigo,
digo e repito. Mas pródigo não está porque dotado da férvida
generosidade que o levou, como voluntário, aos campos de batalha no
cumprimento do imperativo moral e que mais alto expõe na sua obra de
poeta e de dramaturgo. Assim, com singular destino, que enforma a
sua carreira de homem público, revestindo-a do simbolismo estranho
que nimba as grandes figuras da humanidade e que sedimenta nos
mitos.
Na verdade, para
nós, democratas portugueses que nascemos a tempo de ler as suas
«Cartas à Juventude» na idade utópica, a biografia de Jaime Cortesão
não só restitui ao presente a túrgida seiva tão repassada de dor que
manou do exílio pelas penas de Verney, Filinto e de Garrett, mas
reveste o próprio exílio de uma profundidade histórica em que se
reflecte, em toda a sua crueza, a crónica tétrica dos nossos dias.
Ele pode dizer,
por isso, o mesmo que sentidamente escreveu na pequena jóia
literária que é o seu «Remorso pela morte de Antero».
Há homens que
sofrem e choram por gerações inteiras. Dir-se-ia que a certas horas
há, pois, num mundo moral que eles hoje carregam sobre os ombros,
todo o mal da vida.
Forçado a
abandonar a Pátria no início do ano de 1927, encontra-se em Madrid
no momento em que deflagra a guerra civil espanhola, abandonando
Barcelona quando nela entram os tércios da Falange. Rompendo através
da neve, galga os Pirinéus, carregando sobre si próprio os seus
manuscritos e apontamentos literários. Está em França na altura em
que as hordas de Hitler invadem a pátria de Diderot. E seguindo,
enfim, para o Brasil, o proscrito miserando torna-se o Embaixador
incredenciado da inteligência e da cultura pátria, dando o corpo e a
vida a tudo o que ficou a unir os dois povos para lá da separação
política.
Relanceados como
ficam os momentos culminantes que entreabrem a Jaime Cortesão as
fecundas perspectivas do simbolismo ético-histórico a que aludi,
como estranhar que seja o seu nome que apareça, espécie de génio
tutelar, no lugar de honra das comemorações com que os democratas do
Distrito de Aveiro reatam este ano uma tradição mais que nenhuma
cara aos seus corações de homens livres?
Pois que outro
escritor português mais indicado para invocar a revolução que
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deu origem à maior corrente migratória de exílio do nosso século XIX
do que o protótipo do exilado do nosso século XX?
Para além,
todavia, das razões de ordem moral, acresce esta outra para a vinda
aqui de Jaime Cortesão, a qual, sendo de menor porte, não é de menor
importância.
Jaime Cortesão é
hoje o historiador português cuja obra podemos alinhar, sem uma
sombra de reserva, na mesma estante em que guardamos Fernão Lopes,
Damião de Góis, Herculano e Martins. E sendo-o, acresce nela uma
particular autoridade para versar o tema de hoje. É que, para o
autor de «Os factores democráticos na formação de Portugal», o
argumento histórico do Grupo Social que em 1820 se lançou à
conquista do poder político tem um tão largo e decisivo alcance que,
segundo ele, a própria fisionomia da Pátria só veio a definir-se
cabalmente no momento em que, emergindo no panorama
económico-social, começou a intervir nos destinos da Nação, ou seja,
em 1383. Preciso esclarecer, contudo, que ao referir-me deste modo
ao historiador que é Jaime Cortesão eu estou apenas a destacar um
aspecto da actividade de um homem que é um todo, ou seja, a vertente
de uma personalidade una e monolítica. Na verdade, ao contrário do
que tem acontecido a muitos outros altos espíritos que transitam
para o pélago obscuro da missão histórica, o desperto humanismo de
Jaime Cortesão não o abandona nunca e assim, em plena crise geral do
idealismo filosófico, o racionalismo idealista de Jaime Cortesão
resiste e como que sobrevive a si próprio.
E porquê?
Porque um
democrata coerente, como é Jaime Cortesão, mergulha as raízes do seu
ideário no mais profundo seio do povo.
O autor do
«Cancioneiro Popular», das «Cantigas do povo para as Escolas» e de
«O que o povo canta em Portugal» está presente em tudo o que o
historiador escreve, e por isso ele declara, sentido: «Toda a
história escrita tende a tornar-se uma interpretação actual do
passado!»
Assim é, assim
deve ser. Assim deve ser, sublinho, e, sublinhando-o, sinto-me feliz
por reconhecer que a chama viva que tão fortemente ilumina o labor
intelectual deste homem é a mesma que aquece os nossos corações de
democratas de várias correntes, sim, mas de uma só atitude: a da
mais indefectível confiança nos destinos do nosso povo e na sua
jamais desmentida capacidade para se tornar senhor dos seus
destinos.
Os homens que
nasceram como eu na mais bela e trágica hora da vida da Humanidade
(assim se lê nas «Cartas à Mocidade») e os que connosco têm
partilhado um mundo de catástrofes, incêndios, ruínas, incertezas,
que o clarão de Hiroshima não cessou ainda de alucinar, seguimos
irmanados pelo caminho que o mentor ilustre da juventude mostrou
existir ao lado dele.
Um coro de
esperança se ergue do coração dos homens e de nós depende que essa
esperança se volva em realidade e que outro canto mais ansioso e
alevantado se erga sobre a terra. O vibrante e ardente hino de paz
do heróico autor das «Memórias da Grande Guerra» bem merece de
todos, porque ele o diz: «Já me sacrifiquei pelos homens todos, pela
beleza da vida, posso falar» – e é isso que vai fazer. |