O fermento dos ideais republicanos,
em Aveiro, entrou na população autóctone de algum modo como o sal.
Terá vindo, antes mesmo de se sonhar
com a mudança de regime, com a água que a trazia dissolvida do
oceano, e, símbolo de sabedoria e agente espevitador, crepitante e
excitante, embebia as margens, na vila aberta ao fluir das águas. O
sal reparte os seus predicados, por vezes de sinal contrário: por
bons augúrios e votos de malquistação. E é conservante, sem se
demitir de excitador.
Precisamente a regular fluição de
marés com águas vindas do oceano e imiscuições de ideias veiculadas
pelas naves que dele vogavam pelas cales mais rasgadas até ao
coração muralhado da vila mercantil, criava uma burguesia, com os
defeitos e virtudes que lhe eram inerentes. Por um lado amealhando,
e promovendo maior prosperidade e expansão à vida local. No outro
aspecto, permeável a ideias, dispondo de elementos de informação e
cotejo, criando em si, e em seu torno, um espírito mais receptivo.
A verificação – aliás, sem que o
facto representasse senão uma penetração lenta, estratificada, que
não subvertia as sedimentações de costumes e princípios de uma
sociedade em equilíbrio estável – encontra-se, por exemplo, nessas
peças essenciais da aveirografia que são os documentados e
elucidativos trabalhos da história económica aveirense, do probo e
lúcido Comandante Rocha e Cunha.
Bastará que nos abonemos com breves
períodos das suas fundamentadas asserções, ao aludir ao modo como se
explica a formação e progressivo crescimento da vila de Aveiro, e da
sua especial psicologia colectiva, em qualidades e defeitos que a
distinguiram de outras povoações da sua própria região:
(1)
«Uma corrente comercial que se
representa, materialmente, com intercâmbio de mercadorias,
representa também, espiritualmente, um intercâmbio de ideias de
civilizações diferentes. O contacto que essa corrente estabeleceu
com os povos do Norte, sobretudo ingleses, flamengos e holandeses e
a larga permanência de elementos destes povos na própria vila,
imprimiu à burguesia aveirense um carácter e uma mentalidade
diferentes das outras povoações, que a ensimesmou, alheando-a quase
inteiramente do interior».
Noutro passo, consequente do
raciocínio formulado, observa que «este aspecto da mentalidade da
sua burguesia, dos séculos XV e XVI ainda hoje é um facto, como
ainda hoje é um facto o amor pela ordem, pela liberdade, pela
economia, a tolerância, a morigeração dos costumes, o asseio
doméstico e o gosto pela pompa dos cortejos religiosos».
E, premindo a mesma tecla, põe em
evidência as diferenças que desde recuados tempos se verificavam
entre os agrupamentos urbanos litorais e agregados do interior:
«A importância social da burguesia
marítima assegurava maior soma de liberdades, a sua riqueza
multiplicava actividades e criava o desafogo e o conforto, e, assim,
as vilas marítimas eram centros de aspiração das populações rurais –
que sofriam uma vida dura de trabalho, servidão e privações.
As tendências liberais, que virão a
ser um título da psicologia aveirense, numa população a que velhas
radicações poderão conferir a qualificação de autóctone, ou
assimilada e, assim, compartilhando de similares propensões e
gostos, e anseios, remonta pois a termos dos tempos medievos. E, com
o progresso do tráfego portuária, crescente até ao momento do auge
no final do terceiro quartel da centúria de quinhentos, o contacto
com estrangeiros, e com as ideias de que eles eram veículo, essas
tendências ter-se-iam firmado, se não incrementado.
O germe latente, apto e pronto a
desabrolhar, ao primeiro estímulo de efectivas potencialidades, para
fecundos resultados, determinaria a conduta evidenciada
/ 16 / por Aveiro, já em
1820, já, como consabidamente é conhecido, na revolução, malograda,
mas com fogo não extinto, de 16 de Maio de 1828. E nesta, em que, na
velha Praça do Pão – depois chamada do Comércio e actualmente sob a
égide de Joaquim de Melo Freitas, republicano desde os tempos de
estudante, aveirense ilustre, múltiplas vezes fiel intérprete dos
sentimentos mais genuínos e vivos dos seus conterrâneos – se solta,
como reiteradamente se tem escrito, o primeiro brado público contra
o miguelismo, facto histórico que, mais que nenhum outro, Aveiro tem
apresentado como motivo de ufania.
A história deste acontecimento – um
dos marcos históricos aveirenses, uma data cultuada e a que a gente
de Aveiro, persistentemente liberal, liberal e individualista (que
os dois conceitos se geminam) se tem mantido de viva memória
preiteante – está escrita. E não só em letra morta, mas rediviva na
recordação, quase se diria no sangue de cada aveirense, de raiz e
espírito.
Sabem-se os nomes dos mártires,
justiçados na forca da Praça Nova, do Porto, vítimas da fidelidade
aos ideais, e da sentença cruel da alçada em que se admite terem
exercido influências intolerantes e inumanas da última – no tempo, e
talvez no entendimento das suas obrigações e prerrogativas das
soberanas de «inauferíveis direitos», provindos do poder divino e a
ele assimilados.
Os seus crânios – como que de santos
lacaios, cujas relíquias são alvo de veneração e focos inexauríveis
de inspiração – guardam-se no cemitério, onde repousam, na grande
maioria, as figuras que desde esses tempos se distinguiram no
dominante, quase poderíamos dizer intrínseco liberalismo da
população de Aveiro. São poucos, mas cabe lembrá-los
paradigmaticamente, com um sentido indeclinável de perpetuidade: o
Desembargador Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Francisco
Silvério de Carvalho Magalhães Serrão, Manuel Luís Nogueira,
Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, João Henriques Ferreira
Júnior e Clemente de Morais Sarmento.
E, porque desses idealistas ficou o
fermento e brotou ao impulso, não se devem olvidar os que, mais
afortunadamente, não obstante terem tamanhas ou maiores
responsabilidades na frustrada revolução contra o miguelismo,
puderam furtar-se à pena capital, perseveraram na luta e vieram a
desempenhar papéis de realce na vida pública local ou nacional.
Entre esses merece figurar à cabeça,
sem dúvida, o desembargador Joaquim José de Queirós, o «façanhoso»
chefe do movimento liberal aveirense, futuro ministro, discreto
parlamentar, que se confinou aos trabalhos sem projecção pública das
comissões, pai de um não menos íntegro magistrado, José Maria de
Almeida Teixeira de Queirós, e avô do romancista – o mais insigne
das nossas letras – Eça de Queirós. Esse magistrado seria condenado
a ser queimado em efígie, já que, escondido debaixo do junco de um
pequeno barco conseguira furtar-se à perseguição dos esbirros, e, de
Verdemilho, onde chegava um esteiro da Ria, tomar rumo a Ovar, e
dali ao exílio. Cartista, da ala conservadora do liberalismo,
entendia este, à maneira que, ao falar numa das cerimónias do
centenário dessa mesma revolução, o considerava o insigne pensador
aveirense Jaime de Magalhães Lima:
«O liberalismo vale pelo que promove
em nosso ânimo, pela condição e elevação e alegria e saúde
espiritual que determina, e alimenta; não é pelo que fabrica do
nosso barro palpável que o liberalismo vale ou desmerece e é erro ou
virtude, porque isso que do barro se fabrica, barro é e mais nada,
em pó e cinza se dissolve, e poderá ser muito pouco ou nada,
conforme as contingências do momento. O liberalismo fabrica homens,
não é alfaia do fabrico das coisas, não serve para escudela de
famintos nem para tonel de sibaritas, nem para degrau de potestades
soberbas; é uma estrela do caminheiro».
E o tolstoiano ensaísta completa o
seu pensamento, de algum modo e em Iarga extensão exprimindo o de
Joaquim José de Queirós e seus companheiros na luta e nos
sofrimentos pela liberdade:
«O liberalismo é o respeito mútuo
entre os homens, na sua totalidade e indivisibilidade, por esse
princípio guiando e aferindo a dignidade de cada qual – assim como o
autoritarismo, que nos seus infinitos modos e dissimulações se opõe
ao liberalismo e o aborrece, é a ablação radical da personalidade e
do exercício da consciência, é a vida coada pela opressão e pela
irresponsabilidade – à qual irresponsabilidade os sectários do
autoritarismo chamarão tranquilidade, doçura, quietação majestosa,
ordem e disciplina, moeda corrente do mercado moral e político com
que o despotismo usa embalsamar a aviltante prostração sonolenta dos
que por natural inércia se lhe submetem de boa mente e entre esses
anestésicos se sonham no paraíso».
Largamente explanaria a sua
concepção de liberalismo – sua e de muitos que o procederam naquele
movimente que o tinha como lábaro e como mola impulsionadora –
afirmando mais adiante:
«O liberalismo é o respeito mútuo
entre os homens, tanto negando a legitimidade da opressão
inquisitiva, como exigindo a tolerância de pensamento e deliberação
e acção de cada qual; é o reconhecimento da intangibilidade e da
fecundidade do princípio de autonomia da decisão e da vontade de
cada homem, desencarcerando-nos daqueles estados de parasitismo
mortal, nos quais o poder mental e toda a energia do homem
/ 17 / era unicamente
instrumento cego e dócil da vontade, e não raro do capricho de um
outro homem...».
Outros dos que conseguiram furtar-se
à sanha punitiva dos miguelistas inclementes e cegos na revindicta,
alguns condenados também à morte pela alçada, merecem também ser
recordados. Entre eles o Visconde de Santo António, Rocha Colmieiro,
o Dr. Luís Cipriano e, mais jovens, mas também forçados a
homiziar-se, o próprio José Estêvão, filho primogénito daquele
clínico, bondosamente paternal, e Manuel José Mendes Leite, o mais
fraterno dos amigos do futuro tribuno empolgador.
Ponde de remissa, por inconsistente,
um pretenso republicanismo, mesmo potencial, do intrépido apóstolo
(2) dos princípios liberais e das, para o tempo, mais
rasgadas regalias populares, que foi José Estêvão, dos prosélitos
dessas ideias veio o levedar dos partidários da mudança de regime,
já que a secular monarquia evidenciava de cada vez mais
acentuadamente os esteios carcomidos e incapazes.
Só um acurado trabalho de rebusca
através de jornais de há cerca de um século para cá – e em Aveiro,
salvo de «O Povo de Aveiro» não há colecções ao alcance dos
eventuais consultores com intuitos historiográficos ou de mera
curiosidade pessoal – permitirá, mesmo lacunarmente, traçar as
linhas gerais de reconstituição de um agrupamento republicano local,
com características verdadeiramente de organização partidária.
Certamente já antes das comemorações
do terceiro centenário da morte de Camões, que tiveram uma tão
intensa influência na difusão e avigoramento dos ideais
republicanos, havia adeptos mais ou menos sinceros, conscientes e
ardorosos dos princípios e dos sentimentos que viriam a conduzir
três decénios depois à mudança de regime. Mas eram isolados,
desconexos, numa semi-clandestinidade.
Ao que parece, a primeira
congregação de elementos com essas tendências partidárias,
ficar-se-ia a dever à capacidade de organização e persuasão do então
muito jovem oficial do exército que era Homem Cristo, o qual, não
obstante as restrições que impendiam sobre os militares, vinha
exercendo uma acção apostolizadora, pertinaz e animosa, de
republicanismo. O veemente jornalista, democrata muito mais pelas
ideias em si do que por solidariedade com quaisquer homens que se
arrogassem a liderança delas em qualquer momento, recordá-lo-ia mais
de meio século depois:
«No verão de 1881, antes, ainda, de
ser colaborador efectivo do «Século», fundei, estando de
licença em Aveiro, o Centro Eleitoral Republicano Aveirense.
Meus irmãos reuniram umas dúzias de pessoas; fomos à noite para uma
casa que o Joaquim Fernandes tinha na Rua do Alfena; disse-lhes umas
coisas e constituiu-se o novo grémio político com os assistentes.
Não que fossem todos republicanos. Na maior parte não eram nada,
como sempre sucede em casos idênticos. Com eles, porém, se iniciou o
movimento republicano em Aveiro».
Claro que um procedimento desta
natureza, num oficial do Exército, mesmo com a brandura usada ao
tempo pelos governantes e as autoridades em geral, tinha os seus
riscos: – «Ia-me saindo cara a brincadeira! – escrevia em comentário
ao facto o ardoroso polemista: – Um mariola qualquer escreveu uma
carta anónima ao ministro da Guerra, contando-Ihe o caso e
pintando-lhe, como fazem todos esses mariolas, mais feio do que ele
era. O ministro mandou a carta ao Governador Civil pedindo-lhe
informações. E eu tive a sorte de o governador civil tomar aquilo
como uma rapaziada. (...) E o ministro, então, limitou-se a
determinar que, por causa das dúvidas, fosse eu gozar o resto da
licença para onde me agradasse, mas em Aveiro não podia continuar».
Foi para Sever do Vouga, para Casa de Eduardo Arvins, «velho e
convicto republicano» e para além dessa circunstância, um «belo
coração e belo carácter, homem muito culto e viajado» e aí passou o
seu «primeiro desterro político», pois foi-o na verdade,
embora de um carácter especial» (3)
Não será hoje fácil – se não é mesmo
impossível identificar essas «dúzias de pessoas», ainda que o número
não fosse muito avultado. Algumas, todavia, deixaram rasto, que,
embora mesmo num relance com as características de fugaz
superficialidade de que este se reveste, permite fixar-lhes os nomes
de precursores.
Com alguns deles fundaria Homem
Cristo, em Maio de 1882, o «Povo de Aveiro», órgão dessa
parcialidade, que pouco a pouco atrairia mais adesões. E ainda na
criação do jornal alguns não tinham declaradas convicções
republicanas. Os demais, segundo também informa o famoso
panfletário, que nele ao longo de seis decénios exerceria a sua
veemente acção de doutrinação e combate, «eram pessoas amigas e que
por amizade nos acompanhavam, digamos, numa expectativa benévola. E
cita-os. Entre os primeiros, convictos e dispostos, às claras, à
luta proselítica, os dois irmãos, ambos mais velhos que ele, Manuel
e Fernando, António Ponce Leão Barbosa, António Augusto Mourão,
Francisco Rodrigues da Graça – o Francisco da Maurícia, como era
geralmente conhecido, e que foi um dos mais devotados membros da
comissão popular que tomou a seu cargo a erecção da estátua ao
egrégio tribuno Aveirense José Estêvão Coelho de Magalhães. E, mais
conhecido, um dos grandes paladinos da República, aveirense por
ascendência paterna, Sebastião de Magalhães Lima, que geralmente se
ignora
/ 18 / ter feito parte da
sociedade constituída para fazer publicar o semanário, que, em pouco
tempo, foi passando, gradualmente, a ser dominado pela personalidade
de Homem Cristo, o qual acabaria por ficar seu exclusivo
proprietário e quase seu redactor exclusivo em várias ocasiões.
Homem Cristo |
Os demais sócios da empresa eram
João Simões Peixinho, Bernardo da Cruz Maia e Anselmo Ferreira, que,
este pelo menos, se foram imbuindo dos ideais republicanos dos seus
amigos. Mas, embora não participasse na sociedade fundadora do que
haveria de tornar-se, graças à personalidade de jornalista medular
do seu inspirador, um semanário de projecção nacional, com leitores
ávidos, desencadeador de ataques a ídolos – com ou sem pés de barro
– profligador de erros e dos que deles tirassem ou não proveito, o
aludido Joaquim Fernandes, em cuja casa se decidiu formar o Centro
Eleitoral Republicano, se o não era já efectivamente, era, sem
dúvida, um republicano potencial. Mostrá-lo-ia, claramente, poucos
anos depois, pela ardorosa atitude que evidenciou na luta política
que se travou em Aveiro, na segunda metade de 1888, entre os adeptos
do Manuel Firmino, então a exercer as funções de governador civil e
que pretendia fazer entrar, no hospital da Misericórdia, irmãs da
caridade, e um avultado número de aveirenses com tendências
republicanas ou afins, que tomavam essa entrada de religiosas como
uma intolerável afronta à memória de José Estêvão. A comissão que
promoveu a elevação do monumento à sua memória, desta última feição,
na generalidade, chegaria mesmo, por esse motivo, a protelar-lhe a
inauguração. (4) |
Joaquim Fernandes distinguiu-se pelo
calor tomado nessa luta, que teve repercussão em todo o País. E tão
ardorosas e abertas foram as suas atitudes que o padrinho de
baptismo, Francisco António do Vale Guimarães, que desfrutava de
larga influência pessoal e política, para poupar o afilhado a
prováveis represálias no exercício da sua arte, única garantia que
tinha de subsistência – a Rua do Alfena era vulgarmente chamada Rua
dos Ferradores, que ali se concentravam, e essa era a sua, dele,
profissão – conseguiu colocá-lo em Lisboa.
Aí chegou a sargento-ferrador da
Guarda Municipal, e, cremos que ainda da Guarda Nacional
Republicana. E, em Lisboa, o protegeram, por solidariedade política,
naturalmente, e como patrícios, Sebastião de Magalhães Lima e Homem
Cristo – dois amigos que as vicissitudes da política viriam a
afastar, por vezes com acrimoniosos choques de atitudes e palavras,
e com reatamentos mais ou menos consistentes.
Republicano até ao fim da vida, que
não foi das mais curtas, Joaquim Fernandes manteve fidelíssima
amizade por Homem Cristo. Quando este, primeiro três vezes por
semana, e, mais tarde, duas, ia ao Porto dar as suas lições,
professor catedrático que foi da respectiva Faculdade de Letras,
aguardava-o sempre à chegada do comboio e à sua guarda ficavam os
livros com que durante a viagem o professor de História da
Universidade portuense dava os últimos retoques à preparação das
lições que ia ministrar.
E, antes do comboio do regresso, não
só os ia colocar no lugar que previamente marcara, juntos a
agasalhos que Homem Cristo eventualmente levasse a mais para o
percurso – pois as carruagens então ainda não eram aquecidas – mas
comprava-lhe o bilhete com antecedência, pois a última, lição do
austero professor terminava a hora que lhe não dava grande margem
para chegar a tempo ao comboio.
Desses cuidados beneficiou o autor
destas linhas, largo número de vezes, desde que um dia o simpático e
prestimoso ancião descobriu que o estudante, ao tempo, daquela
escola superior, era bisneto do padrinho dele, Francisco António do
Vale Guimarães.
Mas de outros republicanos dessa
época há notícia, ou, pelo menos, uma mera alusão, aqui ou além.
Sabe-se, por exemplo, que «antes da
Revolução de 31 de Janeiro de 1890, se organizou em Aveiro um
/ 19 / comité revolucionário,
a fim de proclamar a República, após o grito de revolta a soltar no
Porto e que deveria ser secundado em todo o País».
Ora, neste comité, em que entravam
além de alguns pioneiros já apontados – Francisco Manuel Homem
Cristo, seu irmão mais velho Manuel Homem de Carvalho Cristo e
António Ponce de Leão Barbosa –apareciam nomes novos, de alguns dos
mais férvidos prosélitos da causa republicana: Francisco António de
Moura, Dr. Manuel de Melo Freitas, Dr. Joaquim de Melo Freitas,
Domingos José dos Santos Leite, José Gonçalves Moreira, Manuel Dias
e José Gonçalves Gamelas.
Esta dezena de aveirenses,
partidários da mudança do regime, abriu, entre si, e, assim, com
sigilo, uma subscrição para a compra de armamento destinado à
revolta. Cada um contribuiu com cem mil réis, sem dúvida uma
avultada quantia para a época. E com outras importâncias
subscreveram outros partidários das instituições republicanas, pois
a subscrição, que prosseguiu, chegou a atingir cerca de 3 contos.
Numa primeira reunião, feita na
Gafanha da Nazaré (5) então quase erma e, assim, em condições
excelentes para, que os conspiradores não pudessem ser descobertos,
surgem na fonte de que para esta particularidade nos socorremos dois
outros aveirenses, Elísio Filinto Feio e Joaquim Fontes Pereira de
Melo, a par dos já apontados Drs. Manuel e Joaquim de Melo Freitas e
José Gonçalves Gamelas.
As armas adquiridas, redobrada a
vigilância, como é natural, após a revolta do 31 de Janeiro,
necessitavam do esconderijo mais recatado. Assim, cremos que por
Manuel Dias, com as facilidades de que dispunha, foram escondidas
numa dependência de arrumos, da velha casa do Morgado da Oliveirinha
– então a do influente Castro Matoso e, digamos, a do irmão deste, o
chefe do Partido Progressista, e, pois, um dos árbitros da política
nacional, José Luciano de Castro, que demasiadamente se olvida que é
aveirense.
Claro que nenhum dos encarregados de
farejar a existência de armas clandestinas, por mais apurado faro
policial que possuísse, conceberia a ideia de que o armamento com
finalidades subversivas se encontrasse no oculto resguardo do solar
de dois pilares das instituições monárquicas.
Só uma vez o caso esteve por um
triz, para poder ser descoberto, segundo um dia ouvimos da boca de
Homem Cristo, um dos mais comprometidos dos conspiradores
aveirenses, como pelo que narramos é fácil de calcular.
Joaquim Fontes tinha uma barbearia,
na Praça do Comércio – o foco, com a Arcada, desde as lutas liberais
do primeiro terço do século, da vida política local. Inteligente,
devotado aos seus ideais, mas bastante loquaz, como é proverbial nos
profissionais daquela arte, teria igualmente o gosto de se mostrar
nos segredos, se não dos Deuses, ao menos nos que se circunscreviam
à escassa e selecta roda. Uma ocasião, a um qualquer freguês, na
política de ideias e filiação antagónicas às suas, desprendeu a
língua e, se não fosse a incredulidade com que o interlocutor teria
encarado o conhecimento de que blasonava, teria desvendado o sigilo
a que com poucos mais se obrigara a manter.
Uma figura que ocupou uma posição de
relevo pronunciado, entre os republicanos dessa época foi
indubitavelmente Francisco António de Moura, que morreria a 12 de
Fevereiro de 1910 e, assim, a menos de 8 meses da proclamação do
regime pelo qual pugnara durante mais de meia centena de anos.
O órgão do partido
(6)
assinala-lhe o falecimento ocupando toda a primeira página e desta
passando à imediata, pois que «Francisco António de Moura em uma
relíquia veneranda dessa legião de intemeratos republicanos que
sempre se nortearam pelos mais elevados ideais democráticos, e que
nunca torceram caminho, contemporizando com os poderosos influentes,
que, nesta agonia do regime, têm, em defesa do trono, acendido as
velas no altar e que pelas regalias da igreja precipitam a monarquia
no abismo do retrocesso e da opressão».
E no encomiástico artigo necrológico
– como todos os desta feição pecando pela superlativação de
virtudes, efectivas embora –, depois de apontar alguns dos homens
que em Aveiro, com ele se ligaram «contra essa floração de pântano»
e entre os quais surgem revelados os nomes ainda não mencionados de
António da Silva Pereira e do Dr. José Crispiano da Fonseca – que
dirigia os correios e apenas clinicava graciosamente – aponta-lhe
«virtudes que fizeram dele um cidadão exemplar». E acentua que «O
Centro Escolar Republicano de Aveiro se deve em grande parte à
iniciativa tenaz de Francisco de Moura».
E, mais, como, aliás, ficou na
memória, ao mesmo tempo que lhe recordava a «conversa alegre e uma
bonomia constante e uma indulgência, sem vacilações», assinalava o
seu larguíssimo espírito de solidariedade humana:
«Da farmácia de Francisco de Moura
saíram, de graça, muitos remédios para acudir aos desgraçados. E
daquela gaveta recôndita quantas esmolas sufocavam os frémitos da
dor. Tudo, porém, se passava evangelicamente, no segredo, a ocultar,
nesse vago receio de que alguém sonhasse esses benefícios.»
Não está no propósito destas notas
rememorativas dar, mesmo fugazes, traços biográficos dos mais
antigos,
/ 20 / constantes e
prestimosos republicanos do tempo da propaganda. Apenas, a talho de
foice, nos detivemos em algum deles e, neste em particular porque,
como escreveu um seu correlegionário: «jamais encontraremos quem o
substitua nos trabalhos partidários, a que se entregava de alma e
coração».
O aludido Centro Escolar Republicano
foi criado ao termo do primeiro trimestre de 1909. O órgão do
partido, «O Democrata» (7), aliás fundado apenas um
ano antes, tendo como director Arnaldo Ribeiro e redactor principal
o Dr. André dos Reis, revelando a sua próxima entrada em
funcionamento, agregadora, incentivante, observava que havia já
anteriormente anunciado para as actividades partidárias uma nova
fase de actividade e progresso que as faria sair definitivamente da
apatia em que se vinham arrastando. E num artigo que intitula «A
Instalação dum Centro», exprime-se nos seguintes elucidativos
termos:
«Havia vontades, havia elementos,
havia forças, mas tudo disperso, sem coesão, sem esse alento e sem
esse ânimo que a união dá, sem esse entusiasmo que nasce do mútuo
auxílio e do mútuo incitamento.»
E, mais alguns passos adiante,
prosseguia: «Nunca nos faltou a convicção, nunca a nossa fé se
quebrantou, nunca nossas vontades e nossa abnegação pelos mais
grados ideais teve um desfalecimento. Nunca nos arrependemos nem
choramos os nossos esforços, mas algumas vezes nos sentimos faltos
de companheiros resolutos e desassombrados que nos animassem com a
sua propaganda e nos aquecessem com a sua actividade.
|
|
Alberto Souto |
«Porque eles não existissem? Não;
porque eles não reuniam as suas almas numa só alma, as suas vontades
numa só vontade, os seus braços num só braço, os seus esforços num
só esforço dominador e imponente.
«O que faltava ao Partido
Republicano de Aveiro, o que nos faltava a nós, à nossa ideia, era
alguma coisa que nos juntasse e nos prendesse, com interesse, com
capricho, com alegria. Faltava-nos a acção, o calor das multidões e
dos ajuntamentos, faltava-nos o amor, a paixão impetuosa, e, numa
palavra, faltava-nos um Centro».
E, considerando este como uma
necessidade a tomar no imediato, pois representava uma aspiração em
todos os republicanos Aveirenses, latente, refere que nesse sentido
se tinham, há tempo, encetado os trabalhos preliminares da
concretização desse desejo, e efectuado «as combinações, os
preparativos, os delineamentos da magnífica e frutuosa ideia, no
silêncio, quase no segredo».
Ora o Centro ia ser inaugurado, a
curto trecho. («Finalmente! Felizmente!») E dava uma ideia das
instalações e da função que ia exercer. Centro escolar, teria
«sempre as suas salas franqueadas aos sócios e proporcionar-lhes-ia,
além de inocentes passatempos, como qualquer clube, leituras e
conferências de toda a utilidade».
Depois descreve a sede escolhida
para o Centro, na «espaçosa casa da Rua do Campeão das Províncias
que olha, do cimo da Rua de José Estêvão, onde esteve instalada a
Creche». (8)
Nessa descrição pormenoriza: «A
casa, que possui magníficos salões, numerosos compartimentos e um
vasto quintal, onde se realizarão os nossos comícios, visto que pode
comportar 8000 pessoas, pertence ao Sr. Dr. Casimiro Barreto Ferraz
Sachetti, par do antigo reino e antigo governador civil do distrito
na situação franquista ».
Com espírito de justiça frisa mesmo:
«Não queremos deixar de nos referir ao nobre procedimento de S.
Ex.ª, que, ao contrário do costume de muitos monárquicos (...) não
teve dúvida alguma em nos alugar o seu prédio, declarando com a
correcção e delicadeza própria do seu esmerado e fino trato que nada
tinha com as ideias dos seus novos inquilinos, e que, por isso, não
fazia dúvida alguma em entregar ao partido republicano de Aveiro a
chave da sua casa». Seria motivo essa atitude de tolerância para que
nela pusessem os olhos «os entes mesquinhos e odientos que por todos
os meios procuram contrariar a nossa propaganda...»
Para tratar da inauguração do centro
efectuou-se uma reunião de republicanos, os quais nomearam para
gizar um programa e lhe dar execução um grupo de correligionários
constituído por António Augusto da Silva, Manuel Marques da Cunha,
Bernardo de Sousa Torres, António Maria Ferreira e Manuel Lopes da
Silva Guimarães.
Essa comissão – cujos nomes damos
apenas para que, mesmo em repetição, fiquem registados entre os
propugnadores dos princípios republicanos antes do advento do novo
regime – seria praticamente dispensada do trabalho da inauguração
inaugural para que fora designada.
A inauguração seria suprida, ao que
somos levados a crer, por uma sessão solene efectuada em 21 de Março
(9) e que «festejava a estada em Aveiro do nosso eminente
correligionário Sr. Dr. Manuel de Arriaga
(10) que da melhor
boa vontade acedeu ao convite da comissão instaladora do Centro
Escolar Republicano para o visitar...»
O futuro Presidente da República
que, a convite de António Maria Ferreira, assumira a presidência e
se fez secretariar por José Gonçalves Gamelas e Adriano Costa, foi
alvo de entusiástica manifestação.
Abriu o seu discurso, declarando ter
dito na conferência que viera proferir no Teatro Aveirense sobre o
grande e simpático vulto da liberdade que era
/ 21 / José Estêvão apenas um
terço do discurso que tinha em mente. Hóspede como era, não queria
vir a Aveiro, com a sua apreciação e com as suas ideias políticas,
suscitar inimizades e levantar malquerenças naqueles que o haviam
convidado. No Centro, porém, diria tudo quanto tencionava dizer e,
assim, lendo repetidas passagens dos discursos de José Estêvão,
analisou as suas ideias. E, tirando as suas ilações dos trechos
lidos e glosados, afirmaria ter sido o egrégio Aveirense monárquico
por se haver deixado influenciar pelas tradições e, assim, com o seu
pendor romântico e a sua boa fé ingénua, quis conservar a figura
decorativa de um rei que reinasse sem governar. E, na sequência das
suas considerações fluentes, acentuou as puras intenções que ele
pretendia: a coroa despida de todos os privilégios perigosos para a
soberania do povo e para a liberdade, o que para ele, orador, se
afigurava uma autêntica fantasia.
Reportando-se depois ao Partido
Republicano, e ao encargo difícil e pesado que lhe cabia «de
libertar a pátria e unir os homens num estreito abraço de
solidariedade, pela justiça e pelo bem», recomenda a preparação
metódica e conglomeradora para o combate na cruzada de emancipação.
E, «pensando na revolução e preparando-a como deve ser», mas tendo
no pensamento que era «preciso, contudo, não falar na revolução para
que ninguém o espere. A revolução há-de fazer-se de improviso,
embora preparada maduramente no silêncio».
Nessa sessão, ao mesmo tempo
revestida de solenidade e de desbordante expansão de entusiasmo,
além do discurso de Manuel de Arriaga, «repassado de uma sinceridade
e de uma fé admiráveis, cheio de graça e com todos os encantos da
sua alma poética», falaram ainda Rui da Cunha e Costa, Alberto Souto
e, por fim, Pádua Correia, que, na sua persistente tarefa de
apostolado republicano, frequentes vezes veio a Aveiro.
Ora, uma vez inaugurado, o Centro
Escolar Republicano empenhou-se em cumprir efectivamente os
propósitos que determinaram a sua criação. E nos meses subsequentes
a esta desenvolveu uma actividade constante.
Assim, se já em 3 de Abril anuncia
que a secretaria, aberta todos os dias das 8 às 10 horas da noite
tem patente a inscrição para novos sócios – já que o número de
republicanos notoriamente ia engrossando, em 15 de Maio seguinte
divulgava na Imprensa que os eventuais interessados – na mesma
secretaria, e agora desde as 6 da tarde até às 10 da noite – poderão
inscrever-se como alunos da escola que pusera em funcionamento.
Logo, todavia, dá começo a uma série
de conferências e reuniões de propaganda política.
Assim, nesse dia 15 de Maio, o Dr.
António Maria Marques da Costa – cuja apresentação foi efectuada
pelo activo Rui da Cunha e Costa – dissertou sobre o tema «A Higiene
da Criança» e, uma semana exacta depois, «o ilustre democrata de
Espinho», poeta de celebrados méritos, amigo e correspondente
assíduo de Unamuno, Dr. Manuel Laranjeira, dissertaria Sobre «O que
entre nós deve entender-se por mudança de regime».
E nessa última data já pode, pois,
escrever-se (11) que: «o Partido Republicano entrou
decisivamente numa fase de actividade que muito nos anima e de que
há a esperar muito lisonjeiros resultados para a causa da República
e da Pátria».
Alfredo de Magalhães viria bastas
vezes a Aveiro, quer em 9 de Maio, pronunciando no Centro uma
conferência, a que presidiu Francisco António de Moura, quer, por
exemplo, em 30 do mês referido, após um comício em que participou,
na antiga vila de Eixo. E, então, falando na mesma agremiação
republicana Aveirense, a par de Alberto Souto e de Bartolomeu
Severino, «fez um dos mais primorosos discursos que lhe temos
ouvido». (12)
Poderia alongar-se a lista das
iniciativas tomadas nesse período de entusiasmo pelo Centro. As
citadas, todavia, supomo-las suficientes para comprovar o afã com
que se lançou na propaganda.
Anotemos todavia que nele se
efectuaram, a 3 de Junho, as eleições para a Comissão Municipal
Republicana de Aveiro, que, segundo a lei orgânica, deveria «gerir
os negócios concelhios do partido durante o
/ 22 / futuro triénio», mas
que, afinal, dado que a almejada proclamação da República demoraria
já apenas uns dezassete meses, não chegaria a terminar o mandato.
A comissão ficara constituída do
seguinte modo: Efectivos – Bernardo de Sousa Torres, António da
Cunha Coelho, Manes Nogueira, António Maria Ferreira e Manuel
Augusto da Silva. Substitutos – José Marques de Almeida, Arnaldo
Ribeiro, Francisco Miguéis Picado, Manuel Barreiros de Macedo e José
Pereira de Carvalho Branco.
Vários destes nomes aparecerão,
implantada a República, dezasseis meses depois, a preencher lugares
nos quadros políticos e administrativos. Um deles, homem de muito
isento idealismo e que no seu estabelecimento de livraria, aos
Arcos, tinha a assídua frequência de muitos dos mais ilustrados e
firmes de convicções, Bernardo Torres, viria mesmo a ser presidente
da Municipalidade.
E, porque vem a propósito, uma vez
que já neste elenco directivo figura como suplente, lembremos que
por toda a vida – que não foi das mais curtas – ficaria substituto
Manuel Barreiros de Macedo, industrial de padaria, de inabaláveis
sentimentos republicanos, de letras gordas, canhestro de elocução,
impreparado intelectualmente, mas generoso, sempre pronto a puxar os
cordões à bolsa para as iniciativas partidárias, e a que em sinal de
reconhecimento se atribuía apenas e inalteravelmente um cargo sem
função. («Sempre substibruto! sempre substibruto»! –lamentava-se ele
um dia, num desabafo de homem desgostoso por ser sistematicamente
relegado para um posto secundário e sempre inactivo).
Os filiados aumentam em número, e os
quadros vão sendo formados. O regime monárquico está abalado,
infirme, à mercê de um movimento insurreccional que não se sabe
quando surdirá, mas cuja eclosão se pressente (e não só pelos que a
desejam) para um futuro próximo. E, nessa persuasão, assente em
seguros prenúncios, efectua-se, para prevenir qualquer
eventualidade, uma prévia formação de equipas para os postos da
administração pública, logo que haja que ocupá-los.
A revolução republicana, que iria
derrubar as velhas instituições ao eclodir em Lisboa, não terá
constituído, pois, uma inteira surpresa. Havia, ao que é de
presumir, quem estivesse no conhecimento dos preparativos. Mas, como
se impunha, mantinha o segredo desses secretos trabalhos numa
pequena roda de correlegionários discretos e seguros. Nos demais,
ainda que houvesse um pressentimento, não existiam concretos
elementos que habilitassem a crer na brevidade da acção e do êxito.
Ora, como diria um dos periódicos
locais, quando a Aveiro chegaram, reiteradas e com crescentes
motivos de crédito, os rumores da revolução do Cinco de Outubro em
Lisboa e do seu êxito: «O berço da liberdade chamada não se
manifestou, não veio à rua de armas na mão, em defesa ou das velhas
instituições ou da causa da República».
(13)
E o mesmo conceituado jornal
aveirense – que logo em 1852, no seu número um, insere um artigo do
punho de José Maria Teixeira de Queirós
(14), pai do
romancista Eça de Queirós, que não se afasta muito dos princípios
preconizados para a República então implantada – dá, sucintas e
impressivas, as razões da expectativa com que a população Aveirense,
prudente mas ansiosa, se conservou nessa expectativa:
«Aveiro, que não decidiria do
triunfo, assistiu serena até ao fim, ao desenrolar do sangrento
combate, ávida de notícias desde o primeiro instante – dessas
notícias que ainda hoje se não conhecem em todas os seus
pormenores».
E, na sequência do breve panorama
que traça, com bastante objectividade, do ambiente de contenção, de
receio de uns e esperança de outros, observa que a sensação colhida
pelo articulista era a de que o movimento político desses dias, de
intensíssimas vivências, e nas suas repercussões e vivas impressões,
«produziu no ânimo público desta boa e pacata terra portuguesa, onde
havia adeptos da monarquia e sólidas dedicações à República, mais
ninguém quis o derramamento de sangue, que seria inútil sacrifício,
sem vantagem para a causa que se debatia.
«Assim, desde as primeiras horas,
desde o primeiro momento, se procurava obter informações que nem o
telégrafo nem os jornais, nem mesmo os passageiros dos comboios,
que, provindos do sul, tocam na estação dos caminhos de ferro da
cidade, conseguiram trazer-nos».
E completa o seu depoimento, que se
sente de um entusiasmo mitigado pelo desejo de não trair os factos
tais como se passaram, e não entre qualquer das parcialidades
políticas, mas na generalidade da população:
«Esses dias (digamos de 4 a 6) foram
de uma ansiedade atroz, cruel. cortadas as comunicações
telegráficas, embaraçada a circulação nos caminhos de ferro, tivemos
de contentar-nos com a incompleta informação dos jornais do Porto,
que tiveram larga procura – como nunca atingiram».
O primeiro jornal Aveirense que
menciona a revolução é «O Democrata».
(15) Na primeira
página, composta ainda e impressa na ignorância da revolução,
noticia já com certo relevo a morte de Miguel Bombarda. Antes de
completas, porém, as páginas interiores, a novidade, imprecisa, sem
pormenores, surde cheia de ambiguidades e incertezas. A impressão
ficara suspensa, com os responsáveis do semanário e amigos /
26 / políticos mais fiéis e
mais ansiosos em vigília, à espera da ansiada notícia da vitória.
Estão todas a postos, para que o jornal circule com a boa nova já na
manhã desse dia seis, em que todos estavam em alvoroçado deseje de
conhecer os acontecimentos da capital.
De manhã, o jornal, nessa altura,
como se viu, órgão do partido republicano em Aveiro e, por
conseguinte, com maiores obrigações de informar, e animar,
encontrava-se em distribuição, podendo já, em tipo de maior
evidência, inserir uma local, na terceira página, com o seguinte
teor:
«À hora a que escrevemos, seis da
manhã, continua a não saber-se nada de positivo de Lisboa, que ainda
se conserva isolada do resto do país, pelo corte das linhas.
«Há, porém, quem afirme que a
República foi implantada, reinando já completo sossego».
E, não atentando no sabor monárquico
daquele gerúndio «reinando», dava já algumas indicações do que se
passava em Aveiro de mais saliente:
«O Regimento do 24, que tem estado
de prevenção e havia de sair hoje pela manhã com destino
desconhecido, conserva-se no quartel, por virtude de outra ordem. A
força de cavalaria que ontem partiu para Coimbra, sob o comando do
tenente Calheiras, chegou àquela cidade onde até ontem às oito horas
não havia a mais leve sombra de alteração de ordem, posto que os
espíritos estejam exaltados.
«Em Aveiro a ansiedade é geral, a
avaliar pela grande quantidade de gente, incluindo as autoridades
civis e militares, que à noite se junta na estação, à hora dos
comboios. Do Porto não se sabe ainda de nada. Mas é natural que esta
noite a revolução ali tivesse rebentado, secundando Lisboa.
«Pelas ruas de Aveiro juntam-se
agora enormes magotes de populares, que, com entusiasmo, entoam a
«Marselhesa». A bandeira do «Centro Republicano», depois de ter
estado dois dias a meio pau, em sinal de sentimento pela morte do
Dr. Bombarda, encontra-se neste momento no topo do mastro.
«Reina grande entusiasma na cidade,
vendo-se muita gente pelas ruas e janelas.
«Na centro da cidade, junto aos
Arcos, começaram as manifestações, soltando os populares estridentes
vivas à República, ao exército e à marinha. Dizem-nos que se vão
dirigir ao quartel para aclamar o regimento de infantaria 24.
«Saindo, como sai, este número com
um dia de antecedência, logo que se confirmem oficialmente as
notícias que damos debaixo de reserva, publicaremos tantos
suplementos quantos sejam precisos para de tudo darmos conta aos
nossos leitores.
Entretanto, brademos:
«Viva a República Portuguesa!»
Os suplementas, sucessivos, a
circular ainda com tinta fresca, com as novidades mais recentemente
chegadas, saíram e avidamente foram procurados e lidos. Nas
colecções do periódico não existem todavia e, assim, não nos é
possível acompanhar as demonstrações de júbilo que a confirmação do
êxito da revolução suscitava, de cada vez mais calorosas.
A certeza indubitável da proclamação
da República só se adquiriria já quando dealbava o dia sete. Os
suplementos aludidos, nesses dois primeiros dias de inquietantes
dúvidas e ardorosos anseios, de tensão
/ 27 / compreensível para uma
provável mudança de instituições e de pessoas nos cargos da
administração pública, iriam mantendo e acalentando os ânimos.
Assim, nessa sexta feira, que na
expressão adaptada por «O Democrata»
(16) pelas
expansões de satisfação verificadas, «ficará memorável na história
de Aveiro» – e tanto que neste momento o estamos a relembrar – com
uma breve preparação, um sumário passar de palavras, efectuou-se a
implantação Aveirense do novo regime.
E, naturalmente, o primeiro acto
público desse acontecimento histórico efectivou-se nos Paços do
Concelho, onde a bandeira, a do Centro Republicano, ao que supomos,
teria sido hasteada pelo Dr. André dos Reis, por entre aclamações
intensamente calorosas, simultâneas com o entoar de «A Portuguesa» –
por um ou outro dos presentes acompanhado, num coro pouco conexo, já
que esse hino patriótico era até ali suspeito de subversivo, e
poucos com ele se encontravam familiarizados – pela «Banda Amizade»,
que nessa ocasião, por qualquer circunstância pouco perduradoura,
adaptara a transitória designação de Banda dos Bombeiros
Voluntários». (Dos «velhos», entenda-se, que já, entretanto, se
fundara nova corporação dos «novos» ou dos «Guilhermes».)
E, após essa concreta afirmação do
advento da República, a que estiveram presentes os mais qualificados
adeptos dos ideais triunfantes, e a exalçante manifestação cívica em
que ela se desenrolou, realizou-se uma série de actos similares, em
sucessivas etapas.
Segunda a descrição que temos
presente, (17) e que sintetizaremos, cerca do meio-dia, as
pessoas que tiveram conhecimento da repetição, noutros locais
representativos, da cerimónia do içar da bandeira que consagrava a
instauração das novas instituições, dirigiram-se ao aquartelamento
de Infantaria n.º 24. Aí, na presença do Secretário-Geral do Governo
Civil – que, como é óbvio, o governador deixara de exercer funções –
do Capitão do Porto de Aveiro, de toda a oficialidade e de «grande
concurso de povo» – que, entretanto, ia reengrossando – o comandante
da unidade, coronel António Ernesto da Cunha, içou a bandeira,
«entre estrondosos vivas à República, à Pátria livre, ao Exército, à
Marinha, etc., aclamações que todos os presentes secundaram,
executando a banda – a velha, e sempre participante em todos os mais
significativos momentos da vida Aveirense, «Banda Amizade» – a
«Portuguesa», e apresentando armas à guarda, que formara, em frente
do quartel.
E o relato, em que o dia jubiloso da
definitiva integração de Aveiro no regime implantado, partilhando do
regozijo público, acrescenta:
«Quando a bandeira chegou ao topo do
mastro, o Alferes Costa Cabral, (18) o denodado republicano,
ergueu do coração um viva à República. O seu camarada Leite
(19)
e muitos outros ergueram também vivas entusiásticos, falando a
seguir os drs. André dos Reis e Joaquim de Melo (que teremos ocasião
de encontrar em subsequentes referências), entre constantes
ovações».
Os manifestantes, então já
acompanhados pelos oficiais, e com as bandas a executar composições
marciais, tomara rumo ao quartel, então denominado da «brigada»,
onde se repetiu a cerimónia. Neste ensejo, com desbordante vibração,
usaram da palavra, de novo o Dr. André dos Reis e, já então,
caloroso como se manteve até ao fim da vida, e com permanente ardor
de democrata inquebrantável, o alferes Costa Cabral. A manifestação
repetiu-se ainda, com as mesmas características não só em frente à
Capitania do Porto, mas também junta do quartel da Guarda-Fiscal. No
primeiro daqueles lugares foi intérprete dos sentimentos populares o
Dr. António Fernandes Duarte Silva que, «comovido, produz uma
magnífica oração, arrancando da numerosa assistência veementes
aplausos». Na segunda, o orador, também com reiteradas provas dadas
de republicanismo, foi o Dr. Marques da Costa.
E a ronda pelas unidades militares
aquarteladas na cidade com a mesma acendrada vibração terminou no
Distrito de Reserva, onde a nova bandeira foi então içada pelo
Capitão Rosa Martins, «carácter austero e republicano intemerato» e,
da varanda do edifício, encerrou a série de discursos com a beleza
de expressão que o distinguia, «o tenaz lutador Alberto Souto, que
produziu um arrebatado e comovente improviso, que o povo retribuiu
com uma das manifestações mais entusiásticas e ardentes a que temos
assistido».
O cortejo de manifestantes deteve a
marcha durante algum tempo defronte da redacção de «O Democrata»
e aí, conquanto não houvesse discursos, o calor do júbilo popular
recrudesceu. O semanário, à volta do qual, no período imediatamente
anterior à mudança da regime, se aglutinavam os mais denodados e
intrépidos prosélitos dos ideais republicanos, na ocasião não fora
apenas o intérprete fiel dos sentimentos de natural euforia destes.
Com os sucessivos suplementos, em que especialmente Alberto Souto e
André dos Reis e talvez o Rev.º Dr. António Fernandes Duarte Silva
se aprimorariam na forma, com intuitos de empolgamento, estimulava a
população para o ambiente de apoteótica consagração da República
recém-surgida.
Nesse mesmo dia, e antes que viesse
a ser nomeada a comissão Administrativa para a edilidade, o que só
viria a manifestar-se após a posse do primeiro governador civil do
distrito do novo regime, foi designado – com a aprovação dos adeptos
com mais provadas demonstrações de fidelidade ao novo regime, um
«Comité
/ 28 / Republicano» que logo
endereçou ao Governo Provisório um telegrama de calorosa saudação,
de confiança na sua acção e de alegria pela implantação da
República. Propôs os nomes – porque embora não houvesse a certeza
absoluta, abundavam os motivos de convicção de que a monarquia fora
derrubada –entre os que julgou com melhores aptidões e com passado
de maiores garantias de fidelidade e capacidade, o Dr. Joaquim de
Melo Freitas, que já em 1882 colaborara no recém-saído dos prelos «Povo
de Aveiro», o primeiro semanário republicano aveirense, como já
referimos.
Essa comissão ficou constituída por
Alfredo de Lima e Castro, Dr. André dos Reis, Eduardo de Pinho das
Neves, Alberto Souto (ainda então com apenas encetado o seu curso de
Direito), José Marques de Almeida, Dr. Padre António Fernandes
Duarte Silva e Arnaldo Ribeiro.
E no dia imediato àquele em que foi
designado esse grupo coordenador e orientador dos primeiros passos
do regime recém proclamado publicou, com larga difusão na cidade e
no concelho, como que o primeiro documento oficial, a seguinte
PROCLAMAÇÃO
«O Comité Revolucionário de Aveiro,
hontem, 6 do corrente nomeado nos Paços do Concelho, por 11 horas da
manhã, pelo povo, que nas ruas da cidade aclamou a República
Portuguesa, depois de hasteada no mesmo edifício a bandeira vermelha
e verde, comunica ao povo estarem officialmente confirmadas as
notícias da proclamada República, reinando em todo o país a melhor
ordem e sendo este acto redemptor da Pátria por toda a parte
acolhido com o mais vivo enthusiasmo.
André dos Reis
Primeiro Presidente da Câmara Municipal de Aveiro
O Governo da Republica tem inteira
confiança na dedicação de todos os cidadãos ao novo regimen do
Progresso, da ordem e da liberdade, e que foi implantado em Lisboa
pelo Exército e Armada, unidos ao povo, em heroica lucta, e, que,
secundado em todo o paiz, enche de alegria o coração de todos os
portuguezes.
O Comité Revolucionário de Aveiro,
que se acha instalado nos Paços do Concelho e em sessão permanente,
assegura a todos a ordem, o respeito e a cordura de que o povo de
Aveiro deu provas nas grandiosas manifestações ao glorioso dia 6 de
Outubro.
/ 29 /
|
Em Aveiro
O povo d'esta cidade acclama
enthusiasticamente a Republica
AVEIRO, 6. – T. – Só hoje de
manhã foi confirmada a noticia do triumpho da revolução, ouvindo-se
immediatamente, por toda a cidade, enthusiasticos vivas á Republica.
Bandas de musica, acompanhadas de muito povo e marinheiros da
armada, que conduzem a bandeira republicana, percorrem as ruas em
grandes manifestações, dirigindo-se depois ao quartel de infantaria,
onde acclamaram vibrantemente o exercito. D'ali seguiram para a
capitania, a saudar o capitão do Porto, e para o edificio da camara
municipal, onde içaram o estandarte republicano. Foi nomeada uma
commissão para gerir os negócios municipaes, a qual telegraphou ao
ministro do interior, participando o ocorrido.
Às 3 horas da tarde foi arvorada
a bandeira republicana no edificio da capitania, falando o capitão
do porto ao povo, que o applaudiu phreniticamente,
É grande o enthusiasmo que
avassalla todos os espiritos. As manifestações continuam, sendo
muito acclamada a constituição do governo provisorio.
«O Século», n.º 10353 (30.º ano), de
8-X-1910
|
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O governador civil nomeado para
Aveiro é o sr. dr. Pires de Carvalho, um dos mais valorosos e
inteligentes organizadores do movimento republicano na província,
que em breve tomará posse do seu cargo.
Paços Municipaes de Aveiro, 7 de
Outubro de 1910. André dos Reis, José Marques de Almeida, Eduardo
Pinho das Neves Padre António Duarte Silva, Arnaldo Ribeiro, Alfredo
de Lima e Castro, Alberto Souto.
Teve muito intensa vibração a
manifestação de simpatia à Marinha, efectuada junto à Capitania do
Porto, então instalada à beira da ponte da Dobadoura, num prédio do
gaveto formado pela estrada para a Gafanha e a rua para o Matadouro
– hoje Cais do Paraíso.
Os marinheiros – os quais já
anteriormente haviam sido distinguidos com outras evidenciações de
simpatia, como confiarem-lhes a bandeira verde rubra da revolução
vitoriosa em anteriores manifestações – foram vitoriados com
desbordante vibração.
E o Capitão do Porto, Comandante
Júlio César Ribeiro de Almeida, profunda e consabidamente prosélito
da República, proferiu um discurso em que, empolgado e empolgante,
terá exteriorizado todo o seu contentamento e toda a sua confiança
na aplicação dos seus ideais à vida nacional. Este oficial da Armada
viria mais tarde a ocupar o cargo de governador civil.
Nesse dia 6, anunciados que haviam
sido, ainda que não oficialmente, os nomes dos novos chefes do
distrito, constou que seria nomeado Governador Civil de Aveiro, o
Dr. Pires de Carvalho, um republicano categorizado, com um passado
de dedicação à causa, que assumia o poder com os propiciatórios
votos de uma considerável parcela da população nacional. O seu nome
chegou a ser designado na Imprensa para essa função
(20) e
não teria sido mal recebido na capital do distrito ainda que não
suscitasse demonstrações de grande concordância e agrado, como se
comprovaria na proclamação entretanto publicada.
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Albano Coutinho
Primeiro governador civil de Aveiro |
Afinal veio a ser nomeado para
exercer aquelas funções uma figura muito mais conhecida no distrito,
do qual era considerado o decano dos republicanos – Albano Coutinho.
E esse, sim, obteve o aplauso, pode dizer-se unânime dos seus
correligionários e mesmo, pelo sempre comprovado espírito de
tolerância e equilíbrio, a boa aceitação dos que não sendo
republicanos, não hostilizavam o regime, e antes o encaravam com uma
expectativa benévola.
Apesar de haver nascido em Lisboa –
a 5 de Dezembro de 1848 – era considerado, por afeição e serviços
prestados, uma das mais destacadas figuras bairradinas. Aliás, por
morte do pai, esse sim, anadiense de nascimento, o jornalista Albano
Augusto de Almeida Coutinho (21), transferiu, com carácter de
permanência efectiva, o seu domicílio para Mogoforos. O devotado
/ 30 / e conceituado
democrata, que além do Curso Superior de Letras frequentara o
Instituto Geral de Agricultura, aplicando os conhecimentos neste
adquiridos e dedicando-se a esclarecidos labores agrícolas, e, em
consequência, adquirindo uma experiência pessoal rica, consagrou-se
especialmente à viticultura, impulsionando-a e imprimindo-lhe, pelo
exemplo e pela persuasão, moldes mais modernos, científicos e
fecundos. E, como era próprio do seu civismo actuante,
evidenciar-se-ia como um dos mais estrénuos defensores dos
interesses da agricultura da região.
Desempenharia, assim, um dos mais
representativos cargos do Sindicato Agrícola do Distrito de Aveiro,
tendo sido igualmente membro do Conselho de Agricultura e
representante do nosso país ao Congresso de Viticultura de Legon, em
1894.
Essa circunstância, a par da sua
actividade, quer oral, quer por escrito, na difusão e exaltação dos
ideais republicanos – colaborou em diversos jornais, alguns
notoriamente da feição política em que militava, e entre eles a «Gazeta
de Portugal», «República Portuguesa», «Diário da Tarde»,
«Democracia» e «O Século» – deram-lhe notoriedade e
prestígio no distrito. Desse modo, é conhecida a sua ponderação e
tolerância, teve em volta do seu nome um ambiente de muito extensa
boa acolhida. Em Anadia viria a falecer em 31 de Agosto de 1936.
|
O seu espírito de larga tolerância e
conciliação não seria, aliás, secundado pelos correligionários mais
exaltados, de mais farisaica intransigência, de parcialismo mais
discriminativo. E esse facto, como veremos, levá-lo-ia a pedir
escusa da função, a curto trecho.
Entra, no entanto, no exercício do
cargo com a mais decidida disposição de servir o País, a República e
o Distrito, cuja governação lhe fora confiada, por um velho amigo e
companheiro da propaganda, o Dr. António José de Almeida, que essas
circunstâncias, como Ministro do Interior do Governo Provisório,
invocara para lhe obter a anuência para o desempenho de uma missão
que se antevia com espinhosas incompreensões.
|
O acto de posse, muito concorrido e
com afirmações da mais firme convicção nos ideais republicanos,
ainda sob o ambiente de alegria em que os prosélitos do novo regime
fremiam e era como que o denominador comum que os congregava, deixou
a impressão de unidade que o momento requeria. Unidade fugaz, se não
ilusória, porque os dissentimentos não tardariam a manifestar-se. E
já não diremos com Homem Cristo, que rompera declarada e acerbamente
com algumas das figuras de maior evidência e, em reflexo dos
violentos ataques que lhes dirigiu, ou por motivos directos, com
diversos dos republicanos locais, mas entre estes mesmos, que não
demoraram em manifestar divergências e a malquistar-se.
Na cerimónia da posse, conferida
pelo Secretário-Geral, o primeiro chefe do distrito, para nos
servirmos das palavras com que se lhe refere um diário da Capital
(22) – mais sucinto que os semanários locais – Albano Coutinho,
«agradecendo a presença das pessoas que o honravam com as suas
simpatias, declarou que faria tudo quanto em si coubesse para bem da
Pátria e da República».
Depois, mais uma vez exteriorizando
sem peias o republicanismo que a circunstância de ser funcionário,
ainda que o não ocultasse, obrigava a conter em limites restritos,
falou o Dr. Joaquim de Melo Freitas, que tantas vezes seria, fiel,
fluente e cintilante, o porta-voz dos sentimentos Aveirenses. E,
segundo a síntese do mesmo matutino órgão de informação lisboeta,
«produziu uma magnífica oração, cheia de fé, exclamando, num dos
períodos do seu belo discurso que, se qualquer das assinaturas ali
feitas, não representava adesão leal e sincera, quem assim fizesse
seria simplesmente um canalha». Anota de seguida a reacção dos
assistentes à oração do ilustre Aveirense: «Estrondosas palmas,
enorme ovação se produziu na assembleia, após essas palavras tão
alevantadas e francas». / 31 /
E, tal como o Diário de Notícias
da antevéspera (23) assegura que a pequena e pacata cidade
dos canais – à qual só os ardores da política, então como em
precedentes ensejos, arrancavam à placidez rotineira -permanece em
ordem completa.
O Democrata
(24), embora também resumidamente, noticia com pequenos pormenores a
mais o acto de posse, referindo o modo como Albano Coutinho se
congratulou com o advento da República e a afirmação do muito que se
orgulhava por ter sido um dos mais dedicados cooperadores para o seu
estabelecimento em Portugal. Igualmente refere que o Dr. Joaquim de
Melo Freitas, que, na sua qualidade de primeiro oficial do Governo
Civil, leu o auto de posse, aclarou a sua situação de republicano de
antigas e inabaláveis convicções como empregado público adentro das
instituições monárquicas.
O referido número do Diário de
Notícias, na mesma notícia do seu correspondente em Aveiro,
dizia que antes mesmo da posse, Albano Coutinho foi saudado por
«grande assistência de manifestantes» e que, calorosamente
ovacionado, saudou com férvida e comunicativa persuasão o povo da
capital do distrito e a jovem República, que desde a mocidade fora a
sua aspiração mais cara.
No prosseguimento dessa local,
escrevia-se naquele quotidiano:
«Falou depois o Sr. Malva do Vale,
historiando rapidamente os acontecimentos e congratulando-se com o
povo pelo seu novo chefe.
«Seguiu-se o Sr. Dr. António Breda,
que foi saudado vibrantemente, produzindo um dos seus costumados
discursos entusiásticos, felicitando tanto o novo chefe do distrito,
como o povo republicano.
«Longas salvas de palmas cobriram as
últimas palavras do orador, que é muito simpático e querido por
quantos avaliam a sua lealdade e convicções.»
E, uma vez empossado, Albano
Coutinho confiou a administração do concelho ao já mencionado
oficial de infantaria César Amadeu da Costa Cabral, a quem cometeu o
encargo de conferir posse à comissão administrativa do município,
isto é, à primeira edilidade republicana. Para a constituir, de
acordo com os correligionários locais, tinha designado que essa era
a denominação «revolucionária que, na altura e durante algum tempo
depois, se dava aos simples indivíduos ou aos antes designados como
cavalheiros ou personalidades – os seguintes «cidadãos»:
Efectivos – Dr. André dos Reis,
presidente; Alfredo de Lima e Castro, vice-presidente; Eduardo de
Pinho das Neves, Francisco Miguéis Picado, Manuel Lopes da Silva
Guimarães, Francisco Casimiro da Silva, João Afonso Fernandes e
António Maria Ferreiro;
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Substitutos – Henrique dos Santos
Rato, Manos Nogueira, Manuel Marques da Cunha, Bernardo de Sousa
Tarros, Domingos Martins Vilaça, Eugénio Ferreira da Costa, João da
Cruz Bento, António da Cunha Coelho e Amândio Ribeiro da Rocha.
O órgão republicano,
(25) ao
noticiar a instalação da comissão que passava a gerir os negócios
municipais Aveirenses, considera-o composto de «correligionários
nossos de reconhecida competência, os quais se acham animados da
melhor boa vontade de serem úteis à nossa terra, sem contudo
enveredarem pelos antigos processos administrativos usados pelos
seus antecessores monárquicos».
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Dr. Joaquim de Melo Freitas |
Aliás, o semanário não terá reparado
que na redacção da local, condenando os processos das vereações do
regime deposto tacitamente lhe reconhece a eficiência. E nesse
aspecto a algumas das antecedentes administrações prestaria justiça,
já que obra fizeram dentro dos escassos recursos que o erário
municipal lhos facultava, e indiscutivelmente esforçada.
No acto de posse, o Dr. André dos
Reis, com a ênfase com que realçava a forma cuidada, peculiar desde
novo aos seus discursos, foi o primeiro orador da cerimónia, que se
efectuou na sala das sessões dos Paços do Concelho, ainda decorada
pela forma que tomara quando da homenagem prestada ao Conselheiro
Castro Matoso, em 1906, e que se encontrava repleta.
Antes de gizar, a traços largos, um
programa, observou que «nunca tremera nos tempos da propaganda
democrática e jamais se temera de quaisquer represálias ou ataques
do regime decaído. Algumas dessas represálias e ataques sofrera
resignada sem quebrantamento da sua fé inabalável na República, em
/ 32 / que sempre divisara o
levantamento do edifício da nossa regeneração política e social.
«Trabalhou – disse depois – quanto
em si coube pela implantação da República, que consubstancia a
felicidade, a redenção da Pátria. Regozija-se com isso e com isso se
envaidece. /.../ A República é um facto e, entretanto, treme, agora,
ao assumir a chefia do concelho. E treme, porque se sente pequeno
para a grande missão que lhe impuseram».
O programa, que depois traçou, para
a actuação da edilidade da qual lhe fora cometida a espinhosa
presidência – e espinhosa dentro de pouco tempo, mesmo no próprio
seio da vereação –, segundo as referências que topamos na Imprensa
da altura era ao mesmo tempo sucintamente genérico e com indicações
de uma orientação avisada. Incluía assim os propósitos de aumentar o
abastecimento de água e promover medidas de saneamento rural;
codificar a legislação concelhia e remodelar alguns serviços
municipais; repartir os melhoramentos pelas freguesias rurais, na
proporção do que concorriam para o cofre do concelho; apurar, com
imparcialidade as causas do agravamento das finanças camarárias nas
últimas gerências; e dar conhecimento público semanal do balancete
da tesouraria municipal.
E, é claro, tanto mais que pouco
permanecem à frente da municipalidade, a maior parcela das intenções
enunciadas, como na generalidade das vezes sucede, ficou sem
efectivação, não obstante os bons desejos de serem prestantes
colaboradores de todos os membros da vereação, desejosos, aliás, de
demonstrarem as eficazes virtudes resultantes do próprio regime.
Esses propósitos, em seu nome e no
dos companheiros da edilidade, afirmaria nesse mesmo acto público o
vice-presidente, Alfredo de Lima e Castro, a quem os ardores do
idealismo superavam as limitações da idade nos intuitos de servir, e
que aludiu, transbordante de alegria, ao facto de ter vivido
intensamente dois factos similares: no seu país de nascimento, e
naquele onde lutara persistentemente para amealhar os meios que lhe
garantissem um fim de vida sem dificuldades de subsistência –
primeiro a implantação da República no Brasil, depois para sua maior
consolação, o advento da da sua Pátria.
A comissão o primeiro acto que
praticou foi enviar um telegrama de felicitações e fidelidade ao
Governo Provisório.
E, na mesma altura, o Governador
Civil anunciava à cidade e ao distrito divulgando-a por todo ele
profusamente a seguinte comunicação oficial da implantação da
República:
Proclamação official da Republica Portugueza
Por ordem do governador civil do
distrito de Aveiro, o cidadão Albano Coutinho, em nome do Governo
Provisório, faz-se constar ao povo portuguez que foi proclamada, em
Lisboa, a República, como regimen político da nação. O rei e a
família embarcaram para o estrangeiro no hyate Amélia, ilesos
e respeitados.
De um ao outro extremo do paiz a
Republica tem sido acolhida com o mais vivo enthusiasmo sendo
acclamada pelas classes civis e militares, que lhe são inteiramente
devotadas.
O socego é completo e a
tranquilidade geral, estando a ordem inteiramente assegurada e
garantida /
34 / pela cordura e
generosidade do povo e energia das autoridades. O mesmo Governador
Civil da República no distrito de Aveiro pede a todos os cidadãos
portuguezes o maior respeito pela ordem publica e principalmente
pela liberdade de todos os portuguezes quaesquer que sejam as suas
crenças, partidos e convicções.
Não houve alteração na normalidade
financeira e económica do paiz, prosseguindo por toda a parte as
transacções.
A Republica Portuguesa honra a
memória gloriosa de todos os mortos da Revolução e especialmente
d'aquelles que cahiram combatendo pelo novo regimen, instituído só
para felicidade do povo portuguez e para prosperidade da Patria, tão
longo tempo opprimida.
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A Republica Portugueza, firmada como
está, com o aplauso do exército e da armada que a ajudaram a
implantar, e pelo entusiasmo e dedicação popular, tem por base a
Justiça e a Moralidade, procurando o Progresso e a Liberdade e o Bem
do Povo e da Pátria.
Governo Civil d'Aveiro, em 8 de
Outubro de 1910.
O Governador Civil,
Albano Coutinho
A comissão administrativa, tal como
o chefe do distrito, recebeu, nesse dia e nos imediatos, numerosas
mensagens de regozijo e de reiteração de fé republicana, ou de
adesão.
Como dissemos já, todavia, passado
esse tempo em que todos mais ou menos se irmanavam nos sentimentos
de júbilo e, assim, se congregavam na exaltação de um ideal comum,
pouco tardou que as divergências surgissem, mais ou menos a
descoberto. Emulações, parcialismos intransigentes,
sobrevalorizações de serviços e merecimentos pessoais, egoísmos e
ambições começaram a aflorar e a ensombrecer o ambiente fraterno dos
primeiros dias.
O alferes Costa Cabral, porventura
já por causas dessa natureza, deixa o cargo de Administrador do
concelho apenas com umas duas semanas de exercício e tem como
sucessor, já que nenhum republicano da cidade se dispôs a aceitar a
função, o Dr. Diniz Severo, médico em Eixo, onde viveu até para além
dos oitenta anos, sempre fiel às ideias que já perfilhava antes da
formatura, embora viesse a abandonar a actividade política.
Entretanto, se, na maior parte,
transitaram de um para o outro dos regimes os funcionários que se
encontravam à testa dos serviços do Estado, num ou noutro caso
verificou-se a substituição. Assim sucederia, por exemplo, na Escola
Normal Primária, que passou a ter como director o professor José
Casimiro da Silva, já mencionado, pedagogo de predicados consabidos
e que uma dúzia de anos mais tarde seria governador civil
substituto. Modesto de temperamento, quase escondeu o dia da
realização da posse, que, assim, além do pessoal docente e
administrativo apenas teve a presença do inspector escolar Domingos
José Cerqueira, de Joaquim Soares – funcionário do Banco de Portugal
e com o empossado e o precedente com evidenciadas afinidades
ideológicas, – e José Maria Barbosa, redactor e proprietário do
Correio de Aveiro – na altura dirigido pelo Dr. Querubim
Guimarães – e António Bernardes da Cruz, director do Aveirense
e proprietário da tipografia onde ele era composto e se imprimia.
Mas as divergências fermentavam e
pouco tardariam a declarar-se. Um mês depois de tomar posse, Albano
Coutinho já era alvo da malquerença de uma parcela dos
correligionários. Aberta, contundente, sem quaisquer rodeios ou
eufemismos, logo, com efeito, em Novembro, numa correspondência de
Aveiro, datada de 11, a República Portuguesa, jornal a que,
como vimos, esse republicano de comprovadas, longas e perseverantes
demonstrações de fidelidade aos princípios democráticos dera
colaboração, tinha contra ele assestado o fogo de uma facção dos
seus correligionários:
«Continuamos como dantes; as
imoralidades sucedem-se e parece que a República não chegará aqui
tão cedo. Isto é único».
E, a propósito da adesão às novas
instituições de um funcionário, que exercia um cargo directivo e já
nos tempos da monarquia era acusado de graves irregularidades,
talvez infundadas, pois esse «adesivo» cuja probidade e sinceridade
se punham em dúvida, se manteve no lugar ainda nos anos subsequentes
– o Director de Obras Públicas do Distrito, Engenheiro Paulo de
Barros –, acrescentava o correspondente local:
«Implantada a República, alguém
pediu ao governador civil que requisitasse uma sindicância àquele
funcionário. Qual não foi o nosso espanto quando um dia, ao entrar
no gabinete do Sr. Albano Coutinho, vimos Paulo de Barros, que já
então aderira, em fraternal conversa com o chefe do distrito».
E, insistindo nas provas de
preferência que o primeiro magistrado dava ao camaleão adesivo em
relação a correligionários com um passado de dedicação à causa
republicana, acoimando Albano Coutinho, (insuspeito, esse, sem
dúvida de republicanismo) da prática de uma pouca vergonha, e não
hesitando em diminuí-lo e magoá-lo, adiantava:
«Que faz então esse homem a quem
foram confiados os destinos do distrito... Nada, absolutamente nada
/.../. Queremos energia, muita energia, e esse homem que aí está não
a tem. Vamos ao saneamento e comecemos pelos nossos.
/ 35 /
«Rua Sr. Albano Coutinho! Quem não
pode arcar com as responsabilidades do seu cargo, demita-se».
A parcialidade cega e exacerbada não
compreendia nem tolerava os sentimentos e propósitos conciliatórios
do governador civil, ailiás concordes com os do ministro que o
nomeara e que deixou memória como símbolo de generosidade.
Azedaram-lhe, assim, o desempenho da função, dando-lhe crescentes
motivos de descontentamento.
Começa, pois, a pôr-se, a breve
trecho, a hipótese da sua demissão, nos «mentideros» e nos
semanários locais. (26) Apontam-se mesmo possíveis sucessoros,
desde o Dr. Manuel Alegre até ao Dr. Moura Pinto. E na boataria que
fervilhava chegou mesmo a apontar-se o nome de Sebastião de
Magalhães Lima, como se fosse verosímil que um potencial candidato à
Presidência da República anuísse a chefiar um distrito. Mesmo o que
tinha por capital aquela que era praticamente a terra do ilustre
paladino dos ideais republicanos, jornalista e tribuno,
propagandista denodado que exerceu uma prestantíssima acção
diplomática criando no estrangeiro um ambiente benévolo ao regime
recém instaurado.
A verdade, todavia, é que os boatos
eram fundamentados. Albano Coutinho não aguentou por muito tempo o
ambiente de intriga e hostilidade entre facções que seria uma das
mais graves pechas da primeira República. As divisões demarcam-se e
acenderam-se as rivalidades. O periódico local com que sobre este
particular nos temos vindo a abonar
(27) e que narra os
factos mais com a objectividade de espectador do que como
interveniente, pois o não eram os seus redactores, escrevia, a
preceder a notícia da posse do novo governador, segundo da
República, Dr. Henrique Weiss de Oliveira:
«Chegou a dar-se como certa a
nomeação do Dr. Moura Pinto, e dizem alguns republicanos que assim
ficou assegurado pelo governo às comissões locais. Certo é, porém,
que outro grupo do partido, do qual fazia parte o governador civil
demissionário, ferido por intrigas locais e ataques na Imprensa e
por vários correligionários, não transigiu com a nomeação do Dr.
Moura Pinto e nesse sentido falou claro ao Sr. Ministro do
Interior.»
«Perante tais dificuldades, –
prosseguia o testemunho de que nos vimos socorrendo – a avaliar por
um artigo do Intransigente, parece que os comités da
Carbonária, de harmonia com a Maçonaria, resolveram apresentar ao
ministro o nome do Dr. Weiss de Oliveira, médico muito distinto em
Lisboa, e que assim era o tertius gaudet, que aparecia como
elemento de conciliação».
E, concretizando, adiantava noutro
passo:
«A comissão municipal, em face da
nomeação do novo governador civil, convidou o partido republicano do
distrito para uma reunião conjunta /.../ no Centro Escolar
Republicano, e aí se discutiu acaloradamente o caso da referida
nomeação. Durante umas poucas de horas se falou, sendo, ao que se
diz, crivado de apóstrofes violentas e apartes cáusticos o nome do
Sr. Dr. António José de Almeida.»
E ainda no mesmo pormenorizada local
se lê: «Assim o diz a correspondência desta cidade para a
República Portuguesa, feita pelo seu redactor principal, que
veio expressamente de Lisboa fazer essa reportagem. Dessa
correspondência se vê também /... / que quase por unanimidade se
acentuou a reprovação da vinda desse cavalheiro».
E, notando que se esperava, assim,
que a maioria do partido recebesse mal ou friamente o novo
magistrado, observa que chegaram a pensar nessa atitude, «mas haviam
reconsiderado quando souberam ou presumiram que o novo centro
republicano, há dias fundado com a designação de Centro Nacional
Republicano, (28) se preparava para receber festivamente o dr.
Weiss de Oliveira».
Este, apesar de na sua posse terem
estado presentes, e algumas usado da palavra, figuras de grande
evidência do novo regime, como, além do governador civil cessante,
Sebastião de Magalhães Lima, Machado dos Santos e António Maria da
Silva, não podendo fazer vingar os seus propósitos de harmonizar e
congregar, e sentindo crescente a hostilidade que sentia entre a
facção mais exaltada, não conseguiu manter-se no cargo, de que menos
de um mês depois da posse pediu a exoneração. Sentiu-se impotente
para vencer a desunião, as inconciliáveis tomadas de posição, e a
instabilização consequente.
Mas nem só no Governo Civil se
sentiram as dissenções. Também na Câmara. As primeiras divergências
manifestadas surgiram no exterior dela, por motivo da mudança dos
nomes de algumas ruas e praças da cidade, que, considerada injusta
em relação a certas pessoas, desagradou e afastou, poucos embora,
alguns dos que haviam recebido o regime com simpatia, ou pelo menos
numa atitude de expectativa colaborante.
Um azedume, porém, se não mesmo um
conflito, surgiria no próprio seio da edilidade, a propósito da
extinção proposta por Alfredo de Lima e Castro do lugar de médico do
asilo e, consequentemente, do afastamento do lugar do Dr. Lourenço
Peixinho – um Aveirense que viria a afirmar-se como um dos mais
prestimosos filhos da sua terra, no melhoramento desta, e seria,
porventura, com quase ininterruptos vinte e quatro anos, o
presidente da Câmara que mais tempo permaneceu no cargo.
Dois vogais declararam rejeitar a
deliberação, não obstante, na sessão anterior se lhe não haverem
oposto. «Um deles, José Marques de Almeida, disse que, informado
agora convenientemente do que a lei
/ 36 / a tal respeito
determinava, entendia que a comissão não tinha competência para
deliberação daquele modo». Aliás, de alguma forma é de presumir que
além do propósito de fazer economias com a supressão do lugar,
houvesse, subjacente, o intento de afastar o médico.
Criou-se um incidente «com troca de
apartes e doestos, que deram lugar a que alguns membros da Câmara
declarassem que não voltariam às reuniões». Em resultado da
exaltação de ânimos nessa sessão agitadíssima o próprio presidente,
André dos Reis, ferido no seu pundonor, manifestou essa intenção.
Os ânimos serenaram, mas o espinho,
a reserva, manteve-se daí para o futuro.
André dos Reis, que nasceu no Rio de
Janeiro, a 15 de Abril de 1871, mas não só era português de
nacionalidade, mas Aveirense de adopção e constante fidelidade, era
mais um homem difundidor de ideias, pela palavra escrita e falada,
cioso do seu valor, sem extremismos mas pouco propenso à
maleabilidade das transigências pessoais. Nunca ocuparia a posição
para que se supunha dotado e na presidência da comissão
administrativa da Câmara Municipal, não dispôs de tempo nem de meios
materiais para mostrar capacidade de acção administrativa com
fecundidade.
Já aposentado da sua função pública
de notário sabedor e de grande integridade, e tendo deixado de
advogar, consagrou-se mais às letras, deixando alguns poemas
inéditos. Faleceu a 5 de Fevereiro de 1944, na terra adoptiva, a que
dedicara indeclinável afecto.
Mas, com dignidade, sempre
acompanhado na mais estrita fraternidade, pelos irmãos e indefesos
correligionários – para empregar um qualificativo então muito em
voga – Teófilo, Domingos e Artur, teria satisfações, mas também
amargos de boca. Uma figura com méritos que afinal se deixou relegar
para um segundo plano.
*
A história do partido republicano de
Aveiro e dos tempos do advento da República mereceria ser esmiuçada.
Há nela muito mais que contar. E a
História não se repete, senão num ou noutro aspecto. Mas fornece
muitos motivos para meditação e lição. Alguns, fugaz e
despretensiosamente, deixamos apontados.
___________________________________
NOTAS
(1)
– Comandante Silvério Ribeiro da Rocha e Cunha – «Relance da
História Económica de Aveiro» – Aveiro, 1930, pgs. 17 e 18.
(2)
– No segundo dos cadernos de divulgação publicado, em 1878,
(Lisboa), Imprensa Democrática, Rua de S. Boaventura, 57 – (116 pgs.)
– e que se intitula «José Estêvão – Duas Palavras», a Comissão de
Propaganda do Centro Republicano Democrático de Lisboa remata o
elogio do grande orador parlamentar nos seguintes significativos
termos: «O partido republicano democrático português, recordando os
serviços prestados por José Estêvão à causa da democracia,
agradece-lhe o ter-lhe transmitido, mesmo à sombra do docel real a
pujança e a seiva que hoje lhe avigoram os membros e que mais tarde
o farão senhor do mundo, inscreve o nome do grande orador na relação
dos beneméritos do povo.»
(3)
– Homem Cristo – Notas da Minha Vida e do Meu Tempo,
Vol. III, pgs. 19 e 20.
(4)
– Homem Cristo – Idem, idem, vol. IV, pg. 25.
(5)
– Por volta de 1900 ou 1901, constituiu-se uma Comissão Municipal
Republicana, de que eram membros mais activos, entre outros,
Bernardo Torres, Arnaldo Ribeiro e José Gonçalves Gamelas. Esta,
suscitada por um ofício de Bernardino Machado, aconselhando os
republicanos a concorrerem com listas suas e umas eleições, promove
uma reunião, no armazém de pesca «Maria do Nascimento» e aí aparecem
nomes novos: Alfredo de Lima e Castro (pouco antes regressado do
Brasil), Manuel Cunha, Antónia Marques e João Coelho (Correia de
Aveiro, N.º 58, de 26 de Março de 1911).
(6)
– O Democrata, n.º 104, de 12-2-1910.
(7)
– N.º 54, de 27-2-1909.
(8)
– O Democrata, n.º cit.º
(9)
– O Democrata, n.º 58, de 27-3-1909.
(10)
– Viera a Aveiro pronunciar, na véspera, a terceira de uma série de
conferências promovidas pela Associação Comercial e que preludiavam
as comemorações do centenário do nascimento de José Estêvão.
Precederam-no Jaime de Magalhães Lima e Alberto Souto,
seguindo-se-lhe Joaquim de Melo Freitas.
(11)
– O Democrata, n.º 66, de 22-5-1909.
(12)
– O Democrata, n.º 68, de 5-6-1909. Este jornal informa que
Pádua Correia não participou no Comício nem na sessão do Centro, por
haver perdido a comboio em que se deslocaria a Aveiro.
(13)
– Campeão das Províncias – n.º 6001, de 8-10-1910.
(14)
– O seu nome foi um dos de mais geral assentimento entre os
revolucionários do 31 de Janeiro para a Presidência da República, no
caso de a revolução ter vingado.
(15)
– N.º 138 (3.º ano), de quinta-feira, 6 de Outubro de 1910.
(16)
– N.º 139, de 14-10-1910.
(17)
– O Democrata, n.º cit.º.
(18)
– César Emídio da Costa Cabral, natural de Fornos de Algodres, filho
do general Emídio Augusto da Costa Cabral, mesmo depois de passar à
reserva, no posto de major, manteve amiudados contactos com Aveiro.
(19)
– Manuel Rodrigues Leite, natural de Ovar, que seria sempre fiel aos
ideais republicanos, e viria a ser comandante da unidade aveirense
de infantaria.
(20)
– O Século, n.º 10352, de 7-10-1910.
(21)
– Albano Augusto de Almeida Coutinho, nasceu em 1813, e regressado
no fim da vida à região natal, faleceu em Mogofores em 8-3-1876.
(22)
– O Século, n.º 10356, de 11-10-1910.
(23)
– N.º 16131, 46.º ano, de 9-10-1910.
(24)
– N.º 139, de 14-10-1910, cit.º
(25)
– O Democrata, n.º 139, cit.º.
(26)
– Correio de Aveiro, n.os 43 e 44, de 11 e
18-12-1910.
(27)
– Correio de Aveiro, n.º 46, de 1-1-1911.
(28)
– Este agrupamento político de dissidentes do Centro Escolar
Republicano ou discordantes dele, fez sair em 15-2-1911 o seu órgão
da Imprensa, Justiça, dirigido pelo Dr. António F. Duarte e
Silva e tendo como secretário da Redacção o Dr. Inocêncio Rangel.
Quase simultaneamente iniciava a publicação o semanário Liberdade,
de Alberto Souto e Rui da Cunha Castro, que deixavam, assim, a sua
colaboração assídua em O Demacrata.
A «Justiça», que se tornou
suspeita de monarquismo foi suprimida pelo Governador Civil, Dr.
Rodrigo Rodrigues pouco depois de ter saído. E «A Liberdade»
para noticiar o facto, fez sair um suplemento especial ao seu n.º 2,
de 18-2-1911, aplaudindo calorosamente a decisão do Chefe do
Distrito. |