JOAQUIM JOSÉ DE QUEIRÓS URDE A REVOLUÇÃO
Secretamente, o Governo já havia dado ordens para que as
populações aclamassem D. Miguel rei absoluto. Em 13 de Março
de 1828, a Câmara foi dissolvida. Praticamente, a Carta
Constitucional estava abolida...
O
desembargador Joaquim José de Queirós, como deputado que era,
achava-se bem ao facto dos manejos do Infante. Num derradeiro
esforço, ainda tentou que os seus colegas protestassem contra
política tão perigosa como anticonstitucional. Baldadamente,
porém... Só um caminho restava: planear a Revolução.
|
|
Intemerato,
rijo de ânimo, ardente no seu bem-querer à liberdade, Joaquim
José de Queirós acolheu-se então à sua casa de Verdemilho, a
dois passos de Aveiro. E, dia e noite, deu-se a urdir a teia
na qual se haviam de enredar – não sem dilúvios de lágrimas e
catadupas de sangue – as veleidades de D. Miguel, filho
dilecto da famigerada D. Carlota Joaquina...
Desenvolvendo uma assombrosa actividade, aquele que viria a
ser avô de Eça de Queirós promove reuniões, escreve centenas
de cartas, envia emissários a todos os quadrantes de Portugal,
especialmente para norte e leste, convence, alicia, batalha –
e espera.
A bandeira
da liberdade tremulou sempre no coração dos aveirenses. Em
1820, a cidade vibrara quase instantaneamente ao sabor da nova
aragem que, fazendo-se sentir, varreria o clima improgressivo,
medievo. A sublevação do Porto, que eclodira em 24 de Agosto,
tinha realmente em Aveiro ramificações vigorosas.
O
conselheiro Queirós veio encontrar, assim, um ambiente
extremamente favorável para o combate em que seria o mais
destacado dos chefes. De resto, a própria sentença da Alçada
que julgou os implicados da Revolução, após o seu malogro, não
deixa margem para quaisquer dúvidas, Em dada altura, fala
assim:
«Do
infame, perverso e façanhoso réu Joaquim José de Queirós
mostra-se o haver sido não só o mais atrevido e ousado
conspirador, cabeça e principal autor das tramas e maquinações
que urdiram e prepararam o horroroso atentado de 16 de Maio de
1828 nas duas cidades de Aveiro e Porto, mas também incansável
e poderoso agente do seu desenvolvimento e acérrimo mantenedor
da sua destruidora persistência e deplorável duração.
Porquanto se acha provado e demonstrado até à evidência, como
se ponderou na primeira sentença desta alçada pelas
correspondências originais deste mesmo audacíssimo réu,
apreendidas ao co-réu Francisco Silvério de Carvalho, já
justiçado, as quais constituem a parte mais essencial da
devassa da rebelião a que se procedeu naquela cidade de
Aveiro, juntas ao apenso 33.º, que o réu, a quem devorava o
espírito da soberba e ambição, e do ódio e vingança contra a
augustíssima e sagrada pessoa de sua majestade e contra as
instituições salutares e fundamentais da monarquia, que o
mesmo senhor se propunha restabelecer, apenas dissolvida a
câmara dos deputados em Lisboa, de que o réu havia sido membro
muito pernicioso e desgraçadamente muito influente,
recolhendo-se ao insignificante e obscuro lugar de Verdemilho,
donde era natural e morador, nas vizinhanças de Aveiro, entrou
logo a idear e forjar o diabólico e sacrílego plano de
arrancar das reais mãos de sua majestade a felicíssima e
gloriosíssima regência,
/ 71 /
que legalmente exercitava nestes reinos, e a estorvar a
reunião dos três estados, convocados para salvação e segurança
comum, tudo isto manobrado e procurado à custa duma subversão
geral e até de uma guerra civil, se tanto fosse necessário».
E a
sentença da Alçada, redigida de olhar torvo e empapada de
ódio, continua deste jeito:
«Mostra-se
mais das ditas correspondências originais que, para levar a
efeito este vastíssimo e insidiosíssimo plano, continuará o
mesmo malvado empreendedor, de acordo com outros furiosos
maquinadores confederados, a aliciar e coligar ao seu infame
partido os comandantes e oficiais de vários corpos do
exército, aos quais se expediram emissários de confiança, que
foram a Viseu, S. Pedro do Sul, Gouveia, Coimbra e Porto, para
dispor e seduzir os corpos aí estacionados ou alojados na sua
marcha, os batalhões 7, 9 e 10 de caçadores, os regimentos de
infantaria 6, artilharia 4, além de outros; sendo o mesmo réu
o que por seu próprio punho escrevia a maior parte das ditas
correspondências, escolhia e industriava os ditos emissários,
destinava as pessoas a quem eram dirigidas e preparava de
antemão o espírito daqueles corpos, alienando-os pela
comemoração sediciosa de escritos e periódicos subversivos,
que outros conspiradores traçavam dentro e fora do reino.»
O alto
relevo, significativo relevo, dado pela Alçada ao
Desembargador no desenrolar dos acontecimentos só serve, em
contrapartida, para realçar o ambiente de saturação que
dominava o país. Sem uma tal asfixia, jamais teria sido
possível a Joaquim José de Queirós fomentar a Revolução,
herdeira do espírito vintista e que, embora transitoriamente
afogada em sangue e lágrimas, triunfaria, alagada de glória,
em 34.
NA MADRUGADA DE 16 DESPONTA A LIBERDADE
A Primavera
estava no auge. Desabrochavam mil flores, desde as rosas
sangrentas aos queridos amores-perfeitos. Não faltariam também
os martírios...
Túmulo do grande paladino
Joaquim José de Queirós no cemitério do Outeirinho, em
Verdemilho, a três escassos quilómetros de Aveiro. |
Na
madrugada do dia 16, e conforme estava determinado, a
Revolução deflagrou. É nos céus de Maio que se desencadeiam as
maiores trovoadas, que surgem os mais estonteantes clarões...
Ainda o sol vinha longe, reuniram-se, na moradia do corregedor
Francisco António de Abreu e Lima, Joaquim José de Queirós,
Manuel Maria da Rocha Colmieiro, Francisco Silvério de
Carvalho Magalhães Serrão e José Júlio de Carvalho. Analisados
os últimos pormenores, foi dada ordem para que formasse o
Batalhão de Caçadores 10. Batiam as 7 horas e principiavam a
escutar-se, nas ruas ainda mal despertas da cidade, vivas à
Carta, a D. Pedro IV, à Rainha D. Maria lI! Erguia-os,
imitando Queirós, que soltara as primeiras aclamações na Praça
do comércio, um grupo de entusiastas liberais dirigido pelo
bravo Evaristo Luís de Morais – mais tarde morto gloriosamente
em combate – e de que faziam parte, entre outros, seus irmãos
João, António e Jerónimo e também Francisco Silvério de
Magalhães Serrão, João de Melo Freitas, João dos Santos
Resende, José Pacheco de Almeida, António da Cunha Toscano e
Manuel António Loureiro de Mesquita. |
Seguidamente, na Câmara Municipal procedeu-se à aclamação da
Rainha D. Maria II. Além das mais gradas figuras da Causa
Liberal, compareceu a maioria da oficialidade do Batalhão de
Caçadores 10 – que tão nobremente se havia de comportar nos
combates
/ 72 /
e no desterro – e o povo, esse povo eterno que argamassa as
nações.
Lavrado o
auto por Evaristo Luís de Morais, assinaram o histórico
documento:
Joaquim António Plácido, João
Crisóstomo Gravito, José da Cunha Guimarães, João Nepomuceno
da Silva, Agostinho José Pinheiro, José Júlio de Carvalho,
Francisco António de Abreu e Lima, Pedro António Rebocho, José
de Vasconcelos Bandeira de Lemos, João de Sousa Pizarro, João
António Rebocho, Filipe Correia de Mesquita, Paulo Maria
Biquer, João Francisco Pinto, João Evangelista Coutinho,
Manuel de Sousa da Silva, Luís Maria de Magalhães, Joaquim
Rodrigues Simões, Manuel Júlio de Carvalho, José Leite Pereira
de Balsemão, João Luís Barbosa, Vicente José de Almeida,
Francisco Silvério de Carvalho de Magalhães Serrão, Luís
Cipriano Coelho de Magalhães, Clemente da Silva Melo Soares de
Freitas, Joaquim José Marques de Melo, Luís dos Santos Regala,
Joaquim Timóteo de Sousa da Silveira, António José Pereira
Pinto, José Ferreira da Cunha, João António de Morais, João
dos Santos Resende, José Marques de Melo, Manuel Pereira da
Cunha, Francisco Henriques da Maia, Joaquim José da Rocha,
Custódio José Baptista, António Marcelino de Sá, Custódio
Joaquim de Oliveira, Francisco da Silva Melo Soares de
Freitas, Filipe Luís Bernardo Júnior, José António Barbosa,
José Maria Plácido, José de Oliveira Lopes, Manuel Coelho de
Moura, António da Cunha Toscano, José Maria dos Santos, Manuel
José Baptista Pereira, Manuel José de Almeida, Manuel José
Barbosa, Luís Maria dos Santos, Joaquim de Oliveira e Costa,
Bento dos Santos Ventura, António José Gomes Guimarães,
Francisco Caetano da Costa e Custódio José Duarte e Silva.
JOÃO ANTÓNIO DE MORAIS
Alferes dos Voluntários da Rainha, distinguiu-se em várias
acções, sendo ferido em combate na Terceira. |
Marques
Gomes, o notável polígrafo que nos serve de guia nesta tarefa,
ignora por que motivo não figuram no longo e categorizado rol
os nomes de José Estêvão, Gravito e Mendes Leite. A lacuna,
todavia, poderá filiar-se com inteira razão na ausência ou
noutros motivos inibitórios da mesma força.
Após uma
curta reunião, foi resolvido que o Batalhão de Caçadores
embarcasse imediatamente para Ovar, no intuito de alcançar sem
demora o Porto – como aliás estava previsto. Duzentos e
oitenta praças tomaram então lugar, por entre manifestações de
aplauso, nos barcos trazidos da aludida vila pelo dedicado
Rocha Colmieiro.
|
Joaquim
José de Queirós, sempre coerente, sempre inabalável na sua fé,
acompanhou as tropas. Entretanto, os liberais aveirenses
deliravam de contentamento. Os irmãos Morais Sarmento – que
tanto viriam a padecer – galvanizavam a população. Outros, de
sangue estuante a correr-lhes nas veias, acompanhavam-nos
através das ruas da cidade vivando D. Pedro, D. Maria II e a
Carta ou, como pretenderam algumas testemunhas que depuseram
mais tarde da devassa, «dando morras a D. Miguel e aos
patifes».
A esperança
esfuziava. Aguardavam-se dias de sol para os corações, como
era de sol esse dia primaveril que viviam. Marejavam-se muitos
olhos. Chorava-se mesmo de alegria. Em breve, chorar-se-ia
ainda, mas de desespero, ao sabor das perseguições, dos
sofrimentos inenarráveis, das desditas sem par...
O FRACASSO E A RETIRADA HERÓICA
No Porto,
constituíra-se uma Junta, «agregado de bons homens capazes de
formarem o Senado de uma cidade mas incapazes de governarem um
Reino em
/ 73 /
crise», como observa Oliveira Martins. Os seus componentes
discutiam tudo e por tudo e não resolviam nada de nada... Para
cúmulo, faltava um autêntico chefe militar.
A
liberdade, com todos os seus sortilégios, fascinava entretanto
quase o Norte inteiro, e Tomar, ao sul, era uma cunha
aceradíssima cravada no feudo de D. Miguel. Em vez, porém, de
se levar o exército constitucional a seguir avante,
imobilizavam-no. A Junta falaciava ou quedava inerte... E
Póvoas, que trazia uma incumbência de D. Carlota Joaquina –
«cortar, cortar cabeças!» – avançou.
Na Cruz dos
Moroiços, cerca de Coimbra, os exércitos acabaram por
contactar. As forças em presença equilibravam-se e, ao fim de
10 horas de ferro e fogo, os liberais ficaram onde estavam –
vitoriosos. Simplesmente, no vulto do triunfo viu-se o
espectro da derrota. Delegados da Junta, que acompanhavam as
tropas, perderam a cabeça e vieram parar às imediações do
Porto.
O exército
retrocedeu então, em boa ordem, e protegido pela trincheira
natural e histórica que sempre tem sido o Vouga poético,
ofereceu nova batalha – uma batalha de indeciso desfecho. Mas
o destino estava marcado... A capital do Norte, onde os
generais vindos na Belfast nada mais fizeram do que se
entregar a escaramuças... de lana caprina, receberia os
combatentes. Depois, depois foi a retirada, retirada
fantástica, dramática, em direcção à Galiza, retirada
comandada pelo digno brigadeiro Sousa Pizarro e – sobretudo...
– pelo enérgico e heróico major Sá de engenharia, mais tarde
Marquês de Sá da Bandeira, que não quisera tornar a ver a
Belfast... bela.
A
princípio, eram 10000 os soldados. Saíram 6000 do Porto.
Quatro mil atravessaram a fronteira. Dos portos do Ferrol e da
Corunha partiram finalmente 2386 portugueses. Tinham escapado
ao enxame das balas, haviam sido encharcados por chuvas
torrenciais, sofreram sedes inauditas, fomes das mais negras –
em Espanha chegou a trocar-se a camisa por um pedacito de
pão... – mas porfiava-se na adoração à liberdade.
Antes mil
vezes – terão pensado – a sordidez dos porões e a miséria dos
armazéns de Plymouth do que as paradisíacas delícias do
governo absoluto do Sr. D. Miguel e de sua mãe Sr.ª D. Carlota
Joaquina...
*
Em Aveiro
formara-se, no intuito de servir a liberdade – de se combater
e morrer por Ela – um batalhão de voluntários. Muitos dos seus
homens seguiram para o exílio, juntamente com a oficialidade e
algumas praças do 10. Os aveirenses souberam sempre cumprir o
seu dever... Nessa epopeia que foi a retirada para a Galiza,
estiveram bem presentes, padecendo e lutando.
Integrados
no Batalhão Académico, organizado em Coimbra, marchavam os
moços José Estêvão e Mendes Leite, amigos como irmãos, que
viriam a cobrir-se de glória nos campos de batalha – onde
ambos alcançaram a Torre e Espada – e, posteriormente, nas
tribunas parlamentares, na luta pelo Bem e pelo Progresso.
Também não
desertou o desembargador Queirós. Da letárgica Junta, foi o
único que ligou o seu destino ao destino dos soldados.
Acompanhou-os até à Galiza, na tão miseranda como,
paradoxalmente, épica odisseia. Podendo ter embarcado na
cómoda Belfast, optou pelos mesquinhos e tristes barcos que
partiram dos portos galegos.
Honrado
cidadão o desembargador Queirós! Tão honrado que a Alçada
ignominiosa o condenaria, a seu tempo, que «com baraço e
pregão fosse conduzido pelas ruas públicas da cidade do Porto,
e que num alto cadafalso, que ali seria levantado, de sorte
que o seu castigo fosse visto de todo o povo, a quem tanto
tinha escandalizado o seu horrorosíssimo delito, morresse de
morte natural de garrote e depois de lhe ser decepada a
cabeça, fosse o mesmo cadafalso com o seu corpo reduzido pelo
fogo a cinzas, que seriam lançadas no mar, para que dele e da
sua memória não houvesse mais notícia».
Felizmente,
as garras de milhafre da Tirania jamais se cravariam no
paladino. Outros, contudo, pagariam bem caro, com a própria
vida, a sua dedicação, o seu afecto, o seu amor à liberdade.
Dos
cárceres atulhados, muitos presos seriam conduzidos ao
patíbulo. Nas forcas, o sangue generoso e quente dos heróis ia
correr...
ERGUEM-SE PATÍBULOS, TRABALHAM OS CARRASCOS
À moderação
do General Póvoas, no Porto, respondeu o Governo criando os
tribunais especiais por todo o Reino: inquisição política para
descobrir e julgar os crimes de apostasia ou de tibieza na
religião ardente do absolutismo apostólico. Para o Norte foi
uma Alçada bem escolhida, de magistrados que não mentiriam,
como o General mentira, aos desejos sanguinários da rainha e
dos seus sequazes – escreve Oliveira Martins. «Famosa alçada –
acrescenta luz Soriano – composta dos desembargadores mais
sanguinários do partido miguelista» que – elucida ainda o
autorizado historiador – «teve todas as faculdades especiais
para inquirir dos supostos crimes e julgar logo,
/ 74 / em última instância, breve e
sumariamente, todos os culpados».
Como é
óbvio, desde esse momento «nunca mais pôde haver repouso nem
sossego entre as famílias. Por toda a parte do reino
apareceram logo devassas em que se admitiam, como
denunciantes, homens depravados, miseráveis agentes da
confidência de outros que tais indivíduos» – acrescenta ainda Soriano, que foi também um valoroso combatente da Liberdade.
Cerca de
uma dezena de milhar de portugueses viu-se enredada nas malhas
de pronúncias! No Porto, doze subiram aos patíbulos e, entre
eles, seis aveirenses: Francisco Manuel Gravito da Veiga e
Lima, Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão,
Clemente de Melo Soares de Freitas, Manuel Luís Nogueira,
enforcados em 7 de Maio de 1829, e Clemente de Morais Sarmento
e João Henriques Ferreira, em 9 de Outubro do mesmo ano.
Sobre
Gravito, que fora apenas uma espécie de conselheiro nos
trabalhos preparatórios da Revolução, caiu – desconhecem-se
ainda hoje as razões, se é que razões havia... – o ódio de
Carlota Joaquina e, por tabela, o da Alçada... Havendo entrado
nas cadeias em 10 de Agosto de 28,em 18 de Fevereiro seguinte concederam-se-Ihe cinco dias para dizer de facto e de direito.
Por fim, a condenação à morte!
Vale a pena
transcrever algumas linhas de Marques Gomes sobre o drama
patético do infortunado desembargador.
«A
sentença, principalmente na parte que diz respeito a Gravito,
é uma iniquidade sem igual; por mais que os julgadores se
esforçassem para lhe encontrarem criminalidade, não o
conseguiram e as provas por que o condenaram são irrisórias.
Gravito foi condenado à morte
porque assim o impôs a rainha D. Carlota Joaquina.
Afirmou-no-Io uma e muitas vezes um antigo magistrado e amigo
dedicado de Gravito e partidário não menos dedicado de D.
Miguel, a quem acompanhou até Évora, e que até à morte
conservou intemerata a sua fé partidária, o pai de quem
escreve estas linhas, Dr. Francisco Tomé Marques Gomes, e
amigo de José Estêvão.
É fora de dúvida que o
governo de D. Miguel influiu nas deliberações da Alçada, isto
tanto nas sentenças como na decisão dos embargos. Mas não eram
só os ministros que actuavam no ânimo dos julgadores; algumas
vezes a rainha D. Carlota Joaquina impôs-lhes também a sua
vontade e uma delas foi quando se tratou do julgamento de
Gravito.»
Da maneira
escandalosa como decorreu a sessão da Alçada foi dado
conhecimento ao Governo de D. Miguel que, em face do escândalo
suscitado, se viu compelido a ceder nalguns pontos. A dois dos
três então condenados à morte – Francisco António de Abreu e
Lima e Luís Lusano – comutou-se-Ihes a pena. Para um terceiro
– Gravito – não houve qualquer benignidade, a mínima das
mínimas comiserações. A História diz que D. Carlota – tão
genialmente retratada num – quadro de Goya – se opôs aos
propósitos manifestados pelo próprio filho, que se inclinava
por uma comutação...
No
oratório, o infelicitado Desembargador, de coração alanceado
mas inabalável na sua fé, escreveria à filha – D. Maria Emília
Teixeira Gravito – uma carta, que se publica em «hors-texte» e
é, por altíssimo documento humano, das mais extraordinárias
redigidas na nossa língua.
Mas, como
dissemos, no dia 7 subiu aos patíbulos da Praça Nova a
primeira fornada. (Fornada) não é bem... Na cidade indómita
que, após o Cerco, mereceu ser cognominada de Invicta, não
foram calcinados, como anteriormente em Lisboa, os pobres
cadáveres...
O autor do
«Portugal Contemporâneo» descreve assim o lúgubre, o tétrico,
o confrangedor espectáculo:
«Subiam
as escadas; a meia altura, o carrasco tapava a cabeça ao
desgraçado vestindo-lhe o capuz branco, pendente nas costas,
atava-lhe os dois pés... Rápido! Breve! Passa-lhe o nó na
garganta, enrolada a corda na trave da forca, e sobre o vulto
branco, sem forma viva, nem vida talvez, erguia a perna,
montava nas saliências já moles dos ombros, com o pé
afastava-se da escada A figura singular do homúnculo a cavalo
num fardo branco, baloiçava-se no ar, sem um ruído,
placidamente. Não era mister que os tambores rufassem, porque
os clérigos rufavam o seu cantochão – De profundis clamavi
ad te, Domine... e a plebe na rua e as senhoras na janelas
soltavam aclamações.»
Consoante a
sentença determinava, as cabeças dos supliciados foram
distribuídas pelas regiões onde germinara a semente da
Liberdade. A Aveiro, a fim de serem espetadas,
edificantemente, em postes, couberam as de Gravito, Silvério,
Nogueira e, mais tarde, a de Clemente de Morais.
«As
autoridades – elucida Marques Gomes – a quem tocava dar
cumprimento a esta ordem, viram-se porém em sérios embaraços,
pela dificuldade de encontrar quem fornecesse os postes
necessários e os colocasse nos mencionados locais.
/ 76 /
Gastou-se todo o dia nestas diligências, até que no dia
seguinte o juiz de fora fez prender diferentes lavradores do
lugar de Azurva, a quem obrigou a trazer os pinheiros
necessários, e alguns carpinteiros que violentadíssimos os
ergueram nos locais designados, depois do algoz ter colocado
em cada um deles uma das cabeças segura por um grande prego.»
Se janelas
e portas de muitas cosas da cidade se fecharam – corajosamente
– em sinal de luto, mal correra a nova arrepiante da chegada
dos despojos, Aveiro, sempre «heróica e livre», deu, de tal
modo, mais uma vez mostra iniludível dos seus nobilíssimos
sentimentos, da sua sensibilidade, da sua dor.
Diante de
alguns estremecidos filhos mortos e com muitos outros na
amargura do exílio e no inferno das prisões, que esperar dela?
Depois, Aveiro foi, é e será eternamente uma devota fiel da
tolerância, uma adversária irreductível da violência – ou não
ame a Liberdade!
|