Libertada pelas invasões francesas
do maior peso da estrutura política e económica semifeudal que a
afrontava (fuga da família real e alta nobreza para a Brasil,
dilaceração das instituições pelo invasor) e estimulada pela
ideologia que de França irradiava sob as próprias barretinas dos
soldados de Napoleão, a burguesia nacional inicia em 1820 o seu
processo de ascensão política. Facilita-o a campanha patriótica
então suscitada pelo ocupante inglês – aliado da véspera, contra o
que o precedera –, o qual promove uma larga comunhão de interesses
entre a classe ascendente e as massas populares.
A sua primeira conquista é a
Constituição «quase republicana» de 1822 (como lhe chamou Herculano)
— conquista precária, porém, e paradoxal até, dado o carácter
reformista que a improcedência duma autêntica luta pelo poder entre
a classe que dominava e a que ascendia imprimira à sua promulgação.
Daí que a acção desenvolvida contra o segundo ocupante, tendo embora
contribuído poderosamente para a mobilização das forças necessárias
a esse êxito, abrisse do mesmo passo o caminho do revés – ao
franquear as portas do regresso à família real e à aristocracia
emigrada.
D. João VI jura a Constituição, mas
a rainha recusa-se. E a situação passa a evoluir no sentido da
derrogação constitucional, que o pronunciamento conduzido por D.
Miguel sobre Vila Franca vem finalmente a impor.
Morto o rei, o ramo brasílico da
coroa é instituído herdeiro do trono, numa derradeira tentativa de
reatamento da unidade do império. Já, porém, a esse tempo a
proclamação da independência do Brasil criara, lá e cá, uma nova
realidade: lá, pela conexão aí também existente entre o problema da
independência e o da ascensão ao poder da burguesia colonial,
conexão que não foi alheia ao próprio facto de D. Pedro, abdicando
na filha a coroa portuguesa, acompanhar esse acto da outorga duma
Carta Constitucional; cá, pela extorsão a que votou a classe
dominante do apoio económico e político que essa colónia lhe
constituía, a qual a debilitou consideravelmente face à sua
antagonista.
Esboçara-se, então, um primeiro
lance de guerra civil entre os que apoiavam em D. Miguel a
salvaguarda dos seus privilégios e os que viam no reconhecimento da
Carta um novo aceno de emancipação.
D. Pedro fê-lo gorar, volvendo-o em
expectativa, ao intentar a conciliação dos interesses em litígio por
uma dupla e simultânea doação: a da Carta e a da filha – a um
regente... D. Miguel. Liberalidade régia! A qual não evita, contudo,
que, jurada a Carta pelo infante, logo a 13 de Março de 1828 a
Câmara que ela instituíra se veja dissolvida; e que, a 3 de Maio, um
novo recuo se dê, pela convocação das Cortes dos três estados –
nobreza, clero e povo. ...e povo? Que povo, porém? – Havia muito,
com efeito, que o terceiro estado se subdividira já em «burguesia e
povo propriamente dito» — como se lê num curioso livro de meados do
século. Pelo que, àquela, não podia convir mais uma assembleia
recrutada em moldes anacrónicos como esses – e muito menos agora que
se dirigia para a hegemonia política. Assim, a revolta não tarda a
eclodir no Porto, a dezasseis de Maio, precedida pela marcha sobre
essa cidade das forças militares e civis que em Aveiro a apoiavam.
A partir deste momento, ressalta no
panorama político da época uma característica que, muita embora já
se houvesse feito notar em 1820, só agora emerge totalmente: as
hostes liberais estão divididas em duas grandes facções, uma que
representa a alta burguesia do tempo e que integra um pequeno grupo
de aristocratas dissidentes, destacados pelas circunstâncias do
anterior aparelho de estado; outra, que engloba os restantes
estratos da classe ascendente e que mobiliza para a luta as demais
forças populares. A primeira é representada na revolução de 1828
pelos emigrados que demandam o Porto a bordo da Belfast e vai
procurar triunfar pela aliança com o trono, o que conduzirá ao
enobrecimento sucessivo dos seus partidários: será cartista,
cabralista, etc. no decurso da história; a segunda, conhecerá os
sórdidos barracões de Plymouth, apoiar-se-á nas camadas sociais que
lhe subjazem e será constitucionalista, setembrista, progressista
–
e por fim republicana.
O fracasso de 1828 resultou da
precária conjugação de esforços existentes entre essas facções, o
qual conduziu à traição dos elementos dirigentes (oriundos do grupo
da Belfast), ao abandono da luta, ao êxodo pela Galiza.
Só posteriormente virá forjar-se
entre elas uma base de unidade para a acção – e será então a hora do
desembarque no Mindelo, a hora da recondução da Pátria a caminhos de
futuro. |