Em plena Serra da Freita – Um grupo de cineastas aveirenses
No panorama da cultura portuguesa,
não tem desempenhado o cinema o papel que realmente deveria
desempenhar. Isto apesar das tentativas de reanimação que, nos anos
sessenta, se processaram através dos esforços individuais e,
sobretudo, de auxílios da Fundação Gulbenkian, e, depois do 25 de
Abril, através duma actividade (que se deseja persistente e
esclarecida) ao nível do Estado. Não vamos, todavia, debater aqui
este problema. Apenas queremos salientar que, em face duma tal
realidade, talvez não admire que as artes cinematográficas poucas
vezes tenham abordado temas relacionados com a região de Aveiro.
É certo, por exemplo, que o Porto, o
velho e típico Porto, com o seu casario cinzento, os becos sem luz,
as ruas íngremes e as escadas irregulares que descem para o Douro,
como edifício pesado da Alfândega e a respectiva linha de caminho de
ferro, com a recordação do desastre da «ponte dos barcas», com a sua
actividade fluvial no Cais da Ribeira (e parte dela até já se
atenuou ou mesmo desapareceu), as suas admiráveis pontes metálicas,
os seus muros fuliginosos por onde tantas vezes escorre uma humidade
viscosa, é certo que esse Porto está presente, participa mesmo com
uma larga contribuição, ao nível do referente e ao
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expressivos, em alguns dos filmes de Manuel de Oliveira
(nomeadamente, «Douro, Faina Fluvial», «Aniki-Bóbó», «O Pintor e a
Cidade»), entre eles, uma verdadeira obra-prima do cinema de
curta-metragem: «Douro, Faina Fluvial». E esses filmes são, ainda
hoje, os de mais funda autenticidade expressiva na obra do
realizador mais prestigiado do cinema português. Mas é certo também
que Oliveira nos dá uma visão pessoal da cidade onde vive e onde
nasceu, e com certeza que muitas outras seriam possíveis.
Vem-nos até a tentação de apresentar
o exemplo de Paris e seus múltiplos reflexos em concepções
estilísticas bem diferenciadas. Trata-se, em boa verdade, dum
exemplo dos mais eloquentes. Há a Paris triste, fria e húmida de
Carné, a Paris alegre, tunante e um pouco anárquica de Clair, a
Paris proletária ou pequeno-burguesa, mas sempre sensual e humana,
de Renoir, a Paris ballética e fantasista, desordenada,
ziguezagueante e infantil de «Zazie dans le Métro» de Louis Malle, a
Paris tragicómica de Autant-Lara durante a ocupação alemã, a Paris
decadente e ambígua de Godard e tantas mais...
Por outro lado, verificamos que
algumas regiões portuguesas têm surgido em alguns filmes mais ou
menos significativos, para os quais contribuíram com a sua
quota-parte: o panorama físico e humano da Nazaré reflecte-se em
duas obras das mais importantes do cinema silencioso português,
«Maria do Mar» e «Nazaré, Praia de Pescadores» de Leitão de Barros;
o Cabo Espichel e Lisboa encontram-se presentes em «O Recado» de
José Fonseca e Costa, o melhor filme da série chamada da Gulbenkian,
e o Alentejo serve de fundo e de apoio (em imagens de rara beleza
plástica e sonora, em que tantas vezes se vê tremeluzir a canícula)
a uma obra recente do mesmo autor, «Os Demónios de Alcácer Quibir»,
que, com certeza, será um ponto alto da cinematografia portuguesa
contemporânea; Trás-os-Montes inspirou e forneceu o «material de
base» de «Acto da Primavera» de Manuel de Oliveira; a região da
Figueira da Foz serviu também de fundo paisagístico e humano a uma
das obras mais interessantes do moderno cinema nacional, «Uma Abelha
na Chuva» de Fernando Lopes, bem como ao pretensioso filme de
António Macedo «A Promessa»; a ilha de Porto Santo, com as suas
secas periódicas, empresta toda a sua força humana e expressiva às
melhores sequências de «A Canção da Terra» de Jorge Brum do Canto;
por sua vez, a própria capital do país fornece a matéria prima a uma
comédia de Cottineli Telmo, «A Canção de Lisboa», que serviu de
modelo a muitas imitações, nos anos seguintes, a maior parte das
vezes bem medíocres.
E relativamente à região de Aveiro,
que se passa? Mercê dum panorama físico e humano muito variado e
muito característico, tem a região de Aveiro inegáveis qualidades
fotogénicas, expressivas e dramáticas. Todavia, julgamos que elas
não foram, até agora, devidamente aproveitadas. Há, com certeza, o
caso do Furadouro e dos seus pescadores que serviram de tema ao
filme do realizador ovarense Paulo Rocha «Mudar de Vida». Mas
tratou-se duma obra um tanto incipiente, embora ocupando um
determinado lugar na história do cinema português por surgir numa
altura em que os nossos cineastas desesperavam da sua própria
condição de cineastas, como seres viventes que não tivessem oxigénio
para respirar, numa altura de completa estagnação, num quase vácuo,
em que um tal empreendimento representava um esforço corajoso e
meritório para estruturar, com todos os sacrifícios, num meio hostil
e desconfiado, uma espécie de «cinema novo», e romper com o passado
medíocre duma cinematografia anemiada e imersa em pleno
obscurantismo. Tentativa condenada, sem dúvida, a um relativo
malogro, mas, nem por isso, menos necessária para a evolução que
conduziu à fase seguinte, isto é, à fase que se concretizou com a
chamada «série Gulbenkian» do Centro Português de Cinema.
Albergaria das Cabras. Duas vidas, duas flores, vegetam nas pedras.
Há ainda a citar algumas filmagens
realizadas no Vale do Vouga para as sequências iniciais dum filme,
aliás menor, de Jorge Brum do Canto, «João Ratão».
Isto, que nos recordemos. Temos de
concordar que é muito pouco para uma região com tantas
potencialidades...
Aveiro possui também os seus
cineastas – cineastas amadores, entenda-se. Realizou-se, aliás, na
cidade dos canais, no ano de 1970, no Primeiro Congresso Nacional de
cinema de Amadores, por iniciativa da respectiva Secção do Clube dos
Galitos.
Cineastas amadores, cineastas
livres. Como não? A palavra «amadores» no-lo inculca. Mas «livres»
não significa sem limitações – e limitações das mais diversas
naturezas. Algumas mesmo resultantes, como dizia alguém no Congresso
acima referido, duma liberdade burguesa mal-entendida (sem
determinadas responsabilidades sociais), facto que conduz muitas
vezes a um individualismo exacerbado e até a uma espécie de
narcisismo e de «torre de marfim». Por isso, nem sempre estes
amadores de cinema se devem confundir com verdadeiros cineastas
independentes.
Alguns dos cineastas amadores
aveirenses ou do respectivo distrito contam-se entre os melhores do
país. Referimo-nos, sobretudo, a Vasco Branco e a Matos Barbosa.
Também eles dedicaram alguns filmes (de 8 mm) à sua região,
nomeadamente, «Gente Trigueira» e «O Espelho da Cidade», no caso do
primeiro, e «Companha» (sobre a labuta da pesca na Praia do
Furadouro), no que respeita ao segundo. Tudo feito, aliás, com as
limitações que o tipo de amadorismo que
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época em que realizaram esses filmes, e que ainda hoje subsistem.
Aliás, até agora, nunca estes dois cineastas ultrapassaram
devidamente essas limitações, inclusive algumas de natureza técnica,
lançando-se em trabalhos com bases mais consistentes. Há tempos,
contudo, houve uma tentativa, à volta de Vasco Branco, de se criar
um grupo de cinema independente convenientemente equipado e
preparado para a realização de filmes que obedecessem a certas
exigências estéticas, linguísticas e técnicas. Mas não foi possível
levar tal iniciativa a bom termo. Algumas sequências de ensaio
filmadas (em mudo) numa das regiões mais desconhecidas e mais
remotas do distrito, ficaram apenas como recordação duma iniciativa
que nem chegou, verdadeiramente, a sair do ovo.
Não há dúvida que muito há a fazer,
e que muito pouco se fez até aqui, não só para revelar o distrito de
Aveiro através do cinema, mas também para que a sua gente possa
contribuir com alguma coisa para um ramo de arte tão importante como
a semiose fílmica. Por ora, não há indício de que se possa superar
uma tal situação.
Aveiro, 29 de Maio de 1976 |