Em 14 de Junho de 1969, decorreu no
Cemitério Central a trasladação para jazigo próprio, dos restos
mortais do grande jornalista Homem Cristo.
Junto da urna, e entre outros
oradores, usou da palavra, com carácter de representatividade, um
jovem democrata – Fernando Moniz Lopes.
Proferido mas, por óbvias razões,
não publicado na altura, o texto de Moniz Lopes, onde se dá um
perfil do notabilíssimo aveirense, aparece hoje, finalmente, e como
que numa evocação, em letra de forma.
Cumpria-nos, no tempo em que as
romagens de saudade vão já sendo ultrapassadas pela própria
velocidade dos acontecimentos da História, homenagear a grande
figura de polemista, pedagogo e sobretudo grande panfletário
político que foi Homem Cristo.
E homenagem não tem como
justificação apenas o acto de presença. É necessário que a
continuidade da nossa acção lhe seja adicionada como diferença
específica, que na polarização dialéctica do real dinâmico, tem como
implicação objectiva o alertar e o lento subir das consciências na
sua faina de apreensão do mundo, integrada no vasto programa social
que é a preocupação dominante do homem, que se mede verdadeiro, ante
a sua própria situação concreta.
|
|
Homem Cristo |
É Homem Cristo o exemplo bem marcado
do homem que sempre agiu na sua vida de ardente lutador, sabendo
medir-se na estatura mais alta dos que compreendem e sabem integrar
a folha dos seus actos no «dossier» da História.
Nunca a sua pena colaborou na ilusão
traiçoeira, mascarada dos objectivos fáceis; antes, aguçada,
penetrou como bisturi do pensador e homem de acção, nas vísceras do
grupo social, onde, para além da ilusão macia da pele das traições,
soube dissecar e apreender bem a geografia do tecido humano, o
aspecto morfológico que perpetua a transformação contínua que nos
rege.
Foi Homem Cristo uma das raras
personalidades que, com firmeza e justiça, interveio sempre nos
/ 58 / acontecimentos mais
relevantes do seu tempo; dos que estruturam na acção e desencadeiam
a força da LIBERDADE que consome e esgota o ser arrostando de frente
com todos os ataques; que não se isolou, lamentando-se vítima. Antes
aparou e desferiu os golpes na primeira linha de combate. Se algumas
vezes a sua pena se entregou ao exagero, não foi levado pela ilusão
poética, mas arrastado inteiro pela sua própria força.
E, na medida em que lutava, sempre
se esforçou por aprender tanto com os erros como com as vitórias.
Assim, na ânsia de tudo abranger na sua rede de justiça, atacou pela
base tanto reaccionários, como desmascarou os erros dos membros do
próprio Directório Republicano.
Ele pensava que só se pode ser homem
quando se age; e só pode agir com coerência aquele que supera a
nível de estrutura as lacunas onde decanta o conformismo das visões
cegas do futuro. É que o presente e o futuro se definem como função
simétrica. Nem nunca se negou a interpretar o facto político
separado do dever cívico e da cultura. Nele a teoria é coincidente
com o plano da prática.
Assim defendeu a instrução, foi
professor de História da Faculdade de Letras do Porto, lançou a
campanha contra o analfabetismo e ensinou as primeiras letras aos
recrutas, defendendo que o homem ignorante não pode servir a sua
Pátria, devendo antes defender-se o próprio homem. E o homem
defende-se pela cultura mais que pela força das armas. O homem que
luta deve comunicar com os outros homens, se não quiser ser vítima
da própria luta que desencadeia. Deve ascender progressivamente a um
plano de consciência, que lhe dite as razões verdadeiras da
comunidade e não as de um número reduzido e artificialmente
iluminado.
Homem Cristo foi homem no sentido
inteiro do termo. No «Povo de Aveiro», o jornal semanário em que
escrevia, focou problemas, desde as obras da barra, atacando o
Governo pelo abandono votado aos projectos de interesse comum e
atacou a censura até à morte. Esta cerrava as mandíbulas incitando
ao cerrar das consciências. Para um homem da sua têmpera, que não
fugia ao diálogo, nem temia a crítica, este ferrete de intervenção
alheio à vontade consciente significava a morte. Um dia tombou o
galho da árvore da frente da sua casa. E ele disse que tinha caído o
galho onde tinha pensado enforcar o censor cá da terra. O grande e
violento lutador aproximava-se do fim. Não se enganara. Mas prometia
ainda voltar. E com essa firme decisão cancelou a publicação do
jornal que durante tantos anos lhe servira de trampolim na luta – em
29 de Junho de 1941. Homem Cristo já não tinha espaço no mundo da
Imprensa; este tornara-se demasiado estreito para lutadores da sua
garra. Não era possível já o «Povo de Aveiro». O grande jornal de
panfleto fora finalmente substituído pelo nível escasso de uma
Imprensa de injúria irresponsável. Homem Cristo morreu. Mas só
homenageamos Homem Cristo porque ele não se perdeu nas linhas do
passado.
A homenagem tem um sentido presente
e uma perspectiva de futuro. Pressupõe projecção. É necessário que
nós os jovens continuemos Homem Cristo, inserindo-nos nos problemas
do nosso tempo como ele o fez, realizando a concretização do ideal
democrático que foi o seu. Que saibamos como ele soube que o homem
só vive quando se reganha, inscrevendo como sua a verdade que visa o
bem comum, superando o egoísmo e a ignorância que impede o próprio
destino de caminhar no seu rumo de futuro. Saibamos distinguir na
balança da História os erros cometidos, as infracções do jogo, o
desequilibrar aquela no sentido da justiça, da liberdade humana, que
tem correspondência no direito e na força da deliberação consciente,
valores fundamentais pelos quais ele sempre lutou. |