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N.º 21

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1976 

Para uma abordagem sócio-económica do concelho de Estarreja

Por José Luís Vidal
e
Júlio Dias Gomes

I

CARACTERIZAÇÃO GEO-DEMOGRÁFICA

Ao norte Válega, Sr.ª das Entre-Águas, e outros lugares e lugarejos dispersos entre a fertilidade da terra húmida. Do lado do poente o Bunheiro, a Murtosa, as Quintas do Norte, a água, o sal e a maresia, a Torreira. Para leste, caminhando para o interior, Loureiro, Tonce, Contumil e a terra mais dura e enrugada. Ao sul Angeja, Cacia, Esporões, e mais abaixo Aveiro, a capital do distrito. Assim temos delimitado na sua geografia o concelho de Estarreja.

Concelho de transição entre uma realidade aquática que é a ria que o penetra em várias frentes, e uma sensação real de terra já mais firme, não de todo seca, mas sempre algo mais dura e impenetrável. Deste modo, toda a natureza definidora da sua situação é dependente destes factores básicos, que determinam toda a vivência de luta e trabalho das suas gentes. Estas devem ser compreendidas nas suas atitudes, tendo em conta essa singular posição que a peculiaridade da situação geográfica, bem definida, influencia. E tal é aplicável, no caso concreto ao concelho de Estarreja, mas não deixa de o ser a um nível genérico, a todo o distrito de Aveiro.

Domina no concelho, como em todo o norte do país, a pequena propriedade. A agricultura, apesar de se notar um certo incremento do sector industrial, que focaremos adiante, continua a ser uma actividade com predominância no quotidiano das gentes do concelho. Daí que toda a sua psicologia seja voltada prioritariamente para os problemas da terra, tanto para os que através dela se resolvem, como para os que a sua cultura diariamente levanta.

É por isso que não podemos falar da existência, apesar de um grande número de unidades industriais, de um verdadeiro proletariado. Os operários, na sua grande maioria, quase que só o são, passe a expressão, nas horas vagas. Toda a sua acção na fábrica se reduz a uma luta contra o tempo, já que terminado o trabalho fabril há o regresso à recolha do pasto para os animais, à rega do milho, ou à sementeira das batatas, trabalhos que já foram sendo adiantados pelas mulheres e demais familiares. Assim, os seus interesses são em primeira análise os do agricultor que mira o céu antevendo ou não um tempo favorável à actividade agrícola, e só secundariamente os desejos do operário que apontam normalmente para o aumento do salário, dia-a-dia mais necessário, devido à subida em flecha dos géneros.

E como podemos encarar a população do concelho em termos quantitativos? Os últimos números de que dispomos são os referentes ao recenseamento de 1970, e apontam para 24233 pessoas repartidas por 6510 famílias, o que dá uma média de 3,7 pessoas por agregado familiar. Verifica-se também, em relação ao censo de 1960, um decréscimo de 765 pessoas, o que corresponde, em percentagem, a uma variação negativa da ordem dos 3%.

Esta variação poderá, de certo modo, explicar-se se atendermos ao fluxo emigratório que se verificou com forte intensidade em algumas freguesias do concelho. Possivelmente a tendência que se materializará no próximo censo será, já não de sentido negativo, mas apontará, isso sim, para um aumento populacional com alguma expressão.

E que possibilidades de produção, em termos de rentabilidade económica, representa o concelho de Estarreja, contribuindo para a afirmação de um distrito que possui o terceiro parque industrial do país, só ultrapassado pelos de Lisboa e Porto? É essa questão que abordaremos de seguida. / 28 /

II

CARACTERIZAÇÃO ECONÓMICA: AGRICULTURA E INDÚSTRIA

Como atrás se disse Ia agricultura desempenha um papel importante no cômputo das actividades locais. O concelho apresenta-se auto-abastecido em produtos agrícolas e pecuários, desenhando-se mesmo um movimento de exportação para outros concelhos, que tem vindo a aumentar no que respeita à carne e ao leite e que tem diminuído no que toca a produtos agrícolas, tais como milho, feijão, arroz e batata.

Quanto à organização dos produtores agrícolas, existe desde 74 uma cooperativa de compra e venda, que vem fornecendo aos seus associados os adubos, pesticidas e outros produtos de que carecem.

Sobre a renovação de métodos agrícolas com a introdução de maquinaria e novas técnicas de cultivação, basta dizer que de 73 a 74 foram adquiridos por agricultores do concelho 13 máquinas agrícolas e 15 tractores, a que logicamente implica um aumento dos padrões de produtividade.

No que toca ao tipo de solos existentes e consequentemente ao tipo de culturas praticado, não se verificam diferenciações acentuadas entre as várias freguesias componentes do concelho. Não se pode estabelecer uma predominância de terrenos de regadio em determinada zona e de sequeiro noutra. Nas várias zonas verifica-se uma composição de solos muito equilibrada, relativamente a estes dois tipos de terrenos.

Daí que seja a rotação das culturas similar nas diversas freguesias, não havendo também, no que respeita à produção pecuária, diferenças significativas entre elas.

Mas vejamos o que se passa no capítulo da indústria.

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Acompanhando a industrialização que começou a ganhar corpo incipientemente na nosso país em meados da década de 40, o concelho é dotado de uma série de unidades industriais que foram aumentando ao longo dos anos a sua capacidade produtiva, sendo também progressivamente crescente o número de empresas a ficarem aqui a sua actividade. Deste modo, e tal como é conhecido ser apanágio do aparecimento da industrialização, começou a verificar-se uma nítida passagem progressiva de mão-de-obra do sector primário para o sector secundário em expansão, com evidentes reflexos

de retraimento no primeiro. Assim, muitas das terras de cultura tradicionalmente cuidadas deixaram de o ser devido à falta de mão-de-obra que se vem a fazer sentir, já que a agricultura em termos de rentabilidade económica não tem possibilidades de competir ao nível de vencimentos com as empresas industriais, isto devido a uma série de factores entre os quais se designam os métodos de trabalho rudimentares, verdadeiramente arcaicos, que continuam a ser usados em muitas casos.

Por outro lado, o aparecimento de unidades industriais bem apetrechadas, a requererem um elevado quantitativo de operários, veio contribuir para se notar ano após ano uma crescente expansão da vida económica do concelho, com um avolumar das actividades comerciais, a construção de novos e cada vez mais necessários equipamentos colectivos, e um inerente aumento do nível de vida das populações.

As diversas unidades fabris existentes podem enquadrar-se genericamente numa definição por sectores, que passaremos a enumerar, valorizando-os tendo em conta quer o seu volume de vendas num determinado período (neste caso o ano de 1974) quer o número de postos de trabalho directamente mantidos a essa altura.

Assim, e reportando-nos a dados estatísticos concretos directamente cedidos pelas empresas, ficamos a saber que o sector química apresentou por si só em 1974 um montante de vendas da ordem dos 800000 contos, assegurando na altura 1400 postos de trabalho. Os produtos fabricados são dos mais variados, e vão do hidrogénio ao sulfato de amónio, das resinas sintéticas ao cloro, da amoníaco ao hipoclorito de sódio, passando pelo ácido sulfúrico, pelo azoto, pelo ácido clorídrico, produtos de larga aplicação industrial.

Mas, reflectindo as diferenciações geográficas já acima apontadas, que concorrem para uma interessante diversidade industrial, encontramos um outro sector que pelas mesmas razões já aludidas em relação ao sector químico, ocupa lugar de destaque: o sector dos lacticínios. Este apresentava um montante de vendas da ordem dos 240 000 contos, assegurando 400 postos de trabalho directos. E produzia, para além de queijo e manteiga, leite em pó, alimentos infantis e dietéticos, bem como bebidas instantâneas de base láctea.

Num outro sector, que podemos designar genericamente por metalurgia leve, e onde se incluem a produção de mobiliário metálico doméstico, escolar, de escritório, hospitalar, e ainda a leitura de peças de fundição e alfaias agrícolas, o aspecto também não deixava de ser animador. O ramo apresentava um volume de vendas da ordem dos 55 000 contos, mantendo directamente 340 postos de trabalho.

Por outro lado, apresenta também um certo incremento o ramo da serração e construção de móveis e estruturas em madeira. O valor de vendas global foi da ordem dos 19 000 contos, sendo inferior a outras actividades já referidas o número de postos de trabalho, que rondava os 100.

A cerâmica não deixa também de ter uma palavra a dizer. Existindo três unidades fabris em laboração, / 29 / estas produziram (e repete-se que todos estes números e dados estatísticos são referentes a 74) um total de 6096020 peças, atingindo um montante de vendas de 10700 contos, e mantendo no seu conjunto 120 postos de trabalho.

E a diversidade industrial do concelho não fica de modo algum por aqui. Podemos ainda referir a produção de refrigerantes ou de flores artificiais, a existência de uma unidade fabril de descasque de arroz, assim como uma empresa de transportes de camionagem.

Quanto a perspectivas de evolução futura, elas apontam visivelmente para um incremento do sector industrial, nomeadamente no que respeita ao sector químico com o aumento qualitativo a médio prazo da capacidade produtiva do Amoníaco Português, com a introdução da fabricação de anilinas.

III

EQUlPAMENTOS COLECTlVOS

Neste campo, as disponibilidades não são totalmente desfavoráveis, se tivermos em consideração as enormes carências existentes em largas zonas do país, nomeadamente no interior. Contudo, também não podemos dizer que elas sejam de todo em todo suficientes. Vejamos uma panorâmica dos vários sectores.

No que toca à saúde ela é assegurada por um hospital que dispõe de 135 camas, para além da actividade dos postos dos serviços médico-sociais da Previdência. Domiciliados no concelho existem ao todo treze médicos, o que significa uma cobertura sanitária traduzida numa média de um médico para cada 1902 habitantes, o que não pode considerar-se satisfatório. Nota-se simultaneamente uma certa carência de diplomados nas diversas especialidades, excepção aberta à estomatologia.

No campo escolar, para além da normal rede de escolas do ensino primário, existe ainda uma escola do ciclo preparatório que no ano lectivo de 1974/75 registou uma frequência de 532 alunos. Para além dela, funciona ainda a Escola Secundária que ministra os cursos gerais de mecânica, de electricidade e de administração e comércio, bem como o curso geral e complementar dos liceus. Assim, nota-se a ausência dos cursos complementares técnicos, o que obriga ao deslocamento para Ovar, Aveiro ou Oliveira de Azeméis dos alunos que os desejam prosseguir. Por outro lado, a própria Escola Secundária enfrenta desde há muito uma angustiante exiguidade de instalações, para além do facto, sempre desmobilizador para o bom funcionamento das várias actividades, de se encontrar repartida por três secções e simultaneamente três edifícios.

Quanto ao fornecimento de carne, ele é assegurado pelo pleno funcionamento do Matadouro Municipal que, e isto no sentido de se dar uma ideia do peso da sua actividade, abateu no ano de 1975 um total de 22 072 reses, com um peso total de 1414473 quilos.

Relativamente à rede de transportes, o concelho é servido pelo caminho-de-ferro (Linha do Norte), e pela estrada nacional n.º 109, normalmente utilizada no trajecto Porto-Aveiro, ficando a escassos quilómetros da estrada nacional n.º 1. As estradas municipais não são totalmente suficientes se atendermos ao volume de trânsito actualmente existente, mas têm vindo a ser progressivamente melhoradas quer no aspecto de qualidade de piso, quer no que toco ao traçado da via ou à largura da mesma.

IV

O CONCELHO E A DIVISÃO ADMINISTRATIVA DO PAÍS

Inserindo-se actualmente numa realidade física, económica e geográfica que é o distrito de Aveiro, o concelho de Estarreja irá pertencer, segundo o projecto do M. A. I. da Administração Regional, à Província da Beira. Por outro lado, o distrito de Aveiro será administrativamente seccionado, já que concelhos que hoje em dia nele se integram, serão incluídos uns na Província do Minho, Douro e Trás-os-Montes, outros na Província da Beira, ou ainda, e finalmente, na Área Metropolitana do Porto.

Apresentando, o M. A. I, como critérios específicos para a delimitação da Província da Beira toda uma série de razões de ordem ecológica e histórico-naturais, estas não deixam de ser, contudo, passíveis de discussão e desacordo. Isto porque a utilização de determinados critérios implica, quase sempre, a não utilização, o afastamento de outros tão importantes como os utilizados. Daí que tenha a definição ou delimitação seja sempre uma parcelização das questões em causa.

E, se tal é assim genericamente, aqui também o não deixa de ser. Mas o mais importante na análise do projecto apresentado não é, de maneira nenhuma, o prisma geográfico delimitativo de tal ou tal província. Portanto conviria adiantar duas ou três ideias de crítica estrutural ao projecto em causa.

Desnecessário quase se torna referir a importância da transformação do aparelho administrativo do Estado num sentido progressivo de descentralização e desburocratização. E o termo descentralização deve aqui ser / 30 / empregue possuindo uma carga inerente a todo um processo de deperecimento das funções omnipotentes e omnipresentes do Estado, em favor de uma mais activa comparticipação das populações, tentando apontar as vias de resolução que achem mais correctas, no sentido de sanarem localmente os seus problemas específicos.

É que, para além de uma diferente divisão administrativa (que, de facto, aparece consignada no projecto apresentado), para além de uma certa autonomia financeira e de decisão que é conferida às regiões administrativas que surgem delimitadas por essa nova divisão, para além de tudo isso, resta apontar-se que sem se favorecer simultaneamente um reforço da actuação financeira e jurídica dos municípios e dos órgãos locais que as populações eventualmente possam constituir para promover o desaparecimento das carências com que lutam, será muito difícil definir-se uma verdadeira descentralização, uma descentralização tal como ela deve, de facto, ser entendida.

Na verdade, não é segredo para ninguém a existência de fortes distorções no desenvolvimento das diversas zonas do país. E muito se tem falado e especulado sobre as suas causas últimas. Tais causas têm, quanto a nós, uma acentuada caracterização política, e são facilmente assimiláveis atendendo ao tipo de poder derrubado em 25 de Abril.

Contudo, não será correcto considerarmos que modificado o actual aparelho administrativo – surgido para apoiar esse tipo de desenvolvimento assimétrico estarão imediatamente resolvidos os problemas das regiões que até aqui mais têm sido esquecidas pela administração central e pelas competentes entidades dos processos de planeamento. Isso não passaria de um modo algo subtil de iludir as questões de fundo, relativas ao atraso, não de certas zonas do país, mas sim de todo o país. É que o modo de ultrapassar esse atraso, não está, em última análise, dependente do aparelho administrativo do Estado, mas sim da natureza do poder político que dominar esse mesmo aparelho.

Deste modo, nunca será demais referir que para que o projecto de regionalização não passe de uma alternativa materializadora de um desenvolvimento tecnocratizante, recuperadora da incapacidade do aparelho político central em termos de um mudar alguma coisa para que tudo permaneça na mesma, urge que ele ultrapasse a mera redefinição de novos espaços sócio-económicos, e que consubstancie uma participação activa e autonomamente cada vez mais acentuada dos órgãos de poder local.

 

páginas 27 a 30

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