Na retina, os desenhos ingénuos, as
cores puras e luminosas, todo um conjunto harmónico, mas álacre,
dispensando a análise que sempre distancia a aceitação natural de
quem vê nessas manifestações um prolongamento da própria paisagem.
Os olhos bebiam a carícia da forma e da cor como se perenemente
existentes em caixilho ideal. E como fundo, apenas água e céu, muita
água e muito céu, casando-se em azulados e verdes raros, longe, na
linha ambígua do horizonte. «A alma desta terra é na realidade a sua
água», percebemo-lo e sentimo-lo, assim profundamente, tal como o
nosso Raul Brandão. Tudo isto, que talvez nada fosse, que talvez
nada seja, ali, muito próximo no espaço. Tudo isto, ali, vivíssimo
na evocação, à beira da laguna, onde os barcos roçavam a cabeleira
ondulante e verde-seca dos caniçais, onde os caminhos alagadiços de
Iodo, algas e junco surgiam como cicatrizes abertas pelo rodado dos
carros de bois. Não ardia ainda tão alta esta febre da coisa
motorizada. Percebia-se, por isso, distintamente, o marulhar da onda
miúda, o salto da tainha, o chamamento da gaivina e, às vezes,
longínqua, a ronca do farol da Barra violentando o hálito denso e
oloroso da nevoaça.
De facto, muito de tudo isto
irremediavelmente perdido! O progresso cobra sempre o seu preço.
Alto preço. Hoje, a laguna da minha meninice, os canais de mistério
da minha adolescência, os caminhos de sal, areia e Iodo da minha
juventude, conturbados pela violência sonora dos pretensiosos barcos
de turismo, esmagados pela potente eficiência do tractor e seus
atrelados. A nossa virgindade sensorial molda-se em novas formas. A
nossa atenção é solicitada agora pelo metal, pelo ritmo ensurdecedor
dos motores, pelo gosto excitante da velocidade. Tudo mudou.
Insensivelmente. Progressivamente. Definitivamente.
Quando teria eu reparado nas proas
dos moliceiros, nos relevos coloridos das cangas? Ou antes: quando
as teria eu cindido da própria paisagem? Vemos sempre muito pouco o
que temos constantemente diante dos olhos. Talvez por isso só muito
tarde me tenha dado conta do merecimento, da beleza, do real
interesse destas manifestações de arte popular em vias de extinção.
E essa extinção seria o tal preço a pagar pelo progresso. Aliás,
progresso desejável, desde que orientado no sentido de proporcionar
ao povo melhores condições de vida. Cabe-nos, no entanto, o dever de
acautelar as melhores peças restantes em museu de etnografia, antes
que nos fiquem simples despojos insignificativos, ou apenas fósseis
mais ou menos enigmáticos.
A canga
(1)
usada para jungir o gado da beira-ria é, a maior parte das vezes, do
tipo vareiro, sobretudo até à linha marcada pelo avanço do principal
braço do Vouga. O trapézio central, estreito e elegante,
profusamente decorado e colorido, aparece logo às portas da cidade,
servindo quem amanha as courelas baixas e úberes que o rio alaga na
sua investida para o termo da viagem. Em Cacia, as primeiras peças
entalhadas e pintadas ao jeito vareiro. E o seu uso alonga-se pelo
distrito até ao Douro. Para o sul de Aveiro apaga-se, subitamente,
toda a alacridade. As cangas reduzem-se então a simples travessa
estreita e baixa sem vislumbre de ornatos. É como se nos
aventurássemos em outro mundo mais sóbrio, avaro e meramente
funcional. O Douro, centro geográfico da preocupação artística
evidenciada nestas alfaias, estende longos braços a norte e a sul,
apêndices que os rios Minho e Vouga cortam cerce. Há, todavia,
diferenças substanciais entre a canga minhota e a canga vareira,
extremos que são desta cadeia aliciante. A nossa (e chamo nosso ao
jugo), mais frequente na parte da Beira Litoral que confina com o
Douro (mas é parte integrante do distrito de Aveiro) é sempre
irregular na sua configuração: alta no centro, abate-se dos lados,
abruptamente, para aí pousar em forma de disco. O jugo minhoto, pelo
contrário, mantém a mesma altura em todo o seu comprimento ou,
quando muito,
/ 51 / apresenta um desnível
muitíssimo doce, desenhando uma linha curva na sua parte superior,
ou um ângulo muito pouco pronunciado cujo vértice coincide com o
centro do madeiro. A canga minhota, cuidadosamente esculpida, lembra
uma renda delicada pela sucessão generosa de varandas amplamente
vasadas. Não há espaços, nem pontos mortos, neste jugo. O desenho
caprichoso e habilmente imbricado cobre por completo toda a
superfície. A canga vareira raramente é vasada. E, quando isso
acontece, as perfurações acidentais em nada se assemelham às citadas
varandas. São simples buracos circulares de pequeno diâmetro. A
nossa canga é quase sempre pintada, isto é, os motivos gravados na
madeira são criteriosamente sublinhados pela acção da cor. São
usadas cores puras, vivas, transparentes. Daí, do emprego da mesma
gama de tons, talvez a semelhante impressão de frescura que sempre
me sugeriram as proas dos barcos moliceiros.
Estas cores são frequentemente
manipuladas pelo próprio artista, que é ao mesmo tempo carpinteiro e
entalhador. Assisti algumas vezes à preparação destas tintas
alinhavadas em cacos de louça de barro vermelho, ou em velhas latas
de conserva. E mestre Soeco (Soeco de apelido e escrito com o, para
meu espanto), dependurada a pirisca na orelha, vertia uma golada de
óleo sicativo sobre uma porção de corante calculada a olho. Depois
de feita a prova no topo da peça que trabalhava, distribuía a cor
sem obediência a qualquer plano cromático. Isto, o que me parecia.
Mas, acabada a obra, a harmonia do
conjunto, o equilíbrio na distribuição dos tons patenteavam
francamente a sabedoria (ou instinto, se assim o quiserem) que lhe
guiava as mãos.
Os motivos centrais da canga vareira
vão da custódia, cruz de Cristo, vaso de flores, signo-saimão (que
nos protege do mau-olhado), às armas da monarquia e república. Os
elementos decorativos menores são geralmente fitomórficos e
geométricos. Os corações (tão frequentes na arte popular nortenha,
nomeadamente na ourivesaria, nos bordados, na própria decoração dos
barros) constituem outro elemento decorativo das cangas, sobretudo
durienses e minhotas. A flor-de-lis aparece também, mas quase sempre
disposta em friso.
– O trabalho é mal pago. E isso
obriga-me a usar madeiras mais brandas como o eucalipto, diz-me
mestre Soeco. (2)
Mestre José Soeco mostrando alguns dos
seus belos exemplares de cangas vareiras.
Depois cita o lamegueiro, o
carvalho, o castanheiro, e o sobreiro como superfícies ideais para o
formão.
Mestre Soeco, que ronda hoje os
oitenta anos de idade, começou a interessar-se pelas cangas ainda
moço e extasiado pelo trabalho que saía das mãos do seu progenitor
com quem aprendeu o ofício. Há muito que trabalha sem o auxílio de
qualquer muleta.
O desenho brota naturalmente da
ponta do lápis e a composição depressa se espalha pela madeira
afagada pela plaina e pela lixa. É então a vez do gravador. Em
movimentos rítmicos, passa pela pedra encharcada o fio do formão e a
ponta da goiva. O desenho ganha relevo a cada investida. Surgem as
folhas, as pétalas, os ramos sinuosos, os círculos franzidos (talvez
estilização excessiva de flores silvestres), os frisos. E a
/ 52 / meio, bem evidente, o
escudo como motivo central. O desbaste cria formas ingénuas e
associações ingénuas entrelaçando o religioso com o profano.
A canga nua, isto é, sem pintura,
ganha em delicadeza o que perde em alacridade. Apesar de tudo, o seu
tratamento escultórico muito mais alapado fica, quanto a mim, aquém
da renda finíssima conseguida pelos artistas minhotos.
A pintura de cores vivíssimas e
depois a aposição dos pincéis de cabelo branco e negro dão à peça
uma alegria que sempre me sugere festa popular com música, foguetes
e arraial. Talvez a canga me recorde os arcos coloridos que se
elevam nas ruas das nossas aldeias em dias festivos. Quem sabe?
Mas mestre Soeco, que prepara a
madeira, que a risca, que a entalha, que a pinta e que a encabela,
cobra uma ninharia pela sua semana de trabalho e por todos os
materiais gastos na obra. Mesmo assim, a procura por parte do
lavrador é muito menor, agora. E se não fora a ânsia do turista,
sobretudo do turista estrangeiro, pela recordação de viagem, pelo
troféu desencantado algures, neste país perdido em excêntrico
recanto da Europa, mestre Soeco teria que optar definitivamente pelo
amanho de seus magros pedaços de terra. O turista, bem servido, leva
uma das mais belas peças do mundo, no dizer do etnógrafo polaco
Frankowski. E o artista vai sonhando talvez com a almejada e justa
compensação para o trabalho que executa com todo o seu saber, com
todo o seu suor, com todo o seu coração.
O levantamento, ou antes, o
inventário das manifestações de arte popular do nosso distrito não
se completou ainda capazmente, suponho. Há, pois, que percorrer com
olhos bem abertos, conhecimentos adequados e profunda sensibilidade,
estes areais onde o homem anfíbio lavra e marinha, as terras altas
do anacrónico pastor teimosamente perdido entre cardos e tojais de
serranias esquecidas. É um crime deixarmos perder, por pura
negligência, os mais significativos indícios da história do homem
que vegeta na nossa região. E é lamentável, também, não acarinharmos
o esforço corajoso destes abencerragens de uma arte materialmente
inglória.
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NOTAS
(1)
– Jugo e canga são termos equivalentes. Há, todavia, quem os
distinga, chamando canga à peça quando baixa e jugo quando alta.
(2)
– Mestre Soeco vive e tem a sua oficina, rudimentaríssima, em
Avanca. |