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N.º 20

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1975 

Arquivo Aveirense

MESTRE HEITOR CRAMEZ

– UM PINTOR QUE AVEIRO CONHECEU

Por J. Vieira

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Quando num Agosto afogueado e luminoso, estava prestes a morrer, fechou os olhos para sempre um dos grandes pintores de Portugal – Mestre Heitor Cramez.

Vila-realense – «Eu sou transmontano!» ufanava-se de o repetir a cada passo –, votava igualmente um entranhado afecto a Paris, que conhecia como os seus dedos, ao Porto, onde viveu e ensinou largo tempo, e à cidadezinha da beira-ria onde, por fim, viera acolher-se e jaz em campa rasa.

HEITOR CRAMEZ (Auto-retrato, 1922)

Começando, com verdes anos, por ser praticante numa repartição da terra natal, depressa revelou extraordinária vocação para o desenho. Cumpridor a preencher laudas e impressos, denotava no entanto maior perícia, motivando admirações, ao «ilustrar» por desfastio a papelada mais ou menos inútil... Ventos fagueiros levá-lo-iam, felizmente, talvez com dezasseis anos, à Escola de Belas Artes do Porto. Marques de Oliveira e José de Brito, pintores e professores insignes puderam confirmar as aptidões do jovem discípulo e o certo é que Heitor Cramez, concluído o curso, conquistou, mediante as consabidas provas, uma bolsa de estudo para prosseguir, durante cinco anos, os estudos em Paris. Aluno, na «cidade da luz», como outrora era hábito dizer-se, do consagrado Cormon, Cramez não deixou de impor-se entre os colegas de Franças e Araganças, assinando numerosos e valiosos trabalhos, alguns dos quais enriquecem o património artístico, aliás riquíssimo, da Escola portuense onde aprendeu e onde depois viria a ensinar.

Companheiro dilecto, em Paris, de artistas portugueses da mais elevada estirpe – Diogo de Macedo, Manuel Jardim, Abel Manta, Francisco Franco e Dórdio Gomes, hoje o único sobrevivente da excelsa plêiade –, Heitor Cramez, ainda que deveras comunicativo, era invulgarmente modesto, de todo avesso a falar de si. Se o inquiriam acerca do seu curriculum-vitae, quase respondia com monossílabos. Certa vez, para uma importante enciclopédia e depois de muito instado, limitou-se a responder: – O que é que quer?! Olhe, ponha lá: nasci em Vila Real e vim para o Porto. Daqui fui para Paris e regressei, após algum tempo, a Vila Real. Mais tarde voltei ao Porto.

E, ante o olhar atónito do interlocutor, matou a «questão».

– Quer que lhe diga mais, se não tenho mais nada para dizer?!

Era assim, enconchado, o distinto aluno de Cormon a quem os colegas da Academia parisiense conheciam por «Porto» e não pelo seu verdadeiro nome. Isto mesmo, que não deixará de ser grato aos portuenses, / 48 / foi-nos dado surpreender num volume francês que evoca as andanças de artistas moços por Paris.

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Aveiro – Barcos na Ria (Pochade, 1962)

Quando, um dia, se estudar convenientemente a obra de Mestre Heitor Cramez, onde avultam paisagens, naturezas mortas, flores e notabilíssimos retratos, ver-se-á, a meridiana luz, que o pintor não se limitou a seguir outras pisadas. Senhor de uma poderosa técnica, sem revolucionar – inovou.

Referindo-se a mestre Joaquim Lopes, Narciso de Azevedo, grande figura do Porto literário, escreveu oportunamente: «Perante a Natureza o artista não se deixava dominar por ela, imitando-a servilmente, mas opunha-lhe a sua invencível independência, realizando nas suas obras uma livre personalidade. A imitação da Natureza quanto mais fiel tanto mais se opõe à Arte. Fidelidade é servilismo. Em estética o servilismo destrói a espontaneidade criadora: não há criação sem liberdade».

Tais palavras ajustam-se perfeitamente ao Mestre agora desaparecido.

No catálogo da exposição organizada pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto, «Dois séculos de modelo vivo – 1765-1965», lêem-se, traçadas pelo eminente professor-arquitecto Carlos Ramos, elucidativas e justas referências aos merecimentos e talentos de Cramez. Daí, e como lógico corolário, o primoroso se não precioso volume inserir, em policromia, uma tela do mestre nascido em Vila Real. E tal honra deve vincar-se, coube tão-somente a um Francisco José de Resende, a um Henrique Pousão e a um Guilherme Camarinha. Quatro nomes, quatro etapas na pintura de modelo vivo...

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Um dia, em Vila Real, outro Mestre, mas este das nossas letras, o gigantesco e saudoso Aquilino, que tinha conhecido e se tornara amigo do Pintor na babilónica Paris, interrogou-o de chofre – e a pergunta não deixava de implicitar um elogio:

– Por que não vai para Lisboa?!

– Ora – redarguiu com a modéstia de sempre o interpelado –, se toda a gente fosse para Lisboa, ficava a província deserta...

HEITOR CRAMEZ (Auto-retrato, 1957)

Companheiro de Diogo de Macedo em Paris e íntimo, em Lisboa, da casa do director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, Cramez não se encontra todavia representado, o que poderá causar espécie, nas colecções da rua de Serpa Pinto. Detectivando, por nossa conta, a origem da estranha ausência, conseguimos averiguar que só a «feroz» modéstia do pintor e, paradoxalmente, a viva amizade que ligava os dois artistas protelou sem remédio a presença de qualquer trabalho no grande estabelecimento museológico. Por qualquer circunstância, mas essa desconhecida, foram mais felizes o Museu Nacional de Soares dos Reis e o também cotado «Grão Vasco».

Agora, que a morte apunhalou traiçoeiramente o Artista, gelando-lhe a mão, uma lenda queremos, e isso nos cumpre, destruir. Ao invés do que possa cuidar-se e tem sido mesmo afirmado em letra redonda, o mais / 49 / representativo dos mestres Cramez transmontanos não malbaratava caprichosamente os seus dias. Nas horas em que um absorvente e ininterrupto professorado lhe deixava livres, pintou inumeráveis telas, muitas das quais, talvez o mais vultoso núcleo, se encontram na capital francesa. Ao alor do talento e com olhos amoráveis fixou trechos de Paris, recantos do Porto, as imponentes paisagens do seu querido Marão, e, por fim, em magníficas pochades, um ou outro aspecto de Aveiro e das praias miroas. Tudo isto sem contar uma galeria de admiráveis retratos, três deles pintados bem recentemente.

De estatura meã, simples no trajar, certo dia, uma velhinha, ao vê-lo descer o Marão com a mochila do ofício às costas, interrogou-o:

– Leva rosários?

– Não, santinha. Já se acabaram.

– Ah!

Nestes derradeiros tempos, já um poucochinho vergado pela força dos invernos, Mestre Cramez contentava-se em transportar na mão a humilde mochila, agora aliviada, do supérfluo, que adquirira em França. Quando ia à sua vida de pintor, gostava de passar despercebido. Mas desenhava e pintava mais do que à primeira vista pode supor-se. Seja, porém, como for, Mestre Heitor Cramez legou à arte portuguesa muitas e muitas dezenas de quadros, quiçá mesmo centenas, bastantes deles autênticas obras-primas. Por exemplo, por exemplo apenas, o retrato do arquitecto Manuel Marques, dois auto-retratos, alguns trechos de Paris e de Vila Real são, na realidade, magistrais. Têm garra, possuem sólida estrutura. Probo, exigente consigo próprio, meditava, concluída uma tela, se a devia ou não assinar. E quanta vez, de preferência a apor-lhe o nome, não optou pela inutilização pura e simples...

Com setenta e sete anos, Mestre Heitor Cramez alardeava, como artista, transbordante juventude. Inesperadamente, implacavelmente, a morte cortou cerce o alado voo. Mas o que deixou bondará para dar perenidade ao ilustre transmontano, ao «Porto» das cosmopolitas gerações que, na segunda década do século, passaram pela École Supérieur des Beaux Arts de Paris...

Outubro de 1967.

 

páginas 47 a 49

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