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Quando num Agosto afogueado e
luminoso, estava prestes a morrer, fechou os olhos para sempre
um dos grandes pintores de Portugal – Mestre Heitor Cramez.
Vila-realense – «Eu sou
transmontano!» ufanava-se de o repetir a cada passo –, votava
igualmente um entranhado afecto a Paris, que conhecia como os
seus dedos, ao Porto, onde viveu e ensinou largo tempo, e à
cidadezinha da beira-ria onde, por fim, viera acolher-se e jaz
em campa rasa. |
HEITOR CRAMEZ (Auto-retrato,
1922) |
Começando, com verdes anos, por ser
praticante numa repartição da terra natal, depressa revelou
extraordinária vocação para o desenho. Cumpridor a preencher laudas
e impressos, denotava no entanto maior perícia, motivando
admirações, ao «ilustrar» por desfastio a papelada mais ou menos
inútil... Ventos fagueiros levá-lo-iam, felizmente, talvez com
dezasseis anos, à Escola de Belas Artes do Porto. Marques de
Oliveira e José de Brito, pintores e professores insignes puderam
confirmar as aptidões do jovem discípulo e o certo é que Heitor
Cramez, concluído o curso, conquistou, mediante as consabidas
provas, uma bolsa de estudo para prosseguir, durante cinco anos, os
estudos em Paris. Aluno, na «cidade da luz», como outrora era hábito
dizer-se, do consagrado Cormon, Cramez não deixou de impor-se entre
os colegas de Franças e Araganças, assinando numerosos e valiosos
trabalhos, alguns dos quais enriquecem o património artístico, aliás
riquíssimo, da Escola portuense onde aprendeu e onde depois viria a
ensinar.
Companheiro dilecto, em Paris, de
artistas portugueses da mais elevada estirpe – Diogo de Macedo,
Manuel Jardim, Abel Manta, Francisco Franco e Dórdio Gomes, hoje o
único sobrevivente da excelsa plêiade –, Heitor Cramez, ainda que
deveras comunicativo, era invulgarmente modesto, de todo avesso a
falar de si. Se o inquiriam acerca do seu curriculum-vitae, quase
respondia com monossílabos. Certa vez, para uma importante
enciclopédia e depois de muito instado, limitou-se a responder: – O
que é que quer?! Olhe, ponha lá: nasci em Vila Real e vim para o
Porto. Daqui fui para Paris e regressei, após algum tempo, a Vila
Real. Mais tarde voltei ao Porto.
E, ante o olhar atónito do
interlocutor, matou a «questão».
– Quer que lhe diga mais, se não
tenho mais nada para dizer?!
Era assim, enconchado, o distinto
aluno de Cormon a quem os colegas da Academia parisiense conheciam
por «Porto» e não pelo seu verdadeiro nome. Isto mesmo, que não
deixará de ser grato aos portuenses,
/ 48 / foi-nos dado
surpreender num volume francês que evoca as andanças de artistas
moços por Paris.
Aveiro – Barcos na Ria (Pochade, 1962)
Quando, um dia, se estudar
convenientemente a obra de Mestre Heitor Cramez, onde avultam
paisagens, naturezas mortas, flores e notabilíssimos retratos,
ver-se-á, a meridiana luz, que o pintor não se limitou a seguir
outras pisadas. Senhor de uma poderosa técnica, sem revolucionar –
inovou.
Referindo-se a mestre Joaquim Lopes,
Narciso de Azevedo, grande figura do Porto literário, escreveu
oportunamente: «Perante a Natureza o artista não se deixava dominar
por ela, imitando-a servilmente, mas opunha-lhe a sua invencível
independência, realizando nas suas obras uma livre personalidade. A
imitação da Natureza quanto mais fiel tanto mais se opõe à Arte.
Fidelidade é servilismo. Em estética o servilismo destrói a
espontaneidade criadora: não há criação sem liberdade».
Tais palavras ajustam-se
perfeitamente ao Mestre agora desaparecido.
No catálogo da exposição organizada
pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto, «Dois séculos de
modelo vivo – 1765-1965», lêem-se, traçadas pelo eminente
professor-arquitecto Carlos Ramos, elucidativas e justas referências
aos merecimentos e talentos de Cramez. Daí, e como lógico corolário,
o primoroso se não precioso volume inserir, em policromia, uma tela
do mestre nascido em Vila Real. E tal honra deve vincar-se, coube
tão-somente a um Francisco José de Resende, a um Henrique Pousão e a
um Guilherme Camarinha. Quatro nomes, quatro etapas na pintura de
modelo vivo...
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Um dia, em Vila Real, outro
Mestre, mas este das nossas letras, o gigantesco e saudoso
Aquilino, que tinha conhecido e se tornara amigo do Pintor na
babilónica Paris, interrogou-o de chofre – e a pergunta não
deixava de implicitar um elogio:
– Por que não vai para Lisboa?!
– Ora – redarguiu com a modéstia
de sempre o interpelado –, se toda a gente fosse para Lisboa,
ficava a província deserta... |
HEITOR CRAMEZ (Auto-retrato,
1957) |
Companheiro de Diogo de Macedo em
Paris e íntimo, em Lisboa, da casa do director do Museu Nacional de
Arte Contemporânea, Cramez não se encontra todavia representado, o
que poderá causar espécie, nas colecções da rua de Serpa Pinto.
Detectivando, por nossa conta, a origem da estranha ausência,
conseguimos averiguar que só a «feroz» modéstia do pintor e,
paradoxalmente, a viva amizade que ligava os dois artistas protelou
sem remédio a presença de qualquer trabalho no grande
estabelecimento museológico. Por qualquer circunstância, mas essa
desconhecida, foram mais felizes o Museu Nacional de Soares dos Reis
e o também cotado «Grão Vasco».
Agora, que a morte apunhalou
traiçoeiramente o Artista, gelando-lhe a mão, uma lenda queremos, e
isso nos cumpre, destruir. Ao invés do que possa cuidar-se e tem
sido mesmo afirmado em letra redonda, o mais
/ 49 / representativo dos
mestres Cramez transmontanos não malbaratava caprichosamente os seus
dias. Nas horas em que um absorvente e ininterrupto professorado lhe
deixava livres, pintou inumeráveis telas, muitas das quais, talvez o
mais vultoso núcleo, se encontram na capital francesa. Ao alor do
talento e com olhos amoráveis fixou trechos de Paris, recantos do
Porto, as imponentes paisagens do seu querido Marão, e, por fim, em
magníficas pochades, um ou outro aspecto de Aveiro e das
praias miroas. Tudo isto sem contar uma galeria de admiráveis
retratos, três deles pintados bem recentemente.
De estatura meã, simples no trajar,
certo dia, uma velhinha, ao vê-lo descer o Marão com a mochila do
ofício às costas, interrogou-o:
– Leva rosários?
– Não, santinha. Já se acabaram.
– Ah!
Nestes derradeiros tempos, já um
poucochinho vergado pela força dos invernos, Mestre Cramez
contentava-se em transportar na mão a humilde mochila, agora
aliviada, do supérfluo, que adquirira em França. Quando ia à sua
vida de pintor, gostava de passar despercebido. Mas desenhava e
pintava mais do que à primeira vista pode supor-se. Seja, porém,
como for, Mestre Heitor Cramez legou à arte portuguesa muitas e
muitas dezenas de quadros, quiçá mesmo centenas, bastantes deles
autênticas obras-primas. Por exemplo, por exemplo apenas, o retrato
do arquitecto Manuel Marques, dois auto-retratos, alguns trechos de
Paris e de Vila Real são, na realidade, magistrais. Têm garra,
possuem sólida estrutura. Probo, exigente consigo próprio, meditava,
concluída uma tela, se a devia ou não assinar. E quanta vez, de
preferência a apor-lhe o nome, não optou pela inutilização pura e
simples...
Com setenta e sete anos, Mestre
Heitor Cramez alardeava, como artista, transbordante juventude.
Inesperadamente, implacavelmente, a morte cortou cerce o alado voo.
Mas o que deixou bondará para dar perenidade ao ilustre
transmontano, ao «Porto» das cosmopolitas gerações que, na segunda
década do século, passaram pela École Supérieur des Beaux Arts de
Paris...
Outubro de 1967. |