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N.º 20

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1975 

A Canga Vareira

Por Vasco Branco

Na retina, os desenhos ingénuos, as cores puras e luminosas, todo um conjunto harmónico, mas álacre, dispensando a análise que sempre distancia a aceitação natural de quem vê nessas manifestações um prolongamento da própria paisagem. Os olhos bebiam a carícia da forma e da cor como se perenemente existentes em caixilho ideal. E como fundo, apenas água e céu, muita água e muito céu, casando-se em azulados e verdes raros, longe, na linha ambígua do horizonte. «A alma desta terra é na realidade a sua água», percebemo-lo e sentimo-lo, assim profundamente, tal como o nosso Raul Brandão. Tudo isto, que talvez nada fosse, que talvez nada seja, ali, muito próximo no espaço. Tudo isto, ali, vivíssimo na evocação, à beira da laguna, onde os barcos roçavam a cabeleira ondulante e verde-seca dos caniçais, onde os caminhos alagadiços de Iodo, algas e junco surgiam como cicatrizes abertas pelo rodado dos carros de bois. Não ardia ainda tão alta esta febre da coisa motorizada. Percebia-se, por isso, distintamente, o marulhar da onda miúda, o salto da tainha, o chamamento da gaivina e, às vezes, longínqua, a ronca do farol da Barra violentando o hálito denso e oloroso da nevoaça.

De facto, muito de tudo isto irremediavelmente perdido! O progresso cobra sempre o seu preço. Alto preço. Hoje, a laguna da minha meninice, os canais de mistério da minha adolescência, os caminhos de sal, areia e Iodo da minha juventude, conturbados pela violência sonora dos pretensiosos barcos de turismo, esmagados pela potente eficiência do tractor e seus atrelados. A nossa virgindade sensorial molda-se em novas formas. A nossa atenção é solicitada agora pelo metal, pelo ritmo ensurdecedor dos motores, pelo gosto excitante da velocidade. Tudo mudou. Insensivelmente. Progressivamente. Definitivamente.

Quando teria eu reparado nas proas dos moliceiros, nos relevos coloridos das cangas? Ou antes: quando as teria eu cindido da própria paisagem? Vemos sempre muito pouco o que temos constantemente diante dos olhos. Talvez por isso só muito tarde me tenha dado conta do merecimento, da beleza, do real interesse destas manifestações de arte popular em vias de extinção. E essa extinção seria o tal preço a pagar pelo progresso. Aliás, progresso desejável, desde que orientado no sentido de proporcionar ao povo melhores condições de vida. Cabe-nos, no entanto, o dever de acautelar as melhores peças restantes em museu de etnografia, antes que nos fiquem simples despojos insignificativos, ou apenas fósseis mais ou menos enigmáticos.

A canga (1) usada para jungir o gado da beira-ria é, a maior parte das vezes, do tipo vareiro, sobretudo até à linha marcada pelo avanço do principal braço do Vouga. O trapézio central, estreito e elegante, profusamente decorado e colorido, aparece logo às portas da cidade, servindo quem amanha as courelas baixas e úberes que o rio alaga na sua investida para o termo da viagem. Em Cacia, as primeiras peças entalhadas e pintadas ao jeito vareiro. E o seu uso alonga-se pelo distrito até ao Douro. Para o sul de Aveiro apaga-se, subitamente, toda a alacridade. As cangas reduzem-se então a simples travessa estreita e baixa sem vislumbre de ornatos. É como se nos aventurássemos em outro mundo mais sóbrio, avaro e meramente funcional. O Douro, centro geográfico da preocupação artística evidenciada nestas alfaias, estende longos braços a norte e a sul, apêndices que os rios Minho e Vouga cortam cerce. Há, todavia, diferenças substanciais entre a canga minhota e a canga vareira, extremos que são desta cadeia aliciante. A nossa (e chamo nosso ao jugo), mais frequente na parte da Beira Litoral que confina com o Douro (mas é parte integrante do distrito de Aveiro) é sempre irregular na sua configuração: alta no centro, abate-se dos lados, abruptamente, para aí pousar em forma de disco. O jugo minhoto, pelo contrário, mantém a mesma altura em todo o seu comprimento ou, quando muito, / 51 / apresenta um desnível muitíssimo doce, desenhando uma linha curva na sua parte superior, ou um ângulo muito pouco pronunciado cujo vértice coincide com o centro do madeiro. A canga minhota, cuidadosamente esculpida, lembra uma renda delicada pela sucessão generosa de varandas amplamente vasadas. Não há espaços, nem pontos mortos, neste jugo. O desenho caprichoso e habilmente imbricado cobre por completo toda a superfície. A canga vareira raramente é vasada. E, quando isso acontece, as perfurações acidentais em nada se assemelham às citadas varandas. São simples buracos circulares de pequeno diâmetro. A nossa canga é quase sempre pintada, isto é, os motivos gravados na madeira são criteriosamente sublinhados pela acção da cor. São usadas cores puras, vivas, transparentes. Daí, do emprego da mesma gama de tons, talvez a semelhante impressão de frescura que sempre me sugeriram as proas dos barcos moliceiros.

Estas cores são frequentemente manipuladas pelo próprio artista, que é ao mesmo tempo carpinteiro e entalhador. Assisti algumas vezes à preparação destas tintas alinhavadas em cacos de louça de barro vermelho, ou em velhas latas de conserva. E mestre Soeco (Soeco de apelido e escrito com o, para meu espanto), dependurada a pirisca na orelha, vertia uma golada de óleo sicativo sobre uma porção de corante calculada a olho. Depois de feita a prova no topo da peça que trabalhava, distribuía a cor sem obediência a qualquer plano cromático. Isto, o que me parecia.

Mas, acabada a obra, a harmonia do conjunto, o equilíbrio na distribuição dos tons patenteavam francamente a sabedoria (ou instinto, se assim o quiserem) que lhe guiava as mãos.

Os motivos centrais da canga vareira vão da custódia, cruz de Cristo, vaso de flores, signo-saimão (que nos protege do mau-olhado), às armas da monarquia e república. Os elementos decorativos menores são geralmente fitomórficos e geométricos. Os corações (tão frequentes na arte popular nortenha, nomeadamente na ourivesaria, nos bordados, na própria decoração dos barros) constituem outro elemento decorativo das cangas, sobretudo durienses e minhotas. A flor-de-lis aparece também, mas quase sempre disposta em friso.

– O trabalho é mal pago. E isso obriga-me a usar madeiras mais brandas como o eucalipto, diz-me mestre Soeco. (2)

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Mestre José Soeco mostrando alguns dos seus belos exemplares de cangas vareiras.

Depois cita o lamegueiro, o carvalho, o castanheiro, e o sobreiro como superfícies ideais para o formão.

Mestre Soeco, que ronda hoje os oitenta anos de idade, começou a interessar-se pelas cangas ainda moço e extasiado pelo trabalho que saía das mãos do seu progenitor com quem aprendeu o ofício. Há muito que trabalha sem o auxílio de qualquer muleta.

O desenho brota naturalmente da ponta do lápis e a composição depressa se espalha pela madeira afagada pela plaina e pela lixa. É então a vez do gravador. Em movimentos rítmicos, passa pela pedra encharcada o fio do formão e a ponta da goiva. O desenho ganha relevo a cada investida. Surgem as folhas, as pétalas, os ramos sinuosos, os círculos franzidos (talvez estilização excessiva de flores silvestres), os frisos. E a / 52 / meio, bem evidente, o escudo como motivo central. O desbaste cria formas ingénuas e associações ingénuas entrelaçando o religioso com o profano.

A canga nua, isto é, sem pintura, ganha em delicadeza o que perde em alacridade. Apesar de tudo, o seu tratamento escultórico muito mais alapado fica, quanto a mim, aquém da renda finíssima conseguida pelos artistas minhotos.

A pintura de cores vivíssimas e depois a aposição dos pincéis de cabelo branco e negro dão à peça uma alegria que sempre me sugere festa popular com música, foguetes e arraial. Talvez a canga me recorde os arcos coloridos que se elevam nas ruas das nossas aldeias em dias festivos. Quem sabe?

Mas mestre Soeco, que prepara a madeira, que a risca, que a entalha, que a pinta e que a encabela, cobra uma ninharia pela sua semana de trabalho e por todos os materiais gastos na obra. Mesmo assim, a procura por parte do lavrador é muito menor, agora. E se não fora a ânsia do turista, sobretudo do turista estrangeiro, pela recordação de viagem, pelo troféu desencantado algures, neste país perdido em excêntrico recanto da Europa, mestre Soeco teria que optar definitivamente pelo amanho de seus magros pedaços de terra. O turista, bem servido, leva uma das mais belas peças do mundo, no dizer do etnógrafo polaco Frankowski. E o artista vai sonhando talvez com a almejada e justa compensação para o trabalho que executa com todo o seu saber, com todo o seu suor, com todo o seu coração.

O levantamento, ou antes, o inventário das manifestações de arte popular do nosso distrito não se completou ainda capazmente, suponho. Há, pois, que percorrer com olhos bem abertos, conhecimentos adequados e profunda sensibilidade, estes areais onde o homem anfíbio lavra e marinha, as terras altas do anacrónico pastor teimosamente perdido entre cardos e tojais de serranias esquecidas. É um crime deixarmos perder, por pura negligência, os mais significativos indícios da história do homem que vegeta na nossa região. E é lamentável, também, não acarinharmos o esforço corajoso destes abencerragens de uma arte materialmente inglória.

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NOTAS

(1) – Jugo e canga são termos equivalentes. Há, todavia, quem os distinga, chamando canga à peça quando baixa e jugo quando alta.

(2) – Mestre Soeco vive e tem a sua oficina, rudimentaríssima, em Avanca.

 

páginas 50 a 52

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