«O futuro por que luto é tão
longínquo! Viverei para ele sempre, com a mesma efusão e a mesma
tenacidade, pois sem isso seria cadáver em vida»
in Diário (pág. 137-138)
Nunca será demais falar de Mário
Sacramento e pouco entre nós dele se tem falado. E mesmo esse pouco
– e é-o por isso mesmo – tem-no sido por uma forma saudosista,
mitificante quase, que ofende gravemente a imagem que dele se
pretende perpetuar. Ele, que sempre combateu o provincianismo em
todas as suas formas, recebe hoje, por ironia do destino – no
evocar-se-lhe a memória, no trazê-lo até nós – a vingança dessa
instituição menor do nosso espírito. Pelo menos por aqui, nos reinos
de Aveiro e adjacências, relembra-se Mário Sacramento com a lágrima
quase ao canto do olho, emocionalmente, provincianamente, como se,
cumprido o seu decesso físico, nada mais restasse desta figura
exemplar. Homem de multímodos interesses, ele constitui, em qualquer
dos casos, fonte de ensinamento, símbolo de resistência que urge
apontar a uma geração que desponta agora para as grandes lutas do
futuro do homem em Portugal. Futuro que não estava assim tão
longínquo como, em causa de momentâneo desespero talvez, Mário
Sacramento confessava no seu «Diário», em 3-11-1967. Isto, se
entendermos que o futuro por que ele se batia era a queda do
fascismo entre nós, que aconteceria passados apenas seis anos e meio
depois deste desabafo.
Fala-se de Mário Sacramento como do
homem que escrevia aos domingos e nas pausas da sua profissão de
médico, do cidadão que sofreu na carne e no espírito os amargores
das prisões fascistas. Necessário se torna, no entanto, dizer-se que
a sua luta pelo futuro era isso mesmo: todos os seus factos de
escrever, todas as suas acções como pedagogo ideológico
visceralmente oposto ao estatuto político que nos amordaçava. Daí, a
vigilância estrénua que os seus escritos impunham aos censores e as
medidas preventivas ou de repressão que os «condottieri» do tempo
não hesitavam impor-lhe à mínima suspeita. Mesmo depois de morto,
Mário Sacramento continuou a representar um perigo real para o
decrépito Estado Novo. Relembre-se, a este propósito, todos os
argumentos que as autoridades municipais de então invocaram para
negarem ao ensaísta de «Fernando Pessoa, poeta da hora absurda» o
direito a ter relembrado o seu nome numa placa toponímica da urbe
aveirense. Recusa que, ao cabo e ao resto, serviu melhor a sua
memória.
Hoje derrubado o regime fascista,
nem por isso a luta de Mário Sacramento teria ficado por aí. Ela
teria continuado «com a mesma efusão e a mesma tenacidade de sempre,
pois sem isso seria cadáver em vida». Agora, que ele está presente
apenas na nossa lembrança, estas palavras despertam-nos para novas
formas de luta, que seriam as dele, ou seja, a consolidação daquele
evento histórico. Estas palavras despertam-nos e advertem-nos de que
não devemos parar um só momento na erradicação completa do fascismo,
sob pena de trairmos as nossas próprias convicções. Nós, os que
estamos vivos, não podemos cadaverizar-nos nesta condição e teremos
de lançar-nos, pelo contrário, o repto que a si mesmo dirigira o
autor dos «Ensaios de Domingo». Aquelas palavras serão as nossas e
funcionarão como látego à nossa comodidade, se não nos impusermos a
mesma luta, sempre, na consecução do futuro que, hoje, apesar de
tudo, não estará assim tão distante como parecia estar para Mário
Sacramento em fins de 1967.
Tomemos as suas palavras como
nossas, assimilemo-las na prática diária, para melhor lembrarmos o
seu autor e prosseguirmos, de braço dado com ele, na sua luta,
dignificando, assim, a memória do cidadão e do intelectual
comprometido com o futuro. Será esta a melhor forma de falarmos de
Mário Sacramento, de mantê-lo bem vivo e presente entre nós. |