...Estimei saber que tens sido
acompanhada e amparada pelos nossos Amigos das horas difíceis. A
amizade é a única coisa que vale a pena capitalizar e que,
quando é autêntica, nunca falta com os seus dividendos no
momento próprio. Julgo, assim, que somos ricos da única coisa
que deveras conta e que eu não trocaria por coisa alguma. Há,
porém, um perigo na amizade que é preciso saber evitar: o de
podermos em certos momentos desmoralizar, dado que, habituados a
sentirmos à nossa volta um ambiente fraterno, a vida assume
perspectivas ignoradas se subitamente somos furtados a ele. Sei
já por experiência repetida e bem profunda o que isso é, e como
defendermo-nos disso, mas quero lembrar-te a ti ou ensinar-te à
minha maneira (que à tua bem o sabes tu), pois se bem o cheguei
a entender, a suprema sabedoria na vida está em fazer da amizade
e da convivência os supremos bens da vida, sem que, porém, nos
deixemos enredar neles ao ponto de não termos a coragem, se o
momento o exige, de ficarmos sozinhos. «O homem forte é o homem
só» – disse asnática e sobranceiramente o Ibsen. |
MÁRIO
SACRAMENTO
Desenho de Lima de Freitas |
Não é nem nunca foi assim. O homem
forte é o homem que não ama ver-se só mas que sabe e pode sê-lo se o
seu superior sentido do vero humano colide com as circunstâncias e
lho impõe. E então ele não estará só senão na aparência (ou
sensibilidade imediata), pois é tão impossível querer retirar o
mundo a um homem como querer ele próprio retirar-se desse mundo –
quando tal homem o traz dentre de si. Daí a impressão de tantos
homens que têm passado pelas cadeias de todas as épocas da História
de que no fundo tudo se passa como se fossem eles os carcereiros dos
seus guardas, ou seja, de que tudo se passa como se as condições de
liberdade estivessem invertidas em relação à aparência e fossem
afinal eles os presos, a estarem livres e os outros a estarem
submetidos pelo jugo da sua situação na vida. Retirada a
amplificação metafísica (que nele é aliás tão própria e que define
um estádio da história da convivência humana), é deste género, e
nesse sentido eminentemente actual, a meditação do Pedro da «Guerra
e Paz» quando queda prisioneiro dos franceses...
(De uma carta a Cecília Sacramento,
escrita no Forte de Caxias em 29/4/1953) |