ACTO III
AS TRÊS BARCAS
Corre a cortina, e aparece um
pano com o dístico: [ As três Barcas ]. Chegam Pangloss, Ernesto e
Sabe-Tudo. A Orquestra executa imediatamente os primeiros compassos
do «Freischütz» de Weber. Sobe o pano e mostra-se vista de montanha.
PANGLOSS (Terminada a música)
– A abertura do «Freischütz»! Esta música transporta-me, em
espírito, à minha pátria. É reconfortante. Obrigado!
SABE-TUDO – Não tem que agradecer,
Sr. Doutor. Com ela, quis preparar o ambiente para o que V. Ex.ª vai
ver. Nós estamos no lugar, todo ideal, donde saem os rios das três
barcas que esperam os estudantes. A música que aqui fica a carácter
é a da entrada do «Freischütz» do vosso grande Weber. (Pausa)
Agora, silêncio – o silêncio próprio desta mansão.
Grupo de seis estudantes com
Sabe-Nada (Cantando)
Daqui saem as três barcas,
aos alunos destinadas:
uma nos leva ao Inferno,
onde estão almas penadas.
Isto de estudar
é grande maçada.
Viva a cabulice
prá rapaziada!
(Formam à esquerda)
*
Outro grupo, com Sabe-Pouco e
Palpitante (Cantando)
A segunda dessas barcas,
digamos sem relambório,
é aquela que conduz
às abas do purgatório.
Gosto de estudar,
só um bocadinho;
trabalhemos sim,
mas devagarinho.
(Dispõem-se ao centro)
*
Outro grupo (Cantando)
A terceira é a mais bela:
recolhe só a vitória;
é a barca dos que estudam
e condu-los à Glória.
Estudar devemos
o leve e maçudo,
pois só o trabalho
é que vence tudo.
(Ficam à direita)
SABE-TUDO – Eis a matéria-prima com
que lidam os mestres. O Chefe do grupo da esquerda é o Sabe-Nada.
(Este avança) O que comanda o centro é o Sabe-Pouco, coadjuvado
pelo Palpitante (Avançam os dois, enquanto os outros saem)
ERNESTO – Já percebi. Quem rege o
terceiro grupo é você, o Sabe-tudo.
SABE-TUDO (Modesto) – São
favores seus, amigo e Sr. Ernesto.
SABE-NADA – Chamam-me o Sabe-Nada;
empurraram-me para a barca do Inferno, mas eu não sou tão ignorante
como do nome se pode concluir. (Para Pangloss e Ernesto) Ora
ouçam. Sei, na ponta da língua, em qualquer altura do ano, a
situação de cada clube das três divisões na classificação geral;
conheço como as minhas mãos, ou melhor ainda, os nomes do jogadores
de todas as equipas, sejam quais forem as modalidades do desporto. É
isto ignorância?
SABE-TUDO (Intencionalmente)
– «É isto descer, marquesa» ?
SABE-NADA (Entusiasmando-se)
- Seria capaz de relatar qualquer jogo: tenho o necessário golpe de
vista,
/ 77 / a rápida visão do
conjunto. Vou exemplificar, e depois hão-de dizer-me se não é
injusto o apodo que me puseram às costas. (Começando) –
Agora, Militão passa o esférico a Trampolim. Trampolim está com ele.
Chispas avança, mas é desarmado por Barroco, que leva a melhor.
Barroco passa a bola a Chedas, que lhe dá um formidável pontapé e a
impele pare a linha de cabeceira do desportivo. O árbitro aplica uma
penalidade ao Recreio. Barroco vai centrar...
PANGLOSS – Basta, basta! Vejo que
nisso é você grande autoridade!
SABE-NADA – Já vê o cavalheiro!
SABE-TUDO – Mas vamos a outras
matérias... Quem descobriu o Brasil? (Silêncio) Quem é que
primeiro chegou à Índia por mar? (Idem) Em que ano se travou
a batalha de Aljubarrota? Não sabes?! Outra coisa. Qual é a capital
da Dinamarca? O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados
dos catetos. O que é isto?
SABE-NADA – Assim, não vale. Nessas
coisas, sou hóspede.
PANGLOSS – Hóspede?! Lá na Alemanha,
quem não responde a perguntas semelhantes – quem nelas é hóspede...
– vai irremediavelmente para a barca do Inferno.
SABE-TUDO – Também cá, Sr. Doutor!
Também cá! Os professores não se esquecem disso. (Sai Sabe-Nada,
cabisbaixo)
PANGLOSS – E você, Sabe-Pouco, que
diz?
SABE-POUCO – Que hei-de dizer?
Conformo-me com a sorte. Cá me vou arranjando, tant bien que mal,
com o Purgatoriozinho. (Cantando)
Gosto de estudar,
só um bocadinho;
trabalhemos, sim,
mas devagarinho.
(Sai)
*
PALPITANTE – A mim... chamam-me o
Palpitante. Sabem porquê? Porque só actuo por palpites. Quando me
palpita que posso ser chamado, estudo... Às vezes, engano-me, é
claro. Mas uma vez por outra – que diabo! – acerto! Nas chamadas
fortuitas, nesses foguetes que os professores lançam para as
carteiras, nunca fico calado. Quem me guia é o palpite. Se a
resposta é de sim, ou não, vai um ou outro desses advérbios,
conforme me palpito. Nem sempre calha! Se não acerto paciência; para
outra vez será! (Pausa) Etc., etc., etc.! (Cantando)
Gosto de estudar
só um bocadinho;
trabalhemos, sim,
mas devagarinho.
(Sai)
*
SABE-TUDO – Oferecidas estas
elucidativas amostras, transportemo-nos a lugar onde V. Ex.ª possa
apreciar algumas das especialidades da massa discente do nosso
liceu.
PANGLOSS – Como queira. Antes disso,
porém, eu e o Sr. Ernesto cantaremos, à laia de operação
propiciatória, aquela canção que estudantes de países nórdicos
costumam entoar. É ao mesmo tempo, hino de solidariedade escolaresca
e elo de ligação da juventude aos mestres e ao Estado. A letra é
latina. (Para Ernesto) Vamos, Sr. Ernesto.
SABE-TUDO – Também cantarei. Conheço
a música.
ERNESTO – E muito bem. Aprendeu-a na
Alemanha, num bar de estudantes.
PANGLOSS – Cantemos então.
(Cantam os três)
Gaudeamus igitur,
juvenes dum sumus;
post jucundam juventutem,
post molestam senectutem
nos habebit humus
nos habebit humus.
Vivat academia,
vivant professores;
vivat membrum quodlibet,
vivant membra quaelibet,
semper sint in flore,
semper sint in flore.
Vivat es respublica
et qui illam regit;
vivat nostra civitas;
vivat haec sodalitas,
quae nos huc collegit,
quae nos huc collegit.
SABE-TUDO – Bravo! Muito bem, Dr.
Pangloss! Não lhe conhecia a prenda.
PANGLOSS – Na Alemanha, não há
ninguém que não cante.
SABE-TUDO (Batendo as palmas,
alto, para dentro) – Vamos às especialidades! (Apaga-se a
luz. Mutação: átrio do Liceu)
*
SABE-TUDO – Aqui se exibirão perante
V. Ex.ª os declamadores, os coleccionadores de anedotas literárias
/ 78 / e estudantescas, os
cançonetistas, as músicas, as críticas, «e o mais que adiante se
ouvirá»... (Pausa) Começaremos pelos declamadores. Em
primeiro lugar, é claro, a Adina Frias, do 7.º ano, que desde o
primeiro sempre fez as delícias de muitas sessões.
(Recitações da Aldina e doutros
declamadores, com palmas dos assistentes)
SABE-TUDO – Depois destes números,
não ficará mal, Sr. Dr. Pangloss, um número de canto do meu
repertório particular – «A volta do Proscrito» – (Canta. Coro
interno)
«Eis da infância o tecto amigo;
eis a fonte que murmura;
eis o céu puro da pátria;
eis o dia da ventura!»
Eis o dia da ventura, da ventura.
A terra estranha
onde proscrito
mágoa tamanha,
longa sofri,
lá o deixei,
e eis-me aqui!
Salve ó terra
idolatrada!
Eu te saúdo,
ó terra amada!
Terra, ó terra hospitaleira,
vejo-te enfim!
Amigos, não sei que sinto:
ela é tudo para mim.
És Portugal, que ao Mundo inteiro
que ao Mundo inteiro
deu novos mundos,
por derradeiro.
Por isso te amo
o que a ti veio.
Hei-de morrer
junto a teu seio.
PANGLOSS – Muito bem! Sehr Gut!
Você, Sabe-Tudo, tem unhas! Parabéns!
SABE-TUDO – Obrigadinha! Agora, o
anedotário. Dividi-lo-emos em épocas: o antigo, o moderno, o
contemporâneo e o estudantesco. (Para dentro) Saltem as
anedotários! (Entram quatro estudantes)
*
ANTIGO (Vestido à grega) –
Uma anedota antiga, clássica, relativa ao celebérrimo filósofo grego
Diógenes. Era o tal que vivia na praça pública, com um tonel por
única habitação, e que uma vez foi visto ao meio-dia, de candeia
acesa na mão, à busca de um homem...
SABE-TUDO – Vamos! Despacha-te!
ANTIGO – Pois um dia Diógenes entrou
num palácio magnífico, sumptuosíssimo, onde predominavam os mármores
e o oiro. Admiradas que foram por ele todas as riquezas,
apeteceu-lhe tossir; e, não tendo onde descarregar, escarrou no
rosto do frígio que lhe andava servindo de cicerone. Vendo-o
estupefacto e embezerrado, lançou-lhe estas palavras: – Desculpe,
amigo; não vi lugar mais sujo onde pudesse aliviar-me!
CONTEMPORÂNEO (Vestido à século
XX, época romântica) – Essa faz-me lembrar uma da época
contemporânea, que Júlio Dantas reproduziu num dos seus livros
ligeiros. (Contando) Um dos ministros da Monarquia, muito
conhecido pelos seus ditos espirituosos, descendo um dia o Chiado,
em Lisboa, viu à porta de uma mercearia um bojudo pote inglês de
faiança azul, cheio de manteiga; e, sem saber porquê, sentiu o
apetite invencível de lhe cuspir. E cuspiu! – O caixeiro, furioso,
saltou de dentro da loja: – Então o Senhor tem a pouca vergonha de
me cuspir na manteiga?! – O político não se desconcertou. Tirou o
chapéu, cumprimentou ligeiramente e disse com o sorriso mais calmo
deste mundo: – Peço desculpa! Julguei que eram azeitonas...
MODERNO (Vestido à século XVII)
– Da época moderna, narrarei duas do nosso delicioso escritor D.
Francisco Manuel de Melo. Primeira: – Um cortesão perguntou a outro
se gostava de frades. Resposta dele: – Olhai, amigo, eu sou
amicíssimo de frades. Se não são bons, não lhes quero dar ocasião em
minha casa para que sejam piores; se são bons, não lhes quero dar
ocasião em minha casa para que o não sejam. De sorte que sempre os
amo e sempre os escuso. (Outro tom) Segunda: – Confessava-se
uma mulher honrada a um frade velho e rabugento; e, como começasse a
dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor: – Sabe latim?
– Disse: – Criei-me em mosteiro. – Tornou-lhe a perguntar: – Que
estado tendes? - Respondeu-lhe – Casada. – A que tornou: – Onde está
vosso marido? – Na Índia, meu padre! – disse ela. – Então com
agudeza repetiu o velho: – Tende mão, filha! Sabeis latim,
criaste-vos em mosteiro, tendes marido na Índia? Ora ide-vos embora
e vinde cá outra dia, que vós é força que tragais muito que dizer, e
eu hoje estou com muita pressa.
CONTEMPORÂNEO – De beata, tenho uma
na minha colecção, que não é desengraçada. Recolheu-a também Júlio
Dantas. Ouçam. – Uma vez, no século XVIII, uma beata que morava em
Coimbra entre as igrejas de Santa Clara e de S. Francisco,
apresentou ao confessor, muita vermelha e confusa, uma questão
/ 79 / que se debatia na sua
consciência: – Ai, reverendo padre, que não sei como hei-de
acomodar-me com os dois santinhos. Se ajoelho para rezar a S.
Francisco, volto o pousadeiro para Santa Clara; se me ajoelho a
rezar a Santa Clara, volto o pousadeiro para S. Francisco... – Pois,
boa mulher, – aconselhou o frade – não volte o pousadeiro nem para
um, nem para outro!... – Como? – Sente-se no chão!
ESTUDANTESCO – Colhidas na vida
liceal, aqui tem três. (Pausa) Para definir Bíblia, escreveu
um dia um patusco, em exercício: «Bíblia é um livro, escrita por
Camões, que nos conta a história de Portugal, desde o seu nascimento
até ao seu falecimento». (Pausa) Esta também não é màzita: –
Dê-me uma ideia do clima de Angola. – «o clima de Angola é muito
quente; a igual distância do Equador, devido a ficar muito baixa».
(Outro tom) Estão a ver que o liceu ia caindo, com a sonora e
unânime gargalhada da malta. (Pausa) Mas esta vale por mil, e
com ela termino. (Contando) Quando eu fiz o 5.º ano, esteve
comigo na mesma sala, na prova escrita, um candidato emancipável,
destes que se apresentam a exame sem – digamos – assistência técnica
de espécie alguma. No fim da prova de História, que era de respeito,
o meu homem parecia um pardal, tão satisfeito se sentia da sua
pessoa. – Então, pá! Que tal? – Mostra-me logo o rascunho e diz-me:
– Correu-me tudo lindamente: enchi todo o papel. – Deixa ver! –
disse eu. De boca aberta, verifiquei que, entre outras peças de
ourivesaria, continha o rascunha estas pérolas: – «D. João V
escreveu a «Arte de Bem Cavalgar toda a Sela»; o plano do mosteiro
da Batalha foi feito pelo arquitecto Afonso Lopes Vieira; por morte
de D. José e sucessão ao trono de sua filha D. Maria, foi o Marquês
de Pombal desterrado. – São iniciados os descobrimentos; o livro
sagrado dos persas é a Bíblia; o Marquês de Pombal não devia ter
expulsado os Jesuítas, porque eles foram os obreiros da colonização
de Portugal, até mesmo no tempo de D. Afonso Henriques» – (Saem
os anedotários)
*
PANGLOSS – Muito interessantes!
SABE-TUDO – Agora, meus Senhores,
vejamos o que pode a Mocidade Liceal, quando especialmente se arroja
a afrontar a arte de Terpsícore, a excelsa musa da dança. Um número
de sabor popular: a Rabela. (Entram pares, executam a dança e
saem).
PANGLOSS – E agora? (Entra
Sabe-Nada)
*
SABE-NADA – Agora, de novo o
Sabe-Nada! (Para Pangloss e Ernesto) Desculpem.
SABE-TUDO – Que há?
SABE-NADA – Fartaste-te de me
rebaixar diante destes Senhores, fazendo-me perguntas de
algibeira... Pois vim aqui para me vingar.
SABE-TUDO – Vingar-te, como?
SABE-NADA - Dirigindo-te também umas
perguntazinhas...
SABE-TUDO – Está bem. Venham elas.
SABE NADA – De todos os professores,
qual é o mais velho?
SABE-TUDO – Ora, Ora! O Reitor!
SABE-NADA – E o mais novo?
SABE-TUDO – O Dr. Ribau.
SABE-NADA – E o mais alegre?
SABE- TUDO – O Dr. Assis. O mais
alegre, e aparentemente o mais irascível.
SABE-NADA – E o mais calmo?
SABE-TUDO – O Dr. Carneiro. Primeiro
que lhe arranquem uma palavra, é um dia de juízo! Nas aulas dele,
até dá vontade de dormir!
SABE-NADA – É o dás!
(Continuando) O homem mais discutido em Aveiro? Mais
discutido... às vezes!
SABE-TUDO – É o Presidente da
Câmara!
SABE-NADA – Porquê?
SABE-TUDO – Porque sim!
SABE-NADA – O Homem a quem as
Senhoras e as sopeiras dizem sempre: Viva quem é uma flor!
SABE-TUDO – Isso... deve ser no
Salão Cravo.
SABE-NADA – O estabelecimento mais
sossegado da cidade?
SABE-TUDO – A Farmácia Calado.
SABE-NADA – Agora, umas frases
típicas, ou estribilhos, de professores, para tu identificares.
SABE-TUDO – Às ordens!
SABE-NADA – Ora vamos lá.
(Imitando o professor respectivo) «Isto, meu menino, é
fundamental».
SABE-TUDO – O Dr. Ferreira Neves.
SABE-NADA (Imitando) – «Fogo!
Fogo!»
SABE-TUDO – O Dr. Euclides. «Fogo,
fogo!» e «Calma! Calma!»
SABE-NADA (Imitando) – «Que
grande infelicidade!»
SABE-TUDO – Ora, ora! O Dr. Assis!
SABE-NADA (Imitando) – «Não é
verdade isso?»
SABE-TUDO – O Dr. Rocha.
SABE-NADA – Quantos são, por
enquanto, os Clubes de Aveiro?
SABE-TUDO – É fácil. Pela ordem de
antiguidade, temos: Recreio Artístico, Mário Duarte, Galitos,
Beira-Mar, Comércio e Indústria, Clube de Aveiro...
SABE-NADA – Está bem. E quais são os
duplicados da cidade?
SABE-TUDO – Facílimo: dois Senhores
dos Passos, duas bandas, duas corporações de Bombeiros.
SABE-NADA – E, de cafés, que dizes?
/ 80 /
SABE-TUDO – É um tanto complicado,
mas dá-se-lhe um jeito. Vejamos. Antigamente ali nos Arcos, tínhamos
o Cisne da Arcada, que se foi abaixo das pernas... E nenhum mais se
aguentava. Agora, é uma farturinha, e todos vivem, uns na opulência,
outros em condições mais modestas: Café da Arcada, Avenida, Trianon,
Gato Preto, Sol de Oiro, Galito, Sport e Pastelaria Chic. Além
disso, pode-se tomar café na «Estrela» e na Confeitaria da Avenida.
SABE-NADA – Bem, desculparás! Meus
Senhores... (Sai. Risos dos assistentes. Entra Genebra Pereira)
SABE-TUDO (Olhando, espantado, a
personagem, velha encarquilhada, trémula, voz esganiçada) – Ah!
Donde nos caiu esta ave? (Para ela) Quem é você, tiazinha? Ou
melhor: quem és tu?
GENEBRA – Não me conhece?! Eu
apresento-me, tal qual me criou Gil Vicente:
Eu sou Genebra Pereira,
que moro ali à Pedreira,
vizinha de João de Tara,
solteira, já velha amara,
sem marido e sem nobreza.
Fui criada em gentileza
dentro nas tripas do Paço;
e, por feitiços que eu faço,
dizem que sou feiticeira.
Porém Genebra Pereira
nunca fez mal a ninguém,
mas antes, por querer bem,
ando nas encruzilhadas
às horas que as bem fadadas
dormem sono repousado,
e eu estou cum enforcado
papeando-Ihe à orelha.
... ... ... ... ... .., ... ...
E, havendo piedade,
de mulheres mal casadas,
para as ver bem maridadas
ando pelos adros nua,
sem companhia nenhua,
senão um sino samão
metido num coração
de gato preto, e não aI.
Isto, Senhor, não é mal,
pois é pera fazer bem.
Outrossi, quando a mi vem
namorado sem conforto,
desejando antes ser morto
que ter aquela paixão,
cavalgo no meu cabrão
e vou-me a val de Cavalinhos
e ando quebrando os focinhos
por aquelas oliveiras,
chamando frades e freiras
que morreram por amores.
(Pausa)
Isto que todos ouvistes
escreveu-o Gil Vicente,
que foi um grande poeta.
Escreveu e nunca mente!
Agora tu, Sabe-Tudo,
que dizes tudo saber,
vê se és capaz de dizer
quem será esta ladina,
esta velha, este estafermo.
SABE-TUDO – Ah! Já sei. Tu és a
Aldina!
GENEBRA (Para Pangloss)
Peço-lhe, Dr. Pangloss,
por tudo, que não me troce...
(Natural, para Sabe-Tudo)
Pois se sabes, adeusinho!
Aqui vos deixo em paz,
pra seguir outro destino.
(Sai a correr)
*
PANGLOSS (Rindo-se) –
Endiabrada, esta aluna!
ERNESTO – Melhor, Sr. Doutor;
endiabrada, esta velha!
SABE-TUDO – Levadinha da breca!
(Outro tom) Na sequência do programa, depois desta Genebra
Pereira, que nos apareceu aqui, por artes mágicas, sem ninguém a
chamar, – acho que não é de todo desconcertado ressuscitar uma
serenata, com guitarras e violas, tanto mais que não há destes mimos
na Vestefália. (Para dentro) Salta uma serenatazinha à
antiga! (Para PangIoss) A letra é de hoje, a puxar para a
troça; mas, graças ao influxo da Genebra Pereira, não faltará nem a
competente nesga da cidade, com a luz do candeeiro de gás, nem
outras coisas que em tempos se faziam, sob os benévolos olhares da
Polícia.
(Mutação para trecho da cidade,
com luz mortiça. Aparecem estudantes com guitarras e violas)
*
SABE-TUDO (Cantando) –
Por esta noite de frio,
antes que venha a alvorada,
canção eu vou entoar,
dirigir à minha amada.
/ 81 /
Vem à janela, menina,
que teus pais já ‘stão dormindo;
aproveitemos a hora,
que o tempo vai-nos fugindo.
Há poucos dias atrás,
confessei-te o meu amor;
mas o teu rosto, ó bela,
nem sequer mudou de cor.
Não me dês a ilusão
de o meu amor desprezares,
pois sem a tua afeição,
tudo pra mim são pesares.
Lá ‘stá ela, a minha amada!
à janela me aparece!
É a suprema ventura:
já meu amor não fenece.
(Ouvem-se três grandes e
espaçadas pancadas metálicas)
SABE-TUDO – C’est fini! Acabou, por
hoje, a nossa visita ao Liceu. (Cai um pano para mutação da cena)
Vamos, Dr. Pangloss! Suponha-se agora instalado numa frisa do Teatro
Aveirense, a assistir a uma cena algo comovente, ao adeus dos
finalistas, na sua já tradicional festa de despedida. Vê-los-á
passarem aos colegas do 6.º ano o facho simbólico que eles, para o
ano, já setimanistas, por seu turno transmitirão a outros. E sempre
assim será, através dos tempos: entrada para o Liceu, a medo, no 1,º
ano; confraternização no trabalho escolar e nos vaivéns e ardores da
vida académica –, durante sete anos; por fim, partida para outros
destinos, com a saudade do tempo passado. Vamos!
(Saem, enquanto a orquestra vai
preludiando o final da Revista. Passados momentos, entram na frisa
da esquerda, junto do palco, Aveiro, Pangloss e Ernesto e nela se
sentam.)
*
(Sobe o pano, e mostram-se ao
fundo, dispostos em anfiteatro, os alunos do 6.º ano e, aos lados,
os finalistas, incluindo Sabe-Tudo. Uma aluna e um aluno do 7.º ano
empunham fachos acesos, que na devido altura entregam a colegas do
6.º ano. Segue o coro Final.)
Nesta hora de intensa alegria
os que estamos daqui a partir
O Liceu e Aveiro nos prendem,
que nos viram em moços fulgir.
Professores, lições, camaradas,
tudo, tudo aqui ficará;
e, seguidos por nós outros trilhos,
inda um dia a saudade virá.
Adeus, bons e leais Aveirenses!
Adeus, mestres! Nós vamos partir!
Neste facho de luz que deixamos,
fica inteiro o nosso sentir.
Salve, templo de amor e ciência!
Nossas faltas não leves a mal!
Teus meninos daqui saem homens,
bem capazes de honrar Portugal.
Eis o facho de luz que vos deixam
nossas almas, cheias de luar;
e, chegada que seja a partida,
todos vós nos vereis a chorar!
(Na frisa, os três ocupantes dão
palmas. Saem dela Pangloss, Ernesto e Aveiro, que, dentro de pouco,
antes de fechar o pano, aparecem no palco, a palmear e a abraçar
vários figurantes. Cena muito movimentada)
(Cai o pano)
Fim da peça de teatro |