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N.º 19

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1975 

Última Visita de Pangloss

Pelo Dr. José Tavares

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ACTO III
 

AS TRÊS BARCAS

Corre a cortina, e aparece um pano com o dístico: [ As três Barcas ]. Chegam Pangloss, Ernesto e Sabe-Tudo. A Orquestra executa imediatamente os primeiros compassos do «Freischütz» de Weber. Sobe o pano e mostra-se vista de montanha.

 

PANGLOSS (Terminada a música) – A abertura do «Freischütz»! Esta música transporta-me, em espírito, à minha pátria. É reconfortante. Obrigado!

SABE-TUDO – Não tem que agradecer, Sr. Doutor. Com ela, quis preparar o ambiente para o que V. Ex.ª vai ver. Nós estamos no lugar, todo ideal, donde saem os rios das três barcas que esperam os estudantes. A música que aqui fica a carácter é a da entrada do «Freischütz» do vosso grande Weber. (Pausa) Agora, silêncio – o silêncio próprio desta mansão.

 

Grupo de seis estudantes com Sabe-Nada (Cantando)

Daqui saem as três barcas,

aos alunos destinadas:

uma nos leva ao Inferno,

onde estão almas penadas.

 

Isto de estudar

é grande maçada.

Viva a cabulice

prá rapaziada!

                               (Formam à esquerda)

*

Outro grupo, com Sabe-Pouco e Palpitante (Cantando)

A segunda dessas barcas,

digamos sem relambório,

é aquela que conduz

às abas do purgatório.

 

Gosto de estudar,

só um bocadinho;

trabalhemos sim,

mas devagarinho.

                                (Dispõem-se ao centro)

*

Outro grupo (Cantando)

A terceira é a mais bela:

recolhe só a vitória;

é a barca dos que estudam

e condu-los à Glória.

 

Estudar devemos

o leve e maçudo,

pois só o trabalho

é que vence tudo.

                                     (Ficam à direita)

 

SABE-TUDO – Eis a matéria-prima com que lidam os mestres. O Chefe do grupo da esquerda é o Sabe-Nada. (Este avança) O que comanda o centro é o Sabe-Pouco, coadjuvado pelo Palpitante (Avançam os dois, enquanto os outros saem)

ERNESTO – Já percebi. Quem rege o terceiro grupo é você, o Sabe-tudo.

SABE-TUDO (Modesto) – São favores seus, amigo e Sr. Ernesto.

SABE-NADA – Chamam-me o Sabe-Nada; empurraram-me para a barca do Inferno, mas eu não sou tão ignorante como do nome se pode concluir. (Para Pangloss e Ernesto) Ora ouçam. Sei, na ponta da língua, em qualquer altura do ano, a situação de cada clube das três divisões na classificação geral; conheço como as minhas mãos, ou melhor ainda, os nomes do jogadores de todas as equipas, sejam quais forem as modalidades do desporto. É isto ignorância?

SABE-TUDO (Intencionalmente) – «É isto descer, marquesa» ?

SABE-NADA (Entusiasmando-se) - Seria capaz de relatar qualquer jogo: tenho o necessário golpe de vista, / 77 / a rápida visão do conjunto. Vou exemplificar, e depois hão-de dizer-me se não é injusto o apodo que me puseram às costas. (Começando) – Agora, Militão passa o esférico a Trampolim. Trampolim está com ele. Chispas avança, mas é desarmado por Barroco, que leva a melhor. Barroco passa a bola a Chedas, que lhe dá um formidável pontapé e a impele pare a linha de cabeceira do desportivo. O árbitro aplica uma penalidade ao Recreio. Barroco vai centrar...

PANGLOSS – Basta, basta! Vejo que nisso é você grande autoridade!

SABE-NADA – Já vê o cavalheiro!

SABE-TUDO – Mas vamos a outras matérias... Quem descobriu o Brasil? (Silêncio) Quem é que primeiro chegou à Índia por mar? (Idem) Em que ano se travou a batalha de Aljubarrota? Não sabes?! Outra coisa. Qual é a capital da Dinamarca? O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. O que é isto?

SABE-NADA – Assim, não vale. Nessas coisas, sou hóspede.

PANGLOSS – Hóspede?! Lá na Alemanha, quem não responde a perguntas semelhantes – quem nelas é hóspede... – vai irremediavelmente para a barca do Inferno.

SABE-TUDO – Também cá, Sr. Doutor! Também cá! Os professores não se esquecem disso. (Sai Sabe-Nada, cabisbaixo)

PANGLOSS – E você, Sabe-Pouco, que diz?

SABE-POUCO – Que hei-de dizer? Conformo-me com a sorte. Cá me vou arranjando, tant bien que mal, com o Purgatoriozinho. (Cantando)

 

Gosto de estudar,

só um bocadinho;

trabalhemos, sim,

mas devagarinho.

 

(Sai)

*

PALPITANTE – A mim... chamam-me o Palpitante. Sabem porquê? Porque só actuo por palpites. Quando me palpita que posso ser chamado, estudo... Às vezes, engano-me, é claro. Mas uma vez por outra – que diabo! – acerto! Nas chamadas fortuitas, nesses foguetes que os professores lançam para as carteiras, nunca fico calado. Quem me guia é o palpite. Se a resposta é de sim, ou não, vai um ou outro desses advérbios, conforme me palpito. Nem sempre calha! Se não acerto paciência; para outra vez será! (Pausa) Etc., etc., etc.! (Cantando)

Gosto de estudar

só um bocadinho;

trabalhemos, sim,

mas devagarinho.


(Sai)

*

SABE-TUDO – Oferecidas estas elucidativas amostras, transportemo-nos a lugar onde V. Ex.ª possa apreciar algumas das especialidades da massa discente do nosso liceu.

PANGLOSS – Como queira. Antes disso, porém, eu e o Sr. Ernesto cantaremos, à laia de operação propiciatória, aquela canção que estudantes de países nórdicos costumam entoar. É ao mesmo tempo, hino de solidariedade escolaresca e elo de ligação da juventude aos mestres e ao Estado. A letra é latina. (Para Ernesto) Vamos, Sr. Ernesto.

SABE-TUDO – Também cantarei. Conheço a música.

ERNESTO – E muito bem. Aprendeu-a na Alemanha, num bar de estudantes.

PANGLOSS – Cantemos então. (Cantam os três)

Gaudeamus igitur,

juvenes dum sumus;

post jucundam juventutem,

post molestam senectutem

nos habebit humus

nos habebit humus.

 

Vivat academia,

vivant professores;

vivat membrum quodlibet,

vivant membra quaelibet,

semper sint in flore,

semper sint in flore.

 

Vivat es respublica

et qui illam regit;

vivat nostra civitas;

vivat haec sodalitas,

quae nos huc collegit,

quae nos huc collegit.

 

SABE-TUDO – Bravo! Muito bem, Dr. Pangloss! Não lhe conhecia a prenda.

PANGLOSS – Na Alemanha, não há ninguém que não cante.

SABE-TUDO (Batendo as palmas, alto, para dentro) – Vamos às especialidades! (Apaga-se a luz. Mutação: átrio do Liceu)

*

SABE-TUDO – Aqui se exibirão perante V. Ex.ª os declamadores, os coleccionadores de anedotas literárias / 78 / e estudantescas, os cançonetistas, as músicas, as críticas, «e o mais que adiante se ouvirá»... (Pausa) Começaremos pelos declamadores. Em primeiro lugar, é claro, a Adina Frias, do 7.º ano, que desde o primeiro sempre fez as delícias de muitas sessões.

(Recitações da Aldina e doutros declamadores, com palmas dos assistentes)

SABE-TUDO – Depois destes números, não ficará mal, Sr. Dr. Pangloss, um número de canto do meu repertório particular – «A volta do Proscrito» – (Canta. Coro interno)

«Eis da infância o tecto amigo;

eis a fonte que murmura;

eis o céu puro da pátria;

eis o dia da ventura!»

Eis o dia da ventura, da ventura.

 

A terra estranha

onde proscrito

mágoa tamanha,

longa sofri,

lá o deixei,

e eis-me aqui!

 

Salve ó terra

idolatrada!

Eu te saúdo,

ó terra amada!

Terra, ó terra hospitaleira,

vejo-te enfim!

Amigos, não sei que sinto:

ela é tudo para mim.

 

És Portugal, que ao Mundo inteiro

que ao Mundo inteiro

deu novos mundos,

por derradeiro.

Por isso te amo

o que a ti veio.

Hei-de morrer

junto a teu seio.

 

PANGLOSS – Muito bem! Sehr Gut! Você, Sabe-Tudo, tem unhas! Parabéns!

SABE-TUDO – Obrigadinha! Agora, o anedotário. Dividi-lo-emos em épocas: o antigo, o moderno, o contemporâneo e o estudantesco. (Para dentro) Saltem as anedotários! (Entram quatro estudantes)

*

ANTIGO (Vestido à grega) – Uma anedota antiga, clássica, relativa ao celebérrimo filósofo grego Diógenes. Era o tal que vivia na praça pública, com um tonel por única habitação, e que uma vez foi visto ao meio-dia, de candeia acesa na mão, à busca de um homem...

SABE-TUDO – Vamos! Despacha-te!

ANTIGO – Pois um dia Diógenes entrou num palácio magnífico, sumptuosíssimo, onde predominavam os mármores e o oiro. Admiradas que foram por ele todas as riquezas, apeteceu-lhe tossir; e, não tendo onde descarregar, escarrou no rosto do frígio que lhe andava servindo de cicerone. Vendo-o estupefacto e embezerrado, lançou-lhe estas palavras: – Desculpe, amigo; não vi lugar mais sujo onde pudesse aliviar-me!

CONTEMPORÂNEO (Vestido à século XX, época romântica) – Essa faz-me lembrar uma da época contemporânea, que Júlio Dantas reproduziu num dos seus livros ligeiros. (Contando) Um dos ministros da Monarquia, muito conhecido pelos seus ditos espirituosos, descendo um dia o Chiado, em Lisboa, viu à porta de uma mercearia um bojudo pote inglês de faiança azul, cheio de manteiga; e, sem saber porquê, sentiu o apetite invencível de lhe cuspir. E cuspiu! – O caixeiro, furioso, saltou de dentro da loja: – Então o Senhor tem a pouca vergonha de me cuspir na manteiga?! – O político não se desconcertou. Tirou o chapéu, cumprimentou ligeiramente e disse com o sorriso mais calmo deste mundo: – Peço desculpa! Julguei que eram azeitonas...

MODERNO (Vestido à século XVII) – Da época moderna, narrarei duas do nosso delicioso escritor D. Francisco Manuel de Melo. Primeira: – Um cortesão perguntou a outro se gostava de frades. Resposta dele: – Olhai, amigo, eu sou amicíssimo de frades. Se não são bons, não lhes quero dar ocasião em minha casa para que sejam piores; se são bons, não lhes quero dar ocasião em minha casa para que o não sejam. De sorte que sempre os amo e sempre os escuso. (Outro tom) Segunda: – Confessava-se uma mulher honrada a um frade velho e rabugento; e, como começasse a dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor: – Sabe latim? – Disse: – Criei-me em mosteiro. – Tornou-lhe a perguntar: – Que estado tendes? - Respondeu-lhe – Casada. – A que tornou: – Onde está vosso marido? – Na Índia, meu padre! – disse ela. – Então com agudeza repetiu o velho: – Tende mão, filha! Sabeis latim, criaste-vos em mosteiro, tendes marido na Índia? Ora ide-vos embora e vinde cá outra dia, que vós é força que tragais muito que dizer, e eu hoje estou com muita pressa.

CONTEMPORÂNEO – De beata, tenho uma na minha colecção, que não é desengraçada. Recolheu-a também Júlio Dantas. Ouçam. – Uma vez, no século XVIII, uma beata que morava em Coimbra entre as igrejas de Santa Clara e de S. Francisco, apresentou ao confessor, muita vermelha e confusa, uma questão / 79 / que se debatia na sua consciência: – Ai, reverendo padre, que não sei como hei-de acomodar-me com os dois santinhos. Se ajoelho para rezar a S. Francisco, volto o pousadeiro para Santa Clara; se me ajoelho a rezar a Santa Clara, volto o pousadeiro para S. Francisco... – Pois, boa mulher, – aconselhou o frade – não volte o pousadeiro nem para um, nem para outro!... – Como? – Sente-se no chão!

ESTUDANTESCO – Colhidas na vida liceal, aqui tem três. (Pausa) Para definir Bíblia, escreveu um dia um patusco, em exercício: «Bíblia é um livro, escrita por Camões, que nos conta a história de Portugal, desde o seu nascimento até ao seu falecimento». (Pausa) Esta também não é màzita: – Dê-me uma ideia do clima de Angola. – «o clima de Angola é muito quente; a igual distância do Equador, devido a ficar muito baixa». (Outro tom) Estão a ver que o liceu ia caindo, com a sonora e unânime gargalhada da malta. (Pausa) Mas esta vale por mil, e com ela termino. (Contando) Quando eu fiz o 5.º ano, esteve comigo na mesma sala, na prova escrita, um candidato emancipável, destes que se apresentam a exame sem – digamos – assistência técnica de espécie alguma. No fim da prova de História, que era de respeito, o meu homem parecia um pardal, tão satisfeito se sentia da sua pessoa. – Então, pá! Que tal? – Mostra-me logo o rascunho e diz-me: – Correu-me tudo lindamente: enchi todo o papel. – Deixa ver! – disse eu. De boca aberta, verifiquei que, entre outras peças de ourivesaria, continha o rascunha estas pérolas: – «D. João V escreveu a «Arte de Bem Cavalgar toda a Sela»; o plano do mosteiro da Batalha foi feito pelo arquitecto Afonso Lopes Vieira; por morte de D. José e sucessão ao trono de sua filha D. Maria, foi o Marquês de Pombal desterrado. – São iniciados os descobrimentos; o livro sagrado dos persas é a Bíblia; o Marquês de Pombal não devia ter expulsado os Jesuítas, porque eles foram os obreiros da colonização de Portugal, até mesmo no tempo de D. Afonso Henriques» – (Saem os anedotários)

*

PANGLOSS – Muito interessantes!

SABE-TUDO – Agora, meus Senhores, vejamos o que pode a Mocidade Liceal, quando especialmente se arroja a afrontar a arte de Terpsícore, a excelsa musa da dança. Um número de sabor popular: a Rabela. (Entram pares, executam a dança e saem).

PANGLOSS – E agora? (Entra Sabe-Nada)

*

SABE-NADA – Agora, de novo o Sabe-Nada! (Para Pangloss e Ernesto) Desculpem.

SABE-TUDO – Que há?

SABE-NADA – Fartaste-te de me rebaixar diante destes Senhores, fazendo-me perguntas de algibeira... Pois vim aqui para me vingar.

SABE-TUDO – Vingar-te, como?

SABE-NADA - Dirigindo-te também umas perguntazinhas...

SABE-TUDO – Está bem. Venham elas.

SABE NADA – De todos os professores, qual é o mais velho?

SABE-TUDO – Ora, Ora! O Reitor!

SABE-NADA – E o mais novo?

SABE-TUDO – O Dr. Ribau.

SABE-NADA – E o mais alegre?

SABE- TUDO – O Dr. Assis. O mais alegre, e aparentemente o mais irascível.

SABE-NADA – E o mais calmo?

SABE-TUDO – O Dr. Carneiro. Primeiro que lhe arranquem uma palavra, é um dia de juízo! Nas aulas dele, até dá vontade de dormir!

SABE-NADA – É o dás! (Continuando) O homem mais discutido em Aveiro? Mais discutido... às vezes!

SABE-TUDO – É o Presidente da Câmara!

SABE-NADA – Porquê?

SABE-TUDO – Porque sim!

SABE-NADA – O Homem a quem as Senhoras e as sopeiras dizem sempre: Viva quem é uma flor!

SABE-TUDO – Isso... deve ser no Salão Cravo.

SABE-NADA – O estabelecimento mais sossegado da cidade?

SABE-TUDO – A Farmácia Calado.

SABE-NADA – Agora, umas frases típicas, ou estribilhos, de professores, para tu identificares.

SABE-TUDO – Às ordens!

SABE-NADA – Ora vamos lá. (Imitando o professor respectivo) «Isto, meu menino, é fundamental».

SABE-TUDO – O Dr. Ferreira Neves.

SABE-NADA (Imitando) – «Fogo! Fogo!»

SABE-TUDO – O Dr. Euclides. «Fogo, fogo!» e «Calma! Calma!»

SABE-NADA (Imitando) – «Que grande infelicidade!»

SABE-TUDO – Ora, ora! O Dr. Assis!

SABE-NADA (Imitando) – «Não é verdade isso?»

SABE-TUDO – O Dr. Rocha.

SABE-NADA – Quantos são, por enquanto, os Clubes de Aveiro?

SABE-TUDO – É fácil. Pela ordem de antiguidade, temos: Recreio Artístico, Mário Duarte, Galitos, Beira-Mar, Comércio e Indústria, Clube de Aveiro...

SABE-NADA – Está bem. E quais são os duplicados da cidade?

SABE-TUDO – Facílimo: dois Senhores dos Passos, duas bandas, duas corporações de Bombeiros.

SABE-NADA – E, de cafés, que dizes? / 80 /

SABE-TUDO – É um tanto complicado, mas dá-se-lhe um jeito. Vejamos. Antigamente ali nos Arcos, tínhamos o Cisne da Arcada, que se foi abaixo das pernas... E nenhum mais se aguentava. Agora, é uma farturinha, e todos vivem, uns na opulência, outros em condições mais modestas: Café da Arcada, Avenida, Trianon, Gato Preto, Sol de Oiro, Galito, Sport e Pastelaria Chic. Além disso, pode-se tomar café na «Estrela» e na Confeitaria da Avenida.

SABE-NADA – Bem, desculparás! Meus Senhores... (Sai. Risos dos assistentes. Entra Genebra Pereira)

SABE-TUDO (Olhando, espantado, a personagem, velha encarquilhada, trémula, voz esganiçada) – Ah! Donde nos caiu esta ave? (Para ela) Quem é você, tiazinha? Ou melhor: quem és tu?

GENEBRA – Não me conhece?! Eu apresento-me, tal qual me criou Gil Vicente:

Eu sou Genebra Pereira,

que moro ali à Pedreira,

vizinha de João de Tara,

solteira, já velha amara,

sem marido e sem nobreza.

Fui criada em gentileza

dentro nas tripas do Paço;

e, por feitiços que eu faço,

dizem que sou feiticeira.

Porém Genebra Pereira

nunca fez mal a ninguém,

mas antes, por querer bem,

ando nas encruzilhadas

às horas que as bem fadadas

dormem sono repousado,

e eu estou cum enforcado

papeando-Ihe à orelha.

... ... ... ... ... .., ... ...

E, havendo piedade,

de mulheres mal casadas,

para as ver bem maridadas

ando pelos adros nua,

sem companhia nenhua,

senão um sino samão

metido num coração

de gato preto, e não aI.

Isto, Senhor, não é mal,

pois é pera fazer bem.

Outrossi, quando a mi vem

namorado sem conforto,

desejando antes ser morto

que ter aquela paixão,

cavalgo no meu cabrão

e vou-me a val de Cavalinhos

e ando quebrando os focinhos

por aquelas oliveiras,

chamando frades e freiras

que morreram por amores.

 

(Pausa)

 

Isto que todos ouvistes

escreveu-o Gil Vicente,

que foi um grande poeta.

Escreveu e nunca mente!

Agora tu, Sabe-Tudo,

que dizes tudo saber,

vê se és capaz de dizer

quem será esta ladina,

esta velha, este estafermo.

SABE-TUDO – Ah! Já sei. Tu és a Aldina!

GENEBRA (Para Pangloss)

Peço-lhe, Dr. Pangloss,

por tudo, que não me troce...

 

(Natural, para Sabe-Tudo)

 

Pois se sabes, adeusinho!

Aqui vos deixo em paz,

pra seguir outro destino.

 

                                              (Sai a correr)

*

PANGLOSS (Rindo-se) – Endiabrada, esta aluna!

ERNESTO – Melhor, Sr. Doutor; endiabrada, esta velha!

SABE-TUDO – Levadinha da breca! (Outro tom) Na sequência do programa, depois desta Genebra Pereira, que nos apareceu aqui, por artes mágicas, sem ninguém a chamar, – acho que não é de todo desconcertado ressuscitar uma serenata, com guitarras e violas, tanto mais que não há destes mimos na Vestefália. (Para dentro) Salta uma serenatazinha à antiga! (Para PangIoss) A letra é de hoje, a puxar para a troça; mas, graças ao influxo da Genebra Pereira, não faltará nem a competente nesga da cidade, com a luz do candeeiro de gás, nem outras coisas que em tempos se faziam, sob os benévolos olhares da Polícia.

 

(Mutação para trecho da cidade, com luz mortiça. Aparecem estudantes com guitarras e violas)

*

SABE-TUDO (Cantando)

Por esta noite de frio,

antes que venha a alvorada,

canção eu vou entoar,

dirigir à minha amada. / 81 /

 

Vem à janela, menina,

que teus pais já ‘stão dormindo;

aproveitemos a hora,

que o tempo vai-nos fugindo.

 

Há poucos dias atrás,

confessei-te o meu amor;

mas o teu rosto, ó bela,

nem sequer mudou de cor.

 

Não me dês a ilusão

de o meu amor desprezares,

pois sem a tua afeição,

tudo pra mim são pesares.

 

Lá ‘stá ela, a minha amada!

à janela me aparece!

É a suprema ventura:

já meu amor não fenece.

 

(Ouvem-se três grandes e espaçadas pancadas metálicas)

SABE-TUDO – C’est fini! Acabou, por hoje, a nossa visita ao Liceu. (Cai um pano para mutação da cena) Vamos, Dr. Pangloss! Suponha-se agora instalado numa frisa do Teatro Aveirense, a assistir a uma cena algo comovente, ao adeus dos finalistas, na sua já tradicional festa de despedida. Vê-los-á passarem aos colegas do 6.º ano o facho simbólico que eles, para o ano, já setimanistas, por seu turno transmitirão a outros. E sempre assim será, através dos tempos: entrada para o Liceu, a medo, no 1,º ano; confraternização no trabalho escolar e nos vaivéns e ardores da vida académica –, durante sete anos; por fim, partida para outros destinos, com a saudade do tempo passado. Vamos!

(Saem, enquanto a orquestra vai preludiando o final da Revista. Passados momentos, entram na frisa da esquerda, junto do palco, Aveiro, Pangloss e Ernesto e nela se sentam.)

*

Final do 3º acto. Clicar para ampliar.

(Sobe o pano, e mostram-se ao fundo, dispostos em anfiteatro, os alunos do 6.º ano e, aos lados, os finalistas, incluindo Sabe-Tudo. Uma aluna e um aluno do 7.º ano empunham fachos acesos, que na devido altura entregam a colegas do 6.º ano. Segue o coro Final.)

Nesta hora de intensa alegria

os que estamos daqui a partir

O Liceu e Aveiro nos prendem,

que nos viram em moços fulgir.

 

Professores, lições, camaradas,

tudo, tudo aqui ficará;

e, seguidos por nós outros trilhos,

inda um dia a saudade virá.

 

Adeus, bons e leais Aveirenses!

Adeus, mestres! Nós vamos partir!

Neste facho de luz que deixamos,

fica inteiro o nosso sentir.

 

Salve, templo de amor e ciência!

Nossas faltas não leves a mal!

Teus meninos daqui saem homens,

bem capazes de honrar Portugal.

 

Eis o facho de luz que vos deixam

nossas almas, cheias de luar;

e, chegada que seja a partida,

todos vós nos vereis a chorar!

(Na frisa, os três ocupantes dão palmas. Saem dela Pangloss, Ernesto e Aveiro, que, dentro de pouco, antes de fechar o pano, aparecem no palco, a palmear e a abraçar vários figurantes. Cena muito movimentada)

(Cai o pano)

Fim da peça de teatro

 

páginas 67 a 81

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