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EM
terras do distrito, ali em Avanca, nasceu, na Casa do
Marinheiro, em 29 de Novembro de 1874, o eminente Sábio EGAS
MONIZ de seu nome completo António Caetano de Abreu Freire Egas
Moniz – glória da região aveirense e de Portugal inteiro.
Frequentou brilhantemente a
Faculdade de Medicina na Universidade de Coimbra, onde se formou
em 1899 e doutorou em 1901, e onde foi Professor até 1911. Neste
ano, foi transferido para a Faculdade de Medicina de Lisboa,
ficando a reger a cadeira de Neurologia, especialidade a que se
dedicou. Faleceu na capital a 13 de Dezembro de 1955.
As investigações e descobertas
do Professor Doutor Egas Moniz alcançaram fama universal e
haveriam de galardoá-lo com a mais alta distinção – o PRÉMIO
NOBEL.
Não foi, porém, somente no mundo
da Ciência que Egas Moniz se celebrizou: a sua actividade
inteligente manifestou-se intensamente também no domínio da
Literatura e da Arte.
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É vastíssima a sua bibliografia
médica e extra-médica, sabendo-se ainda da existência de
preciosas cartas e outros escritos inéditos. Damos aqui à
estampa um excerto de uns apontamentos, datados de 1948, notas
em que ele esclareceu tratar-se apenas de um «esboço do Catálogo
da Casa Museu do Marinheiro».
Esta Casa-Museu, sonho que o
insigne Mestre acalentou, tornou-se realidade no corrente ano:
foi inaugurada e patente ao público, em Julho último, com o nome
de Casa-Museu da Fundação Egas Moniz. Reúne numerosos e
preciosos objectos artísticos que, como afirma, «durante décadas
de anos foi adquirindo», os quais farão sem dúvida, o regalo dos
olhos e do espírito dos visitantes.
/ 12 /
I
«Durante dois ou três anos
pensei na efectivação da «Casa-Museu» do Marinheiro, que minha
mulher e eu projectámos legar aos meus patrícios dos concelhos
de Estarreja e Murtosa, que sempre me deram demonstrações de
estima e apreço, particularmente Avanca e Pardilhó.
Entendemos que o grupo de
limitados haveres que possuímos em Avanca deviam formar o grupo
que poderia suportar o encargo do Museu.
Tudo foi ponderado, desde a sua
organização financeira até à distribuição dos objectos
artísticos que formam a base da atracção dos visitantes.
Encheu-me de prazer este trabalho, que apreciei nas mínimas
particularidades. Reunir num único local as coisas que durante
décadas de anos fui adquirindo, informar da origem das mais
importantes, viver as peripécias que muitas compras determinaram
e que ainda permanecem na lembrança, coisas mínimas que só os
que se dedicam ao prazer de coleccionar algumas antiguidades
podem saborear.
Um exemplo: um dia, Álvaro de
Miranda conseguiu uma bela colecção de serviços de chá que pôs à
venda. Sabia que eu era comprador e, como desejava transaccionar
com brevidade a mercadoria, mandou-me um telegrama a pedir a
minha visita. Como andava, de há muito, em busca destes
objectos, segui, no dia imediato, no rápido da manhã, para a
Granja. Na carruagem em que entrei também fazia viajem o grande
poeta Guerra Junqueiro, a quem me prendia, com muita admiração
pelo seu talento, uma amizade a que ele correspondia. Ora o
autor de «Os Simples» era também um coleccionador afamado e
apaixonado de objectos antigos de arte e conhecedor, a fundo, de
porcelanas e faianças. Disse-me que ia passar um tempo à sua
casa do Norte. Estranhei um pouco o nosso encontro a «caminho da
Granja», mas não fiz reparo de maior. Chegados à estação,
verifiquei que Guerra Junqueiro também se apeara e tive então a
certeza de que fora avisado pelo Miranda da colecção que
obtivera. Deu-se nessa altura uma espécie de marcha forçada para
o estabelecimento de vendas, que ficava próximo, do lado oposto
à estação, tendo por isso de se atravessar a linha.
Sentindo que ia ter um
competidor de grande categoria, apressei o passo, não sei mesmo
se cheguei a correr; e, como era mais novo, alcancei o
estabelecimento antes que Guerra Junqueiro chegasse. Ao ver o
meu avanço, não insistiu em apressar a marcha, dando-me uns
minutos de vantagem, que aproveitei em ver as porcelanas. Sobre
uma mesa grande havia vários serviços da China de chá: um azul e
oiro, completo, um dos mais belos que conheci, um da Companhia
das Índias, com firma, também completo, e mais dois incompletos,
mas com peças interessantes, azul e branco e vermelho e branco e
bastantes chávenas. Perguntei o preço total. Não discuti. –
«Está tudo comprado; mas daqui não sai nenhuma peça, seja para
quem for». Concordou comigo. Continuei: – «Vem aí o Guerra
Junqueiro, que V. também avisou» – disse-lhe intencionalmente.
Não negou. «Repare bem: o que está sobre a mesa já lhe não
pertence».
Na impossibilidade de contar as
peças, que passavam de 150, fui notando o que era mais
importante, ficando assente que, no dia imediato, ficariam no
«Marinheiro». Nisto, entrou o nosso querido Poeta. Logo se
encaminhou para a mesa onde estavam expostas as preciosas
porcelanas. Disse-lhe Álvaro Miranda que eu comprara o lote. Não
desanimou de acarinhar uma malga do serviço azul e oiro, que
desejava por todo o preço adquirir. Miranda bem lhe dizia que já
lhe não pertencia; mas insistia com uma pertinácia digna de um
coleccionador de grande classe. Sob o pretexto de ver outras
antiguidades expostas, ia vigiando os movimentos do Poeta amigo,
naquele momento competidor de temer. Miranda ainda ousou
perguntar-me se podia ceder a linda tigelinha... – «Impossível.
Então V., amador de coisas de arte, entende que eu posso
consentir em ficar incompleto um serviço daquela categoria? É
esse o seu grande valor. Comprei tudo. Nada lhe pertence do que
aí está». E, dirigindo-me a Guerra Junqueiro: – «Adeus, caro
amigo. Boa viagem. Eu sigo agora no tramway para a minha
aldeia, onde receberei as suas ordens. Até breve». No dia
imediato tinha em Avanca toda a encomenda e muito nos
regozijámos com a vitória apontada.
Outro exemplo: José Relvas, um
dos mais notáveis coleccionadores portugueses, conhecedor como
poucos de quadros e tecidos, cuja opinião todos respeitavam,
deixou ao país um dos melhores Museus que possuímos. Já a casa é
digna de ser visitada pela sua arquitectura invulgar, com
ressaibo de linhas andaluzas. O recheio é magnífico. Quadros
primitivos formam uma das salas. Do melhor que possuímos.
Dos pintores modernos um sem
número de preciosidades, de Constantino, Silva Porto, Condeixa,
Malhoa... para só citar os que mais me impressionaram. De
quadros estrangeiros, uma abundante documentação.
Uma excelente cópia dos
Borrachos de Velásquez e um quadro original que lhe é atribuído
e ao qual, à primeira vista, dei essa paternidade. Soberbo. Em
louças, Saxe, China, Índia, Vista Alegre, tudo ricamente
representado. Tem um grupo de Saxe como nunca vi igual e outro
também muito grande e muito belo. Em mobiliário, uma
sumptuosidade que merecia uma larga descrição se a memória me
ajudasse e fosse aqui lugar azado para o fazer. Tapeçarias como
não há mais belas. Embora seja pouco conhecedor desse género,
citarei entre as portuguesas um tapete de Arraiolos, de
/ 13 / seda,
antigo, exemplar único; e riquíssimos paramentos religiosos que
dariam o precioso recheio de uma sumptuosa Catedral. Não há
catálogo deste maravilhoso Museu, no conjunto o mais rico de
Portugal. Quando estiver patente ao público, será motivo de
peregrinação para os romeiros da Arte.
José Relvas andou muito tempo em
torno de dois quadros franceses da época romântica, tipo Corot,
(ilegível) com assinatura indecifrável, pois os nomes estão
substituídos por uns sinais que não pude interpretar. Eu também
apreciava os quadros em que se respirava melancolia e eram de
minuciosa e primorosa execução. O antiquário teimava num preço
que José Relvas se não decidia a dar, elevado para a época,
insignificante com a actual desvalorização da moeda. O episódio
deve ter-se passado há cerca de 40 anos. Eu também achava a
quantia excessiva mas, um dia, num ímpeto de coragem, resolvi-me
a satisfazer a exigência do antiquário e trouxe os quadros para
casa. Figuram hoje, como jóias valiosas no salão da Casa do
Marinheiro. José Relvas conheceu o nome do rival e disse-me um
dia que os quadros eram bons, mas que não valiam o dinheiro que
por eles dera. Por isso os não tinha adquirido.
– «Às vezes os fracos tomam
assomos de valentões» – retorqui-lhe, sorrindo. Com efeito,
comparar as magras possibilidades com as de José Relvas, era
audácia que me ficava mal. José Relvas sentiu não se ter
decidido pela compra. Daí a explicação.
Também perdi algumas partidas,
entre elas uma em Madrid, num brique-à-braque na Calle S.
Jerónimo, que ainda agora me aborrece. Havia ali dois ricos
grupos de Saxe coloridos, duma rara perfeição. Estavam na casa
há muitos meses. Ninguém lhes pegava. Perdi-os por uma ninharia,
de um dia para o outro. A vida de coleccionador sofre destas
contrariedades. Pequenas coisas que só os que andam por estes
trilhos sabem sentir e apreciar. Raro é o objecto adquirido que
não tenha a sua pequena história que relembramos na apreciação
das colecções. Os objectos falam-nos como amigos velhos, e
alguns – já noutro campo – parecem discutir connosco a sua
autenticidade. Em peças da China, quando se quer penetrar a
fundo na determinação da época exacta a que pertencem, mesmo os
grandes peritos, de lente em punho e cheios de experiência, caem
em erros ou ficam em incertezas impenetráveis. As porcelanas das
dinastias de Ming, de Tsing, do período Vung-Ching ou Keen-Lung
são problemas para mim transcendentes, pois até as peças foram
por sua vez imitadas. Copiaram-nas de potes, jarras e pratos de
épocas anteriores. O emprego de certas cores, de vidrados e
esmaltes podem inclinar os conhecedores para um certo período,
para uma determinada época; mas, como diz Blacker (ilegível), as
dificuldades de apreciação são inúmeras. Desde que as peças
chinesas tenham a patina que o tempo lhes traz e sejam belas, o
resto pouco me importou no momento da sua aquisição. Os pratos
dos serviços mais conhecidos têm características próprias, como
por exemplo a cercadura típica da louça de Cantão. São contudo
especialmente apreciadas pelo conjunto de desenho e pelo brilho
especial que o tempo lhes trouxe.
Nas peças policrómicas, e mesmo
no azul e branco, têm valor especial os serviços da Índia que
apresentam figuras chinesas ou figuras europeias, como se
observa em porcelanas da Companhia das índias. Possuímos alguns
desses exemplares, que vão ilustrar o nosso Museu.
De antigas porcelanas
portuguesas já se coleccionam entre nós as da fábrica da
Vista-Alegre, especialmente as da marca oiro, de que há também
bastantes exemplares na nossa colecção. A marca azul com letras
pequenas foi, segundo creio, a que se lhe seguiu, sendo as
letras V. A. maiores na época subsequente. Há peças preciosas
dos primeiros tempos. Sirva de exemplo um tinteiro, dessa época;
um serviço de chá, marca oiro e outras porcelanas da mesma
época, como um cesto vazado da mesma marca que possuo, para
citar um exemplo e que ficarão expostos. Nos períodos seguintes
também houve alguns belos exemplares, de decorações policrómicas
de artistas franceses e portugueses que estiveram ao serviço da
fábrica. Esta melhorou muito ultimamente, passando a ser uma
excelente escola de oleiros, a mais notável do país, alcançando
mesmo com justificada razão renome no estrangeiro.
Os vidros da Vista Alegre são
também muito apreciados. São anteriores às boas porcelanas. A
fábrica conseguiu obter cristais magníficos. Todos conhecem os
copos com incrustações de retratos de reis, rainhas e algumas
ordens honoríficas. Alguns exemplares figurarão no Museu do
Marinheiro; mas faltam outros. Alguns perdi por falta de coragem
e decisão em os pagar, quando ainda eram acessíveis à minha
bolsa, entre eles um com a efígie de D. Miguel, que, em
homenagem ao passado, ficaria bem na Casa-Museu que após a nossa
morte se organizará. Também tenho algumas peças, hoje muito
raras, de vidros de primitivo fabrico, em especial uma
compoteira de cuja identificação não tenho dúvidas. Na exposição
que há anos se realizou em Lisboa, de peças antigas da Vista
Alegre, apareceu uma preciosíssima colecção de cristais, quase
todos da família Pinto Basto, a quem a fábrica pertenceu e
suponho ainda pertence, pelo menos na sua maior parte, peças a
rivalizar com o que de melhor se obteve no estrangeiro. A
colecção que possuo da Vista Alegre – porcelanas e vidros – foi
constituída através de muitos anos, muito antes de pensar na
organização de um Museu. Havia uma razão a orientar-me neste
sentido; era do meu distrito e foi nessa fábrica que o operário
Capote, de que tenho o busto descobriu os
/ 14 / primeiros
jazigos de caulino, indispensável ao fabrico da porcelana. No
catálogo definitivo serão descritos todos os objectos expostos
de que fica notícia nos inventários que possuo das Casas de
Avanca e Lisboa. Eles servirão de base à ordenação final.
Por agora deixarei apenas umas
notas expressas (um pouco ilegível) ao correr da pena, esboço
sem a pretensão de servir de directriz à ordenação dos objectos
que consegui amontoar. E com ele um ou outro episódio, que,
servindo para amenizar a leitura – se alguém se der ao trabalho
de compulsar estes apontamentos, um ou outro facto íntimo, até
aqui esquecido ou ignorado. Tudo ninharias; mas anseios de quem
tem a vida presa à sua aldeia, à família querida, e à Casa,
escrínio de saudades que levarei comigo para o eterno
esquecimento.
O livro «A Nossa Casa», que
publiquei mais tarde, mostra todo o afecto que eu e minha mulher
lhe dedicamos. Estas notas foram escritas antes de o escrever.
Foi aqui a sua origem. São de 1947, antes de me terem celebrado
com o Prémio Nobel que veio no fim da vida, mas a tempo de
tornar mais justificado o nosso intuito de não dispersar a nossa
colecção antes de juntarmos nesta Casa-Museu para regalo e
educação dos meus patrícios. De tal maneira o povo português me
tem considerado, que, uma vez por outra, se dignará visitar este
modesto solar, que foi dos meus e onde nasci.
II
A primitiva Casa do Marinheiro
era uma modesta construção do século XVII, similar a outras de
Avanca de que ainda hoje se conservam vestígios. A Casa do Mato,
a mais antiga, que sucedeu a uma outra, foi edificada por volta
de 1500, segundo rezam apontamentos de família, que possuímos.
Está bastante arruinada, mas ainda tem num portão lateral uma
bela pedra armoriada, mandada fazer no século XVIII por um
sacerdote da família.
Mãe do Professor Egas Moniz. |
A antiga construção tem janelas
similares à parte térrea da Casa da Areia, outra construção da
época, depois acrescentada com uma parte mais alta, também
interessante pela forma dos telhados. A antiga Casa do Outeiro
também tinha traça similar, segundo ouvi contar. No mesmo local
levantaram no século XVIIII o belo solar que hoje existe com a
capela estilizada, D. João V, uma das mais interessantes que
conheço no seu granito lavrado, da melhor categoria. Outras
casas houve em Avança, da mesma época, de famílias aparentadas,
a dos Brandões e a do Telhado, já de transição, assobradada, com
varandas de ferro forjado simples, ambas demolidas e de que,
dentro em pouco, apenas só ficará fugaz memória dos locais onde
existiram.
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A actual Casa do Marinheiro foi
reconstruída, aproveitando todo o perímetro da velha edificação,
depois aumentada para o Sul, dando a frente para a estrada que,
da estação, segue para Mourão e Pardilhó. A entrada do antigo
prédio era do Norte, do lado oposto. Ainda me lembro de não
haver estrada, melhoramento primordial que deve ter sido levado
a efeito por volta de 1879, segundo as minhas reminiscências.
Avanca era nessa época uma pacata terra de lavradores, que,
querendo dar-se ares de senhores, empobrecia a olhos vistos. Só
se salvavam alguns, também possuidores de boas leiras que eles
próprios cultivavam com porfiado trabalho.
O primitivo apeadeiro dos
Caminhos de Ferro, que se deve a João Pacheco Corte Real com
influência por parentesco junto de José Luciano de Castro e seu
irmão Francisco Matoso de Castro Corte Real, que dominavam a
política do distrito por ser José Luciano o chefe do partido
progressista, um dos grandes agrupamentos políticos dessa época.
O modesto apeadeiro da linha
férrea, substituído por um edifício de belo aspecto, com
ilustrações de azulejos de Aveiro, graças à iniciativa e aos
esforços duma Comissão de que faziam parte o Prof. Boaventura
Pereira de Melo, Cap. Manuel António da Silva Pereira e outros.
Foi esse o primeiro grande passo para o progresso da freguesia
de Avanca. A sua ligação por estradas com as aldeias vizinhas,
especialmente com
/ 15 / Pardilhó, de população dinâmica, activa e
empreendedora, principalmente em construções navais em cuja
carpintaria, agora quase sempre fora das suas Ribeiras, ainda
mantém a hegemonia do operariado desta arte. Ao lado dessa,
outras actividades industriais e comerciais têm mostrado quanto
os pardilhoenses se comprazem em engrandecer o seu burgo. É de
muito mais recente data do que Avança, à qual, há pouco mais de
um século, estava ainda eclesiasticamente ligada.
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Pai do Professor Egas Moniz. |
Avanca é uma terra antiga, que
dizem fora vila em remotos tempos, pois é coeva da fundação da
monarquia lusitana. Teve famílias, todas mais ou menos
aparentadas com brasões de armas e faláucias nobiliárquicas que
muito as prejudicaram, afastando os seus membros de actividades
produtivas, perdendo-se na inactividade de grandes senhores,
quando não havia riqueza intrínseca para tal. Outros
Avancanenses subiram, no campo industrial e comercial, e a custo
resgatavam, pelo trabalho, a estagnação da actividade dos que os
antecederam. Ainda me lembro, em criança, das aparências
fictícias dum fausto que não podia manter-se em agradáveis
festas de gente bem educada e de boas maneiras, qualidades que
representavam alguma coisa, mas não bastam às exigências e
progresso da vida, que por toda a parte se levanta sobre pilares
sólidos duma actividade honesta, persistente e regrada. Meus
pais e meus tios, agregado familiar muito antigo e muito unido,
viram talvez tarde, para eles, o problema; mas muito a tempo
para mim. E não digo para os
meus três irmãos, infelizmente levados cedo pela morte e pela
desventura.
O mais velho, António Joaquim,
faleceu criança; minha irmã, Luciana Augusta de Sousa Abreu
Freire, veio tuberculosa do convento de Arouca, onde estava a
educar-se e finou-se em Avanca, aos 16 anos, entre cuidados e
carinhos, numa consumpção geral, quando a existência era apenas
um vago e prometedor sorriso. Foi-se com ela a alegria do nosso
lar. Todos a estimavam. As primas do Outeiro e da Areia
disputavam a sua amizade e compraziam-se com o seu agradável
convívio. Por fim, já nem o seu piano a chamava, pois
faltavam-lhe forças para mover as teclas, o que tanto prazer lhe
dava e a todos nós, que, em torno das suas modestas exibições,
enleados a ouvíamos. O meu irmão Miguel Maria, de nome que
evocava as tradições legitimistas de toda a família paterna,
pois meu avô António Pinho de Resende fora tenente-coronel de
caçadores e um dos bravos que à frente do seu regimento atacaram
o Porto onde o constitucionalismo alcançou ruinosa vitória. Um
tio meu, de nome Miguel, foi afilhado do Sr. D. Miguel, como
soía dizer-se, mesmo na maior intimidade, com mesura das damas
da família, ao pronunciar-se-lhe o nome. Meu irmão ainda
conservou o nome numa homenagem de saudade ao Rei proscrito.
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Minha mãe era caramulana, filha
de um grande liberal daquelas terras montanhosas. Rafael
Henrique
/ 16 /
de Almeida e Sousa, o Rafael de Alcofra, que de tempos
a tempos visitava a filha, que o adorava. Mas não entrava em
nossa casa, falava-lhe do caminho. Andava de mal com o meu pai,
e talvez no complexo determinante do corte de relações entrasse
o coeficiente político, pois os dicídios das lutas liberais
permaneceram por muitas décadas de anos na sociedade portuguesa.
Só com ele convivi depois do desaparecimento de meu pai, já
então colegial, nas férias, em Pardilhó, em casa de meu Tio
Abade.
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Irmã do Professor Egas Moniz,
Luciana Augusta de Sousa Abreu Freire. |
Admirava a sua bela barba
branca, o seu fato de burel de montanhês intemerato das
guerrilhas anti-miguelistas e
companheiro de luta do célebre Bispo de Viseu, D. António Alves
Martins, a quem, por iniciativa liberal, levantaram uma estátua
em Viseu. Meu avô era vivo e simpático no seu convívio. A sua
conversa anedótica deleitava-me. Ainda me estimam no Caramulo
por essa ascendência de Alcofra, aldeia perdida na vertente
norte da serra, num vale profundo, onde ainda hoje negreja a
casa do Carril, na qual viveram os meus maiores e se criou a
minha querida Mãe.
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Tio do Professor Egas Moniz,
Padre Caetano de Pina Resende Abreu de Sá Freire, que
custeou os estudos do sobrinho. |
A gente de Vouzela nunca se
esquece de mim, nas horas de homenagem; a elas se associando com
entusiasmo pois para os Vouzelenses continuo a ser caramulano,
portanto conterrâneo. Minha mãe não foi feliz na vida. Nem lhe
pude dar a compensação que esperava proporcionar-lhe, fazendo-a
viver uns anos de tranquilidade, amparada pelo meu braço.
Faleceu cedo, sem que eu pudesse saldar a minha dívida de
reconhecimento. Meu pai viu-se em más circunstâncias pecuniárias
e, homem de decisão, empregou-se na Alfândega da Beira, na
província de Moçambique, vindo a falecer em Lourenço Marques
antes de completar dois anos de voluntário exílio.
Meu irmão Miguel seguia o liceu
em Viseu, para onde meus tios me mandaram concluir o curso
secundário. Até aí frequentara um colégio de Jesuítas, em S.
Fiel, e falava ao tempo no propósito de pertencer à Companhia.
Nessa época deslumbrava-me a Matemática, como a mais bela das
ciências. Prendiam-me os problemas que, já fora do curso liceal,
um jesuíta de grande categoria mental, o Padre Fernandes
Sant'Ana que ao tempo ensinava essa disciplina em S. Fiel, me
dava para entretenimento, especialmente numas férias que ali
passei, e a que, se bem me recordo, nunca deixei de lhes
encontrar solução. Devo dizer em abono da verdade que não era
este professor que me instigava a entrar na Ordem. Pelo
contrário, aconselhava-me a seguir, cá fora, o destino escolar
que escolhesse e, se mais tarde pensasse em seguir a vida
religiosa, que fosse então. Só assim mostraria ter decidida
vocação. E, de facto, não a tinha. Passados três meses em
liberdade, não mais pensei na Companhia de Jesus. Começaram
então a assaltar-me dúvidas sobre problemas religiosos. Em menos
de um ano, despia-me de todas as poeiras que me prejudicavam a
visão e desde essa época adquiri a independência mental que
perdura hoje, na avançada idade em que estou escrevendo, com a
mesma convicção e segurança. Meu irmão Miguel seguia bem nos
estudos, três anos atrás de mim. Naquele tempo os exames eram
singulares e as disciplinas não obedeciam rigidamente à
organização dos estudos por anos.
O facto é que fui estudar inglês
com ele num prelector militar que conhecia bem a língua. Meu
irmão tinha jeito e gosto pelo estudo dos idiomas estrangeiros,
habilidade em que nunca fui forte.
Eu estava bastante
sobrecarregado com estudos, nesse último ano liceal e abandonei
um pouco o inglês que meu irmão, por fim, me ensinou de sorte a
poder fazer exame. Nas provas finais, alcancei um prémio em
Matemática e distinções em outras disciplinas. O Inglês foi o
último exame. Entrámos os dois a provas em dias seguidos.
Resultado: o Miguel ficou aprovado e eu, que não tinha metade do
seu saber, fiquei distinto. Isto contrariou-o ao máximo, não por
emulação, pois era muito meu amigo e apreciava as minhas
qualidades, mas pela injustiça do facto, tanto mais que as
/ 17 / provas se distanciaram, sendo as dele muito melhores.
Isto concorreu para, passado
mais um ano de liceu, atendendo
por um lado às dificuldades financeiras da casa e por sua vez
dando satisfação ao seu feitio aventureiro de origem, pedir a
meu tio para ir para a África trabalhar, ganhar a vida: pois,
esclarecia, era um encargo pesado para meu tio estar a
subsidiar, ao mesmo tempo, a educação de dois sobrinhos. No
fundo, porém, era a revolta contra a injustiça de que foi vítima
e uma tendência inata para ver novos horizontes na vida. Da
família só meu tio Padre Caetano de Pina Resende Abreu Sá
Freire, ao tempo abade da freguesia de Pardilhó, muito dedicado
à família, podia a custo arrostar com as despesas da educação
dos sobrinhos que estremecia. Muito económico, a braços com
dificuldades para salvar a Casa do Marinheiro, que teve de
comprar em praça e que não desejava perder, por ser o modesto
solar da família, onde seus pais tinham falecido, e nós tínhamos
nascido.
Opôs-se com boas razões aos
desígnios do meu irmão; mas, por fim, consentiu em que partisse,
no que também concordou minha pobre mãe, que vivia em nossa
companhia em Pardilhó.
Outra fotografia do tio do
Professor Egas Moniz. |
Dias de lágrimas, de minha mãe,
minhas e também do velho Abade no dia da despedida. Quis
acompanhá-lo ao embarque a Lisboa. Assistiu à largada do vapor,
seguindo-o até o perder no escuro do horizonte e descrevia a
cena com uma realidade impressionante, em que a saudade punha
lances de drama que todos vivemos em hora amargurada. Na sua
exposição simples e comovida havia passos de uma poesia íntima,
afectiva e dolorosa. Depois da ceia, meu tio continuou a
salmodiar o breviário e minha santa mãe levou-me para o
oratório, a fim de rezar à Virgem da Boa-Viagem para proteger o
Miguelzinho e a pedir que lhe desse sorte por terras de África
onde já tinha falecido meu pai. Procurava aliviar as suas
desgraças nas suavidades da crença em que se enlevava. Horas de
suprema angústia para a minha querida mãe, tão boa e tão
cruelmente experimentada pelas mais duras adversidades.
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Meu irmão era audacioso e forte.
Um pouco moreno, parecia-se mais com minha mãe. Era um
coramulano de músculo forte e tez amorenada. Empregou-se na
Beira, logo que chegou, e a vida corria-lhe regularmente. Mas
seduziam-no as caçadas aos leões e um dia foi mais longe com os
companheiros, em busca das feras. Informou um deles que meu
irmão abatera dois leões; mas uma fera prostro-o definitivamente
na selva muito longe da Beira, onde ficou sepultado à sombra das
palmeiras esguias em que o rumorejar das folhas ainda hoje reza,
no sopro das ventanias, pelo seu eterno repouso.
Falecera em Lobão meu tio
Augusto, o carinhoso padrinho de minha irmã Luciana. Não tardou
que minha mãe os acompanhasse. Faleceu com pouco mais de 50
anos. E da numerosa família apenas restava eu, como seu
representante, ao lado de meu bom tio Abade e do velho tio João
António, último sobrevivente de Lobão da Beira. Veio ver-nos a
Pardilhó. Aproveitei para os fazer fotografar e em grupo comigo,
última trindade dos Resendes.
Estava no quarto ano de
medicina, quando me faltou o meu tio Abade e queridíssimo amigo
que, acima de todos queria ressuscitado para ver a carreira que
pude percorrer devido aos seus estímulos pelo trabalho, pregão
constante com que me embalava, aos seus carinhos e ao seu
valioso e indispensável auxílio.
Deixou-me a Casa do Marinheiro
entre os seus haveres. Ninho abençoado, que recorda todo este
passado familiar e onde decorrera a vida inteira ao lado da
minha carinhosa Mulher, que tanto se afeiçoou à terra onde
nasci. Foi sempre o nosso melhor refúgio no redemoinhar de
alegrias e contrariedades da vida. Tudo devo a meu tio e
padrinho. Santo velho que trago sempre no meu coração, ao lado
dos meus pais, talvez mais alto ainda! E seriam estes que o
desejariam
/ 18 / ver mais elevado no altar dos meus melhores afectos.
Meu tio João António faleceu
três anos depois do Abade.
Em mim termina a estirpe, pois
não tenho descendência. Não sinto pesar por isso e só o
sentiria, se não tivesse arranjado solução de continuidade para
a nossa Casa do Marinheiro, onde guardo as minhas saudades e
afeições, Santo Graal onde luzem as altas virtudes – e tantas
foram – dos que mais amei na vida.
Estas evocações que o coração
ditou e ficam nestas páginas íntimas, vieram à colação por me
referir à Casa de Avanca. Era-me indispensável deixar escritas
estas impressões (1) de um passado que tenho sempre
presente, coisas por certo desconexas por acudirem à pena sem
sofrerem retoque ou correcção. Simples confissões íntimas,
retratadas em pinceladas duma forte tonalidade afectiva.
Panorama de uma época que só tem importância para a minha
sensibilidade. Recordo-a com prazer, e não raras vezes se me
humedecem os olhos no embevecimento de lembranças que só a mim
acalentam nas horas que vão passando. Quando me prendo a estas
recordações, entro numa espécie de êxtase em emotivo, vivendo o
sonho triste, mas reconfortante das pessoas queridas que
represento neste momento da existência. É provável que mais
tarde me abalance a fazer um volume sobre a família e a Casa do
Marinheiro. Espécie de autobiografia da idade infantil e
juvenil, se tiver tempo e disposição para ir tão longe. Por
agora ficam aqui exaradas umas notas preliminares que ficarão
arquivadas na Casa-Museu que espero as conserve, pois não valerá
a pena publicá-las».
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(1)
– O que aqui escrevi em 1947 foi o esboceto do meu livro «A
Nossa Casa», publicado em fins de 1950. |