Quase imediatamente a seguir à
concessão do Prémio Nobel, uma comissão de conterrâneos promoveu a
erecção de um monumento em Avanca, que veio a ser descerrado a 24 de
Setembro d 1950. A meio da pedra de granito, que se ergue perto da
igreja paroquial e de face para a estrada que leva ao Porto,
encontra-se a máscara brônzea do homenageado, admirável trabalho do
aveirense e advogado Dr. David Cristo. Por cima foi gravada a
legenda: – «A Egas Moniz», e no sopé: – «Aqui viu luz nova luz da
Humanidade» Na face posterior lê-se: – «Em 29 de Novembro de 1874,
na Casa do Marinheiro, perto desta memória, nasceu António Caetano
de Abreu Freire Egas Moniz – Médico, catedrático, cientista,
escritor, académico e estadista – De renome mundial – Por seus
excelsos méritos distinguido entre outros com o Prémio de Oslo e
Prémio Nobel de Medicina. 1949. – Ao Homem e ao Sábio, Avanca e
Pardilhó – 24-9-1950»
Assistiram à cerimónia, não apenas
muitas pessoas das freguesias que haviam tomado a iniciativa de
levantar o monumento, mas também inúmeros admiradores seus, quer do
concelho de Estarreja, quer de várias partes do País, vindos das
diversas camadas sociais; destacava-se entre todos uma deputação de
gente do Porto e das suas vizinhanças.
Falaram vários oradores, que
explicaram o significado daquele acto e interpretaram o sentimento
dos presentes; o povo, mesmo em manifestações festivas e ruidosas,
deu largas a um justificado regozijo. Por fim, o Professor Doutor
Egas Moniz tomou a palavra e, antes de agradecer, sobretudo
recordou. Eis o breve discurso, que é um pedaço do seu coração:
– «Minhas Senhoras, meus Senhores:
Quando em Junho de 1927 consegui ver
aos raios X, as artérias do cérebro, através dos ossos espessos do
crânio, tive um dos maiores deslumbramentos da minha vida.
Vira uma coisa que até ali ninguém
conseguira ver e, perante os meus olhos ávidos de inéditas
curiosidades, perpassou um panorama imenso de perspectivas em que
rodopiavam aspirações de novas descobertas que, pouco a pouco, se
foram transformando em realidade. Outras mais foram surgindo na
evolução dos trabalhos.
Logo que obtive a primeira
arteriografia cerebral, corri a Paris onde apresentei à Sociedade de
Neurologia e à Academia de Medicina da grande capital a minha
descoberta e onde alcancei a sua consagração.
Desenho de José Malhoa, oferecido ao
Professor Doutor Egas Moniz, quando regressou de Paris,
onde anunciou a descoberta da
angiografia.
A oposição dos colegas, em Lisboa,
começou a declinar, embora ainda me atordoassem os doestos de uns e
me impressionassem as reservas de outros.
Nessa altura, em princípio de
Agosto, vim para o costumado repouso da aldeia, e o povo de
Estarreja e Murtosa, com as suas figuras mais representativas,
presas ao entusiasmo de um sucesso que apenas se esboçava,
receberam-me e acarinharam-me festivamente.
Em todos os meus trabalhos
falharam-me, é certo, auxílios das estâncias superiores; mas tive,
desde logo, os incitamentos dos elementos populares que, conhecendo
vagamente as minhas canseiras e resultados, os cobriam de bênçãos e
de encorajamentos.
Nem todos os que me escutam podem
calcular o que foi a minha labuta, as escarpas que tive de subir, as
veredas pedregosas que tive de calcorrear, as incertezas e as
decepções a vencer, o trabalho interior de horas intermináveis de
meditação, muitas passadas nesta aldeia, e também os momentos de
suprema ventura, que nenhuns outros igualam, de ter arrebatado ao
desconhecido uma nova verdade, um novo facto.
Com a descoberta da angiografia
cerebral alcancei muitas provas de consideração aqui e sobretudo no
estrangeiro. Em 1945 deram-me o prémio de Oslo que, pela primeira
vez veio para um estrangeiro, prémio modesto, mas vindo logo em
seguida à guerra mundial e dum país – Noruega – que tinha sofrido as
agressões violentas de Hitler que a espezinhou. Quero, neste momento
de grande satisfação, saudar o nobre povo escandinavo, modesto e
generoso, de território alcantilado e ingrato, mas de gente
destemida, que uma auréola de justiça hoje ilumina e cobre!
De espírito insaciado, não cruzei os
braços sobre a obra da angiografia cerebral que hoje corre divulgado
em volumes publicados em alemão, inglês, francês, italiano e
espanhol, e que se pratica em todas as clínicas neurológicas do
mundo.
Muito tempo, cerca de três anos,
andei preso à preocupação de poder cirurgicamente alterar as ideias
mórbidas de alguns doentes mentais. Quantas sombras rondaram no meu
cérebro em torno deste fulcro fundamental! Estudo da constituição do
cérebro, das suas células de intrincada contextura, neurónios e
células gliais, da sua fisiologia e das suas alterações patológicas.
Fui assentando noções, precisando factos, chegando a algumas
conclusões.
Ligados às conexões neuronais, às
fibrilhas e sinapses, aos influxos a redemoinharem em correntes,
observadas ao galvanómetro, através do tecido nervoso... tivemos um
dia o pensamento redentor. Nos loucos, com ideias fixas, essas
correntes de influxos devem fazer-se em circuitos mais ou menos
fechados. Se interrompêssemos as correntes dos influxos, estas
deviam seguir outro caminho. Podia alterar-se o curso das
/ 9 / ideias mórbidas. A cura
devia produzir-se. E não hesitei. Com a prudência que exigem
tentativas dessa ordem, fizemos, o Prof. Almeida Lima e eu, a
primeira operação. Depois outra e outras. Nenhuma morte. Verificamos
ao fim de 20 casos operados – alguns desses doentes asilados durante
muitos anos! – que tínhamos alcançado 1/3 de curas, 1/3 de melhoras,
ficando 1/3 no mesmo estado.
Destes resultados dei conta em
volume publicado em Paris. Estava lançada a operação da Leucotomia
prefrontal. Logo divulgada, principalmente em Itália, tomou notável
incremento na América do Norte, a ponto de tomarem a iniciativa, com
o Prof. Walter Freeman na vanguarda, ilustre psiquiatra americano
que ainda aqui esteve, de visita, no penúltimo sábado, de realizar,
em Lisboa, um Congresso Internacional de Psico-Cirurgia a que
concorreram representantes de 27 países, talvez facto inédito na
vida de um cientista. Foi o alvorecer de uma esperança a iluminar as
enfermarias baças e perturbadas dos Hospitais de Alienados e Asilos,
donde já têm saído libertados, curados ou muito melhorados, alguns
milhares de prisioneiros da loucura.
A este sucesso, um outro país
escandinavo, a grande Suécia, concedeu-me o Prémio Nobel, o mais
categorizado do mundo, razão desta homenagem e da ruidosa
manifestação que vêm de fazer-me.
As minhas ambições nunca subiram tão
alto! Nunca esperei que me concedessem a mais alta distinção a que
os cientistas podem aspirar – o Prémio Nobel!
Ecoou em todo o país a boa nova,
agitando a classe médica e alvoroçando o povo português.
Todos sentiram a honra que eu trouxe
a Portugal; mas foi o clamor uníssono das classes populares que mais
generosamente me tem acarinhado.
Hoje é a gente do Porto e seus
arredores que vem saudar-me à minha aldeia natal, mostrar o seu
entusiasmo pelo meu triunfo e averiguar a sua crença na grandeza de
Portugal e da sua raça. Já não há mais terras a descobrir, nem mais
mares, nem mais céus, na frase de Pedro Nunes, o que foi glória dos
nossos antepassados. Mas surgem as aspirações no campo imenso da
ciência, onde se apresentam perspectivas para outros
empreendimentos. E hoje só é grande o povo que marca o seu lugar na
investigação científica.
Do coração lhes agradeço, amigos do
Porto e arredores, esta romagem, que quiseram assinalar trazendo-me
uma placa comemorativa, e entregando-me um mensagem em pergaminho
que fica entre aqueles que mais estimo, considero e aprecio.
As minhas aldeias de Avanca e
Pardilhó, uma em que nasci e outra em que aprendi as primeiras
letras, aldeias que, no passado, estiveram unidas e juntas,
continuam na minha afectividade, quiseram concretizar a sua amizade
num monumento que, pela concepção e grandeza, mais me perturba do
que me envaidece.
É obra-prima do artista-nato, Sr.
Dr. David Cristo, de Aveiro, cujo talento e cuja técnica estão
postos à admiração do público.
O homenageado não merecia tão grande
honra; mas sinto-me, em parte, compensado por ter revelado ao
público o talento de um grande artista, a ocultar-se na modéstia do
seu trabalho de escultor e pintor, e que carece de ser conhecido do
país. Arte magnífica que tem guardado apenas para si! Quebramos-lhe
o incógnito! O seu talento, o seu notável valor artístico, não lhe
pertence, mas sim a Portugal!
Aos meus conterrâneos de Avanca e
Pardilhó, não tenho palavras para agradecimentos. De há muito andam
estereotipadas, tão repetidas têm sido. Às vezes falam mais os olhos
que a linguagem. Já me conhecem a fraqueza que hoje não se repete.
Seria vergonha; há gente de fora.
Citarei as juntas de Avanca e
Pardilhó os seus presidentes, e amigos dominantes e dinâmicos das
duas freguesias.
Não cito nomes, eles sabem bem o
lugar alto em que os tenho entre os melhores afectos.
Direi como o estudante alsaciano
francês, quando o mestre alemão lhe pergunta onde estava a França: –
Aqui dentro, aqui dentro é que estão, e de há muito, os amigos
queridos das minhas aldeias, que sempre me têm acompanhado nas
vicissitudes da vida.
Veio assistir a esta festa gente
grada do distrito e de fora dele! De Aveiro o escol da sua
intelectualidade; do país, companheiros de trabalho, que de longe se
deslocaram, amigos, entusiasmas e admiradores. A todos rendo o meus
melhores agradecimentos.
O Dr. David Cristo quis
imortalizar-me! A máscara magnífica que me modelou, Sr. Dr. David,
há-de sorrir-lhe sempre que aqui passe – já assim lhe ordenei, para
lhe mostrar o meu muito reconhecimento e imperecível gratidão.»
(24 de Setembro de 1950)
O Professor Doutor António Caetano
de Abreu Freire Egas Moniz viria a falecer a 13 de Dezembro de 1955.
Porque era dotado de um espírito inquieto e altruísta, conseguiu ser
extraordinariamente útil à Humanidade. Em horas de íntima
confidência com amigos, dizia-se contente por ter trabalhado alguma
coisa pelo bem dos homens.
Alguma coisa... – afirmava ele com
humildade; mas, a chispa do seu génio de cientista foi luz
incandescente e não fogo-fátuo. Vale a pena o esforço que se faça
pela felicidade dos outros. |