/ 32 / «É bem
certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós
próprios. Não somos hoje o total que fomos ontem, nem teremos
amanhã, integralmente, o nosso mundo de agora. Eu sinto isto muitas
vezes, num apelo ao meu eu de outrora, numa busca minuciosa entre os
escombros do que fui e os pilares que ficaram de pé, a sustentar o
que sou. Mas só a memória responde. Com ela, agora e logo,
ressuscita também um longínquo estado da sensibilidade, um pormenor
que não teve valia momentânea, mas que ficou em relevo, com a sua
luz própria e o seu verdadeiro aspecto.
Quando um final de infância agitado
me levou ao Amazonas, a minha aldeia nativa, aqui, em Portugal, de
tão distante e envolta em nostalgia, parecia-me uma ilusão. Só os
carimbos das cartas recebidas me traziam a certeza de que não fora
apenas um sonho a minha vida até esse momento – de que o berço
existia, florido, atraente, para lá da selva, para além do
Atlântico.
Hoje dá-se o inverso. Muitas vezes,
ao evocar a minha estadia na plaga ardente, pergunto, duvidoso, a
mim próprio:
– Mas eu de facto, estive lá?
Está nítido na minha retina o
panorama soberbo, está nítida no meu espírito a vida miserável, mas
tudo isso me parece visto e vivido numa outra encarnação. Não é,
porém, assim. Estão aqui, amarelecidos pelo tempo, os papéis onde
tracei as minhas impressões de adolescente – as minhas primeiras
impressões ante o mundo novo, bárbaro e assombroso, que se me
revelava.
Sim fui eu...»
FERREIRA DE
CASTRO
(Do PÓRTICO de a SELVA) |