Remonta à primária existência do
homem na terra, o culto dos mortos e as suas oferendas fúnebres.
Culto que até hoje se tem
inalteravelmente mantido com o seu carácter sério, carinhosamente
humano, profundamente brotado de sentimento saudoso, votivo e
telúrico.
São estas as características que nos
revelou a visita que, há mais de um mês, fizemos, em Altamira,
Espanha, à exposição de A Sombra de um Homem da Idade da Pedra,
em que junto da cabeça do homem enterrado se encontra um animal em
posição encurvada de maneira que as patas dianteiras se prendem às
traseiras, como, ainda hoje, se leva singularmente os cordeiros para
a feira ou mercado.
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Aguardando a organização do enterro,
as oferteiras têm os cestos nas mãos esquerdas, em sentido de
oferta. |
A existência deste animal, sepultado
juntamente com o homem, nessa antiquíssima CUEVA MORIN, Província de
Santander, há mais de 29 000 anos, e cuja descoberta constituiu um
dos fenómenos raros e felizes que é concedido, providencial e
excepcionalmente, a alguns estudiosos pré-historiadores, vem
demonstrar que o homem desde sempre «teve determinadas formas de
tratar os seus mortos e os seus lugares especiais»
(2) e que os
costumes, ritos e formas de sepultar os mortos, actualmente
existentes e, que lentamente se vão modificando e desaparecendo,
deixam de ser velhos, embora sempre expressivos, perante o
descobrimento desta sepultura pré-histórica do Homem de Morin.
J. Gonzalez Echegaray, no seu
curioso estudo La SOMBRA de un CAZADOR de La EDAD de PIEDRA, afirma
que «Possivelmente, esta oferta foi colocada na sepultura, para
assegurar uma provisão de caça ou de alimento ao espírito do caçador.»
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Um rito próprio de enterramento foi
também descoberto, comparando várias sepulturas da mesma Cueva
Morin. Em todas se notaram que as pernas dos mortos se encontravam
afastadas e a cabeça, que devia estar ligada ao pescoço e este ao
tronco, estava perfeitamente também separada.
Houve, portanto, um rito especial de
enterramento do homem pré-histórico e o mesmo estudioso Gonzalez
Echegaray, afirma: «Todos estes indícios sugeriram que os
sepultados neste sítio, foram mutilados post mortem. Cremos
inclusivamente, ao achar o machado de pedra junto do morto, ter
encontrado o objecto com que foi decapitado. Trata-se de uma peça
rude achada junto ao pescoço do Homem Morin I».
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«Uma mutilação parecida post
mortem dos cadáveres se pratica ainda hoje, em algumas
sociedades primitivas, para impedir que o espírito do defunto volte
a rondar a comunidade onde viveu.»
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Uma oferteira que amavelmente nos
mostrou o milho e o tamanho da toalha que cobre o cesto redondo
de verga. |
Caso idêntico verificámos, em
África, em 1959, quando, assistindo a um enterro indígena, no mato,
numa das margens do Rio dos Bons Sinais, Quelimane, Moçambique,
vimos os nativos a sepultar caneca, pratos, panelas, utensílios
caseiros e particulares da morta na mesma cova, e os condutores do
caixão a esfregar os corpos com uns pedaços de ervas secas, fervidos
numa panela junto à campa da morta, para que a doença e o seu
espírito não se apegasse aos seus corpos.
Neste apanhado histórico, à guisa de
preâmbulo, nota-se que, desde o início da existência humana na
terra, houve um rito nos enterramentos dos mortos: – corte
das pernas e da cabeça, para que o espírito dos mortos, na
imaginação dos povos, não vagueasse entre os vivos; Oferenda
fúnebre: – na existência da gazela, cabrito ou rebeco, (como é
chamada nos Montes Cantábricos, Espanha, a cabra brava) junto ao
homem caçador, para que o seu espírito se alimentasse e a sua
memória perdurasse na lembrança dos vivos; sinal sobrenatural ou
crença em valores espirituais: – na separação das pernas e da
cabeça, para que a imortalidade do seu espírito não se servisse dos
órgãos vitais da comunicação social. E na existência do machado,
pertença própria e sua defesa, na última morada.
Fizemos este resumo e fomo-lo buscar
à primeira civilização humana – a Idade da Pedra – para expor o
CORTEJO das OFERTEIRAS ou AS OFERTEIRAS, ainda existente na
Região de Vale de Cambra, especialmente na freguesia de S. Pedro de
Castelões, afirmando que se desconhece a era, a data, concretas em
que começou tão regional costume de homenagear os mortos e de
conservar a sua memória.
Costume imemorial,
acentuou o actual Prior de S. Pedro de Castelões, P. João Martins
das Neves e que, na nossa pobre opinião, mergulha nos primórdios da
existência humana, desde que o homem começou a dar morada digna e
respeitosa aos seus defuntos e a ter consciência do seu destino
eterno.
O desfile das Oferteiras de S. Pedro de
Castelões, a caminho da igreja paroquial.
As Oferteiras dispõem-se, à frente
dos funerais, em fila indiana, precedidas do rapaz da campainha. Em
número ilimitado, dependendo somente do consentimento da família e
da possibilidade de conseguir, no Lugar ou na Freguesia, donzelas
disponíveis para isso.
E assim se chama a este desfile das
raparigas nos funerais, O Cortejo das Oferteiras.
Não há na escolha e no convite
qualquer exigência social ou económica, apenas serem solteiras,
reputadas de boa fama e com a idade máxima de 25 anos. Até há pouco
tempo existia o costume de o número ser ímpar (pernão, como diz o
povo) – costume que por se julgar eivado de superstição, se procurou
evitar.
Vestidas rigorosamente de preto,
desde os sapatos ao lenço da cabeça, com saia, blusa, xaile fino
(tipo varina), manta ou véu preto.
O pequeno cesto de varas redondas,
coberto inteiramente pela toalha de linho branco, pousado na rodilha
branca sobre a cabeça, sobressai perfeitamente em todo o conjunto
fúnebre, dando um tom de pura saudade e bela homenagem aos mortos
que vão a sepultar. Esta toalha existia, outrora, em todas as casas,
servindo primeiramente para os baptizados das famílias. O milho que
leva o cesto é oferecido pelas pessoas amigas, vizinhos e parentes
e, no seu conjunto deve dar um alqueire, em enterro de adulto, e
meio alqueire, em enterro de anjinho. Primitivamente, eram duas
boroas de milho que se destinavam aos pobres.
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A renda da toalha é disposta de uma
maneira especial, cobrindo toda a boca do cesto que leva o milho e
fica pendente das abas, não permitindo ver-se qualquer parte das
varas redondas de que se compõe o cesto.
Esta oferta, apresentada de uma
maneira airosa e cheia de simbolismo, na pungente hora de luto e dor
que a todos impressiona, é uma nota de alva candura e significativa
manifestação de condolência amiga.
Tem um cerimonial próprio,
desfilando, uma após outra. As oferteiras são senhoras de expressivo
silêncio ou rezam o terço durante todo o caminho do enterro.
Ao chegarem à igreja, retiram os
cestos da cabeça e seguram-no, em modo de oferta, no braço esquerdo.
Ajoelham diante da tarimba aos pares. Colocam os cestos no chão. E
assim se conservam, enquanto se rezam os responsos finais no templo.
Terminadas as orações litúrgicas e
enquanto retiram o morto da igreja com todo o restante povo para o
cemitério, as oferteiras vão deitar, numa pequena tulha numa
dependência da casa de Deus, o milho que traziam nos cestos.
A propósito, convém dizer que
existia numa freguesia da região de Vale de Cambra, supõe-se que em
Macieira de Cambra, uma casa a que chamavam Tulha, que servia de
armazém dos cereais que os frades de Santa Cruz de Coimbra recebiam
do povo, quando esta região dependia religiosamente do antigo e
célebre Mosteiro conimbricense, que, como se sabe, é dos primórdios
da nacionalidade portuguesa.
Depois juntam-se de novo, no mesmo
lugar, aguardando a chegada do sacerdote que acompanhou o funeral ao
cemitério. Beijam a estola e rezam em conjunto o Pai-Nosso. Em
tempos de mais fé, cada uma das oferteiras rezava a oração
dominical. Após a recitação colectiva desta oração, retiram-se para
casa.
Mas não fica só por esta pública
homenagem aos defuntos. No domingo seguinte, volta uma só oferteira
à igreja, com o cesto coberto da mesma forma, trazendo-o no braço
esquerdo, com pão e vinho. Actualmente bolachas e uma garrafa de
vinho fino.
Apresenta-se vestida impecavelmente
de preto como no cortejo do funeral.
A sua presença, no meio da
assistência à missa paroquial, gera uma vivência de sentida e
respeitosa recordação dos recentemente falecidos, que pela lei
inexorável foram arrebatados do seu convívio.
Aproxima-se do altar-mor, pousa a
oferta no chão, ajoelha-se e espera assim, até ao fim da missa
paroquial. É uma viva presença de saudade que, há poucos dias, a
grei prestou com o seu cortejo, ao levar para o cemitério os
recém-falecidos, e que ali se encontra, palpitante, prestando a Deus
dos vivos e dos mortos, a sua adoração e os seus rogos.
O sacerdote, no final, abeira-se da
oferteira que, segurando na mão esquerda uma vela acesa, com a mão
direita vai recebendo e lançando, numa salva, as ofertas que lhe
deram, para ali pública e devotamente rezar pelos mortos. Outrora,
as pessoas também assistiam, mas actualmente deixam isso à oferteira
e ao sacerdote.
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Terminadas as orações, a oferteira
levanta-se e leva a casa do Prior a oferta que foi dada pela
família.
Este pequeno rito é chamado Segundo
Ofertório, que ainda se encontra em uso em quase todas as freguesias
da região. Em Macieira de Cambra este ofertório é apresentado em
forma de torre, com a toalha armada ao redor da garrafa e por cima
das bolachas que o cesto contém. Nas freguesias de OsseIa e Nogueira
do Cravo, do Concelho de Oliveira de Azeméis, circunvizinhas da
região de Vale de Cambra, também existe este costume. Nesta última,
oferece a família uma carreira de pão (o conhecido pão de UI), uma
garrafa de vinho comum e uma galinha, ao Pároco da freguesia.
O Cortejo das Oferteiras e o Segundo
Ofertório já não existem em todas as freguesias. Conservam-se ainda
nos nossos dias, com insignificantes modificações e com certa e
razoável pureza, na de S. Pedro de Castelões.
Desconhecendo-se a exacta origem
deste aparatoso e público modo de homenagear e lembrar os mortos,
parece-nos que sai espontânea e naturalmente dos nobres e superiores
sentimentos da natureza humana.
Não será ousado, com certeza, ver no
Cortejo das Oferteiras a repetição mais perfeita e mais profunda e
religiosamente humana, do rito, da oferenda e da crença que
encontramos no valioso achado do Homem da Idade da Pedra da Cueva
Morin, em Espanha.
Rito: – na maneira de enterrar os
mortos, acorrendo pública e colectivamente com os seus bens e com a
parte mais sã, pura e atraente da sua idade – as donzelas –,
pondo-as em desfile, em homenagem aos seus mortos.
Oferenda: – na oferta do pão ou do
milho, para que no valor destes as suas almas sejam lembradas e
socorridas pela fé e sentimentos fraternos de todos os que os
conheciam.
Crença: – na recitação das orações
durante o funeral, na igreja e na missa do povo.
_______________________
NOTAS
(1),
(2) e
(3) – Trabalho,
La Sombra de un Cazador de La Edad de Piedra, de L. G. Freeman e J.
Gonzalez Echegaray, págs. 12, 7 e 12, edição do Museu de Prehistoria
e Arqueologia, Santander, 1972.
(4)
– idem, pág. 18. |