O Padre Serafim Leite nasceu em S.
João da Madeira, em 6 de Abril de 1890. Depois de frequentar alguns
anos o Seminário dos Carvalhos, no Porto, embarcou para o Pará e
dedicou-se ao comércio no Amazonas. Aí trabalhou como caucheiro,
convivendo muitos anos com os índios do Alto Rio Negro, selvícolas
de Padaneri e do Rio Vaupes, aprendendo a sua língua geral, a mesma
que os índios falavam no tempo de Anchieta e Nóbrega.
Em 1914 entrou para a Companhia de
Jesus. Tendo cursado Letras Humanas, em Múrcia, Filosofia em
Granada, Espanha, e Teologia em Enghien, Bélgica, completou a sua
formação religiosa e ascética em Paray-Ie Monial, França, e
professou, solenemente, em 1932. Neste mesmo ano, meteu ombros à
composição da «História da Companhia de Jesus no Brasil», obra
monumental em vários volumes.
O Secretariado de Propaganda
Nacional atribui-lhe o Prémio Alexandre Herculano, de 1938. Três
anos antes, no Concurso Histórico de S. Paulo, fora conferido o
primeiro prémio ao seu estudo sobre «Os Jesuítas na Vila de S. Paulo
(século XVI)». No género histórico, publicou, ainda, outros
trabalhos muito apreciados, entre os quais «Alão de Morais» (1929),
«Páginas da História do Brasil» (1937), «Novas Cartas Jesuíticas de
Nóbrega a Vieira» (1940), bem como muitos artigos dispersos por
revistas portuguesas e estrangeiras.
Reconhecendo os altos méritos de
historiador de Serafim Leite, a Academia Portuguesa de História
nomeou-o seu sócio honorário. Pertencia, igualmente, à Academia
Brasileira de Letras, à Academia de História do Equador e era sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de
Janeiro, sócio benemérito do Centro D. Vital, do Rio de Janeiro,
membro do grupo português da Academia Internacional da História das
Ciências, secção de Lisboa, e fez parte da direcção do Instituto
Português de Arqueologia, História e Etnografia.
Foi ainda membro da Comissão
Orientadora da Exposição Histórica da Ocupação e do Congresso da
História da Expansão Portuguesa no Mundo, realizado em Lisboa, em
1937, e membro da Secção do Congresso Luso-Brasileiro, nas
comemorações do duplo centenário (1939-1940).
Pelos serviços então prestados, o
Governo Português condecorou-o, em 1938, com o grau de comendador da
Ordem Militar de Santiago da Espada, Mérito Artístico, Científico e
Literário. Dois anos depois, o Governo Brasileiro conferiu-lhe a
comenda da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Era ainda doutorado
«scientiae et honoris causa», pela Universidade do Rio de Janeiro
(1949), e pertencia, desde 1950, à Gallery et Living Catholic
Authors, dos Estados Unidos.
Residia em Roma desde 1949, no
Instituto Histórico da Companhia de Jesus, entregue aos seus
trabalhos de investigação e à publicação de documentos relativos à
história da Companhia no Brasil, para a secção brasileira,
«Monumenta Brasiliae», da colecção «Monumenta Historica Societatis
Iesu».
É vastíssima a bibliografia do
saudoso finado. Em 1962, publicou-se em Roma uma «Bibliografia de
Serafim Leite, S. J.» e já então se registavam, ali, 277 trabalhos,
entre os quais algumas novelas e contos, poesia e estudos sociais,
publicados em diversas revistas e, alguns, reunidos em volume, como:
«lIuminuras» «NoveIas), Lisboa, 1930; «Trajectórias» (1931) e «Do
Homem e da Terra» (1932), poemas; «A Retribuição do Trabalho»,
Porto, 1933 e 1937, etc.
/
30 / A par da sua
colaboração em revistas e da sua actividade científica, Serafim
Leite publicou, ainda, diversos artigos no jornal «Novidades», em
1928-29, com o pseudónimo Mário Victor, e pregou retiros espirituais
e prestou serviços em associações de piedade.
Com a morte do ilustre historiador,
perdeu a cultura portuguesa um dos seus elementos mais prestigiosos
nos domínios da História. Dele escreveu, há anos, o prof. Robert
Ricard, da Faculdade de Letras do Universidade de Argel:
«Serafim Leite possui um excelente
conhecimento da bibliografia hispano-americana. Não sabe apenas o
que se publica em Portugal e no Brasil, sabe, também, o que se faz
na Espanha, na Argentina e no México, visão amplamente ibérica e,
por isso mesmo, autenticamente católica. E como a isto junta
perfeita serenidade de expressão e discernimento, é guia que se pode
aceitar com toda a confiança.»
*
* *
Em Lisboa, quando se soube da
atitude do bispo da Baía, D. Pedro Fernandes, logo se compreendeu
que o superior da Missão do Brasil devia ser prelado sui iuris,
com os poderes que conferem aos provinciais o direito canónico e as
bulas pontifícias. Tornava-se urgente a elevação da Missão do Brasil
a Província. O provincial de Portugal, que era já o P.e
Miró, comunicou a Nóbrega todos os seus poderes, propondo o caso ao
geral. Santo Inácio aprovou: «o que V. Rev.ª ordenou no Brasil dando
os seus poderes todos ao P.e Nóbrega, isentando-o da
obediência do Bispo, tudo está bem»
(1). A patente enviá-la-ia ele
depois, a 9 de Julho de 1553, e nela Santo Inácio já tinha em vista
a ida de Nóbrega aos Carijós do Paraguai, porque o nomeia provincial
da Companhia de Jesus não só «na Índia do Brasil, sujeita ao
Sereníssimo Rei de Portugal», mas também «noutras regiões mais além»
(2) A «Índia
do Brasil» era a América Portuguesa; as outras regiões «mais além»,
a América Espanhola. A patente de Santo Inácio constituía Nóbrega,
praticamente, primeiro provincial da Companhia de Jesus não só no
Brasil, mas na América. Santo Inácio, por si ou por seu secretário
Polanco, mandou-lhe as instruções do que se costuma consultores, e
maneira de escrever para Roma, em que não se deviam misturar
assuntos internos da Companhia de Jesus com notícias de edificação,
pois estas seriam mostráveis a pessoas de fora
(3).
Escrevendo a Santo Inácio, Nóbrega
agradece a profissão solene (requeria-se para ser provincial), que
ainda não fizera por não haver no Brasil nenhum professo, nem na
Capitania de S. Vicente nenhum prelado; e diz que o Brasil é
acomodado para colégios, terra sã, que poderiam ser enfermarias de
toda a Companhia. Ele não sai da Capitania de S. Vicente, em que se
encontra agora, porque não tem padre capaz a quem encomende os
irmãos que nela residem. Em Assunção do Paraguai devia haver casa da
Companhia em união com as do Brasil. Espera o P.e Luís da
Grã para decidir. Importa alcançar-se dispensa de todo o direito
positivo para o casamento cristão de índios e mestiços. Quanto a si
mesmo, já tinha mandado pedir ao provincial de Portugal que o
dispensasse do ofício de superior; o padre-geral, se conhecesse «as
muitas minhas faltas e erros, que faço cada dia no que me está
encomendado», não me daria o cargo – diz ele; e pede pelas entranhas
de Cristo que nomeie outro.
(4)
Quanto ao Paraguai, Luís da Grã, ao
chegar a S. Vicente, manifestou-se contrário tanto à ida de Nóbrega
como à sua própria
(5); e de Lisboa deram instruções a Nóbrega que como
Provincial devia residir na Baía, capital do Estado do Brasil, para
«dar princípio a um Colégio»; e para esse fim, nessa cidade, já a 6
de Junho de 1555 se esperava «cada dia» a volta de Nóbrega
(6).
Faltava a profissão solene. Ao
concedê-la a Nóbrega, dizia Santo Inácio que, não existindo nenhum
religioso professo no Brasil, ele a poderia fazer diante de algum
prelado como outros muitos a fizeram na Europa
(7). Não havendo esperanças da ida
do Bispo D. Pedro Fernandes a S. Vicente e tendo Nóbrega de se
separar de Luís da Grã, que também devia fazer a profissão, Nóbrega,
como bom jurista aplicou o caso: ele, como prelado que era da
Companhia, recebeu a de Grã no dia 26 de Abril de 1556; e Grã logo a
seguir, já como professo, a de Nóbrega
(8).
O provincial torna a escrever a
Santo Inácio e insiste pela vinda de Roma de dispensas pontifícias
matrimoniais, de consanguinidade, afinidade e honestidade pública, e
sobre a dificuldade de aplicar o direito canónico aos gentios já
casados, que se convertem, por não se terem casado antes com a
intenção de viverem juntos para sempre. A resposta de Roma ao
insistente pedido de dispensas matrimoniais demorou, mas veio cabal,
ainda em tempo de Nóbrega, e se verá adiante no seu lugar próprio.
Por agora, Nóbrega vai para a Baía muito doente. Espera achar já aí
novo provincial, para poder descansar um pouco e porque se lhe vai
acabando o triénio de governo
(9). Escreve também ao P.e
Miguel de Torres outra carta, quase toda sobre a educação de meninos
e órfãos e como desejaria que o Colégio de S. Paulo de Piratininga
fosse colégio fixo, sugerindo como se poderia manter; e o Colégio da
Baía, se el-rei o fizer, deve ter renda certa, e «para sempre», dos
«dízimos» do Brasil ou do «tesouro» real
(10).
/ 31 /
Nóbrega saiu de S. Vicente para a
Baía a 23 de Maio de 1556. Acompanharam-no o P.e
Francisco Pires, o Irmão António Rodrigues e mais dois irmãos.
Levava as Constituições da Companhia, recém-chegadas ao Brasil, que
ele declarou nas casas das Capitanias. Na do Espírito Santo demorou
quinze dias, mandou o Irmão António Rodrigues que chamasse os índios
da vila com uma campainha e lhes fizesse a doutrina primeiro em
português e depois em tupi. Segundo as Constituições, os meninos
(mestiços e índios) não podiam viver em casa com religiosos da
Companhia. Ordenou que se colocassem noutra separada, junto à nossa,
com um curador leigo (Francisco Vaz). Saindo do Espírito Santo, o
mau tempo obrigou-o a arribar a 10 léguas da vila. Seguiu viagem e
na Capitania de Porto Seguro continuou o mesmo exercício, mandando
os irmãos pelas povoações, incluindo Santo Amaro e ajuda; e, tanto
no Espírito Santo como em Porto Seguro, com grande fervor dos
moradores, sobretudo índios e índias
(11).
Chegando à Baía a 30 de Julho, disse
a uma família da cidade que se ia organizar agora um colégio onde se
poderia estudar tão bem como em Portugal e com menos trabalho e
menos custo do que indo ao Reino
(12). Nóbrega achou novo
governador, D. Duarte da Costa, ao qual pediu duas coisas
conducentes à conversão do gentio: aldeamentos (reunião de aldeias
pequenas em aldeias grandes de catequese) e proibição de comer carne
humana (13).
Pela festa de Nossa Senhora da
Assunção (15 de Agosto), ordena o provincial que aos meninos índios
catecúmenos os baptize o P.e João Gonçalves, que nesse
dia celebrava a primeira missa; e no fim da festa os padres
abraçaram os meninos baptizados «não como a servos e estranhos, mas
como a filhos de Deus», com inexprimível regozijo de toda a terra
(14).
Começa a fundação das aldeias.
Primeiro, a do Rio Vermelho (arredores da Baía), tarefa que Nóbrega
incumbe ao Irmão António Rodrigues, homem que já tinha dado as suas
provas em Piratiniga e com o dom de atrair os índios, que o seguiam
de bom grado dizendo que ele lhes «lançava o coração pela boca». O
provincial diz a primeira missa na aldeia. Festa com cantos e
flautas (15).
Funda-se a Igreja de S. Sebastião
(aldeia do Principal Tubarão); nela também Nóbrega celebra a
primeira missa com idêntica solenidade à do Rio Vermelho
(16), à qual se
liga a primeira noção das casas de campo colegiais no Brasil.
Nóbrega manda os meninos do Colégio da Baía passar as férias grandes
na aldeia do Rio Vermelho, praia do mar, onde se demoram os meses de
Novembro e Dezembro, entremeando o descanso com o ensino dos filhos
dos índios (17).
Foi talvez neste remanso do Rio
Vermelho, em todo o caso depois da sua volta de S. Vicente e antes
da chegada do governador Mem de Sá, que Nóbrega escreveu o Diálogo
sobre a Conversão do Gentio, primeira obra propriamente literária do
Brasil. Pensamento fundamental: os gentios são capazes de se
converter em direito, porque são homens, e de facto porque muitos já
se converteram. Questão de educação e cultura. E também de graça de
Deus em chegando a hora de se converterem. O que urgia era criar
circunstâncias externas que facilitassem a obra da graça, num regime
de autoridade paterna, sobretudo com a educação dos meninos
(18).
Se a conversão do gentio ocupava o
pensamento de Nóbrega, os moradores não o preocupavam menos. Fechou
as portas da confissão aos que, ou por viverem em concubinato
público ou por possuírem escravos injustamente comprados, não podiam
ser absolvidos. Se outros de fora da Companhia os absolviam, era com
descrédito da religião e dos sacramentos
(19). Também alguns moradores
começaram a meter-se nas terras dos índios com grave inconveniente
para a justiça e a conversão do gentio, que se retirava para mais
longe, onde não poderia ser catequizado. Na Baía, já se aguardava
novo governador (Mem de Sá), e Nóbrega também espera novo provincial
(20). Noutra
carta de 1557 trata Nóbrega da situação da Companhia de Jesus no
Brasil, educação e conversão; e insiste na necessidade de se
fortalecer e segurar a Companhia de S. Vicente, propondo que os
homens do Campo se ajuntem todos em Piratininga
(21). De Maneira que o P.e
Luís Gonçalves da Câmara, escrevendo ao geral Diogo Laines,
concretiza em dois os pontos essenciais do Brasil, segundo a mente
do P.e Nóbrega: que vão para o Brasil tantos portugueses
que façam guardar ao gentio a lei da natureza; basta que os gentios
sintam que os portugueses têm força, para os seguirem. O outro ponto
é que se façam muitos colégios para a educação dos meninos
(22).
___________________________________
NOTAS
(1)
– BN 102.
(2) – ME I 508.
(3) – ME I 509-513 519-520.
(4) – CN 192-201; ME II 164-172.
(5) – BN 116; CN 258; MB II
362-403.
(6) – MB II 230.
(7) – MB I 511.
(8) – CN 204; MB II 276.
(9) – CN 205-206; MB II 275-278.
(10) – CN 207-215; MB II 278-285.
(11) – MB II 298-301.
(12) – MB II 311.
(13) – CN 332; MB III 84.
(14) – MB TI 349-350.
(15) – MB II 350-351.
(16) – MB II 353-355.
(17) – MB I 353.
(18) – CN 215-250; MB II 317-345.
(19) – MB II 433-434.
(20) – CN 250-259; MB II 396-404.
(21) – CN 260-279; MB II 404-419.
(22) – MB II 420-421.
Do livro: «Suma Histórica da
Companhia de Jesus no Brasil» |