PRÓLOGO
(Logo que a orquestra termina a
abertura, a personagem Tainha, envolta numa capa de estudante, surge
em frente do pano de boca, faz vénia e fala)
Senhoras, Senhores:
A revista que ides ver, interpretada
por alunas e alunos do liceu desta encantadora cidade, não tem
escabrosidades que possam envergonhar-vos, nem crítica que vos faça
corar. Ligeiras e amigas referências a pessoas; benévolos piparotes
a factos da actualidade; em suma, riso bonacheirão para pessoas e
coisas de Aveiro – é o que ela vos apresenta. – A interpretação é
que deve ficar muito aquém da vossa expectativa; mas nós, os
estudantes, já estamos habituados à vossa benevolência e com ela
contamos hoje. Para a vossa estada aqui, vai a expressão sincera do
nosso mais profundo respeito. – E, como os antigos Gregos e como os
antigos Romanos, pedimos a Vossas Excelências, ao correr do pano no
último acto, meia dúzia de palmas, que nos sirvam de perdão ao
imperfeito trabalho que vamos apresentar-vos. Valete,
senhoras minhas! Valete, meus senhores! (Faz vénia e
retira-se. Sobe imediatamente o pano).
ACTO I
Espaçosa sala de hotel, armada em
sala de recepção. À direita, cadeira de espaldar sobre um pequeno
estrado. Mobiliário onde convier. Flores. Ao fundo, em letras bem
visíveis, este dístico: Aveiro, terra de encantos. O começo
do acto é ao anoitecer. A certa altura, luz eléctrica.
ZÉ: (Trata da ornamentação da
sala, mas devagar e com visível aborrecimento. De vez em quando,
suspira.
Ouve-se fora, uma fanfarra, em
marcha marcial. Estralejam foguetes. Entra Tainha, muito bem posto
nas suas vestes da Beira-Mar: botas de borracha, fato domingueiro,
chapéu mole, grossa corrente.)
TAINHA – Tudo pronto?
ZÉ – Estava dando os últimos
retoques, Excelência, para o adorno ser perfeito e completo, falta
só...
TAINHA – Cale-se! Tu, aqui dentro,
não és mais que um autómato. Cumpre-te obedecer e pôr de parte as
observações.
ZÉ – Já as pus, Senhor Tainha.
TAINHA – Ora bem! Bom é isso!
ZÉ – V. Ex.ª bem sabe que cá com o
Zé Malaquias pode contar.
TAINHA – Óptimo! Vieram todas as
músicas que convidei?
ZÉ – Todas, excepto a de Frossos,
por à última hora ter adoecido o requinta, o saxofone e o Bombo.
TAINHA – Também o bombo?
ZÉ – Também, patrão: o bombo teve um
antraz; o requinta constipou-se na palheta, e o saxofone partiu um
pistão.
TAINHA – Não se pensa mais no caso.
Paciência. (Pausa) Ora atende bem, Zé.
ZÉ – Pronto, Sou todo ouvidos.
TAINHA – Logo, durante a recepção,
não deixes entrar senão as pessoas que vierem bem preparadas. A
escória...
ZÉ – O que é a escória? São os
párias sem vintém como eu?
TAINHA – Exactamente. A escória fica
lá fora; que se contente com os foguetes.
ZÉ – Está bem. E os novos-ricos?
TAINHA – Ouve. Os novos-ricos entram
em primeiro lugar, porque deles é que a Humanidade depende hoje.
/ 20 /
ZÉ – Também os açambarcadores?
TAINHA – É claro, porque sem eles
nós não teríamos um grito de arroz, um grão de milho, nem uma sede
de água. Deixa-os entrar. Na rua só ficam os parasitas como os
bacharéis, os empregados públicos, toda essa coorte de desgraçados
que não tenham onde cair vivos.
ZÉ – Muito bem! Óptimo, Sr. Tainha!
TAINHA – Quanto a cartões de visita,
esses... Se forem lacónicos...
ZÉ – Lacónicos?!
TAINHA – Sim, homem! Se disserem
pouco, aceita-os; se forem longos, lixo com eles. Não quero maçadas
para o nosso ilustre hóspede.
ZÉ – Mas quem é ele, afinal? Sim!
Quem é esse hóspede ilustre?
TAINHA – (Solene) o Dr.
Pangloss!
ZÉ – Pelo nome, deve ser nobrezia!
TAINHA – O Dr. Pangloss, oriundo da
Alemanha, é o maior amigo da Humanidade. A sua filosofia é a única
que nos pode salvar! Eis porque o recebo! Eis porque o admiro! É ele
que vai salvar-nos. Sabes como?
ZÉ – (Aparvalhado) Eu... não!
TAINHA – Nem é preciso. Aveiro vai
ter ocasião de admirar o «aspecto venerando» deste super-homem! (Indicando
os camarotes) Olha! (Zé, aparvalhado, olha) Tudo às
janelas! Colgaduras! Rostos lindos de lindas mulheres num supremo
anseio. Homens de toda a casta a erguerem a cabeça, à espera que
surja o extraordinário sábio! Pangloss! Pangloss é o único lenitivo
aos males e desesperos de todos os portugueses. Aveiro –eu, o Tainha
– vou planglossizar-me. Panglossizarmo-nos, hoje em dia, no meio
deste contínuo descrer, é a redenção. (Pausa) É agora... (consulta
o relógio) São horas. Vá. Tudo a postos e que nada falte!
ZÉ – Sim, Sr. Tainha. (Tainha
sai. Zé, aproximando-se duma porta) Zefa! Ó Zefa!
*
JOSEFA (Mal humorada) – Que
quer?
ZÉ – É para lhe dizer que esta vida,
assim, não tem jeito. Esfalfa-se um homem, como eu, a trabalhar,
desde que o sol nasce até que o patrão entenda que devo deitar-me,
e, no fim do mês, toma lá uns míseros papéis sebentos pelo teu
serviço. E que papéis! Estou farto! (Josefa vai para falar)
Estou farto. Já lhe disse! O que me vale... (Com brandura)
...Você bem sabe... são as gorjetas dos hóspedes e – muito aqui para
nós... – uns negociozinhos escuros que faço todos os dias nas
compras.
JOSEFA – Ah, seu maroto!
ZÉ – Pudera! Se assim não fosse,
andava sempre à dependura. Ah, mas um dia há-de vir em que o Zé, com
a sua Zefa ao lado, passeará de automóvel por essas ruas fora,
charuto ao canto da boca como o Sr. Antoninho de Castro e o Dr.
Fontes, botas de polimento do Miguéis, um relógio comprado ali no
Ratola... E hei-de dizer muita vez, ao passar: Ó Rebocho, ó Alfredo
Esteves, ó tu, toma lá uma ponta! (Esfregando as mãos) Isto
vai num sino, Zefa! O bolchevismo está à porta. (Assobia alguns
compassos da «Marselhesa»).
JOSEFA – Sim, sim. Mas o que nós
agora precisamos é de fazer o que o patrão mandou. Tenho de ir
buscar coisas para a cozinha, e você prende-me aqui. Sempre me saiu
um ralaço!...
ZÉ – Diabos o levem!
JOSEFA – Ao patrão?!
ZÉ – Não! A esse alma de chicharro
do tal Dr. Pagode, ou lá que diabo é. E isso de ralaço, menina Zefa,
mais devagar. O trabalho, cá em casa, quem o faz sou eu, enquanto
que vossemecê é só dar à língua ali na fonte dos Arcos, e nada mais.
Sempre desejava saber qual é o seu serviço.
JOSEFA – Não sabe?! Oiça lá, seu Zé!
(Canta)
Sou a Josefa, pura e singela,
flor a mais bela
cá deste prado!
Namoro à noite – mas que delícia –
quer um polícia,
quer um soldado.
Sempre a tardinha foi meu encanto;
mas, entretanto,
por distracção,
se me aparece algum janotinha,
também doidinha
dou-lhe atenção.
Tic-tic-tac, tic-tic-tão,
| Bis
cá dentro me faz o meu coração! |
"
Das criadas eu sou a rainha
e amiguinha
cá do patrão!
Altos mistérios, altos favores:
em caso de amores,
não digo que não!
/
21 /
Sou mais prudente nesta façanha;
tudo com manha
sei conseguir;
mas, se a fardinha logo aparece,
tudo me esquece
pra logo sentir.
Tic-tic-tac, tic-tic-tão,
| Bis
cá dentro me faz o meu coração!
|
"
ZÉ – Bravíssimo! Sim, senhora! Muito
bom serviço! Mas diga-me cá, muito em segredo, Zefinha: como
consegue namoriscar um polícia, se eles não existem nesta terra?
JOSEFA – Não existem?! Ora vá
contando: o Buíça com barbas, um; o Buíça sem barbas, dois; Buíça
fardado, três; Buíça à paisana, quatro...
ZÉ – Basta, basta, basta! Basta de
tanto Buíça! Também para quê? Não há roubos, não há desordens, não
há mortos. Donde se conclui que quanto mais gatos, mais ratos!
JOSEFA – Mas deixemo-nos de parola e
vamos lá depressa pró serviço.
ZÉ (Sentando-se) – É o vais!
O trabalho, quando o patrão não está, é este. (Levanta-se)
Quer ouvir? (Canta)
Descansa a bota de tacão,
e no chão!
Descansa o caixeiro ao balcão,
o maganão!
Também descansa o estudante
– que tunante! –
em cima dos livros do estudo
– que canudo! –
O mesmo faz o "Come e dorme»,
sem ter fome,
ali na loja do Osório
– que finório! –.
Descansa à banca o empregado
– pobre Estado!
Té o padeiro quis descanso
– que entalanço!
Só não descansa o marnoto
– que maroto! –,
nem aqui o Zé estafado
– que criado! –
Só não descansa o marnoto
– que maroto! –,
nem este vosso criado!
(Declamando)
– Ora aqui têm a minha triste
situação.
JOSEFA – Ai você estafa-se muito,
coitado! (Ouve-se a campainha) Deixa-me lá ir. É capaz de ser
a Senhora. (Campainha) Agora, é a da entrada. Vá! Mexa-se,
homem! (Zé sai por uma porta e Josefa por outra. Passados
instantes, entram Zé e Pangloss)
*
ZÉ (Com duas malas) – Faz
favor! Por aqui, meu Senhor!
PANGLOSS – Ya! Ich bix... Ya!
Pangloss!
ZÉ (Atarantado, deixando cair as
malas) Pangloss?!
PANGLOSS -- Verstchen Sie Deutsch? (Zé
não percebe) Em que língua querer digo coisas?
ZÉ – Língua? Português!
PANGLOSS – English?
ZÉ (Com grande alegria de
Pangloss) – Yes! English! Eu falar muito bem English. Eu estar
nas trinchas da França.
PANGLOSS – Yes! Mim ser Alemão,
Deutsch...
|
ZÉ – Boche... non bonne.
PANGLOSS (Atalhando) – Mas
mim ser amiga de Portugal.
ZÉ
–
Compris, bonne, monsier...
Pangloche. Vossa Excelência veio antes do tempo! O Sr. Tainha foi
esperá-lo à estação (Pangloss não percebe).
PANGLOSS – Estàçon?!
ZÉ (Aparte) – Ai, é verdade;
ele é bife! (Alto) O patrão... já esperava você e ir station
esperar monsiú. Compris?
/
22 /
PANGLOSS – Yes! Mim no conocer esta
region e sair nas Quintas...
ZÉ – Quintãs!
Quintãs!
PANGLOSS
– Yes! Thank
you! Quintãs! E vir a butes
com mes males e apanar muito poeira (Sacode-se).
ZÉ – Isso de poeira...
|
O estudante Henrique Mota, no papel
de Pangloss (1º acto) |
|
PANGLOSS – Desejar um hotel que nô
tenha pulgues, que nô tenhe percevejas, que no tenhe rates! Um
hotel...
ZÉ – Não diga mais... O hotel nas
condições é este. (Apontando o letreiro) «Aveiro, terra de
encantos». A não ser que queira esperar pelo hotel da Avenida
Peixinho; mas isso só lá pràs calendas gregas! Isso e o mercado só
estarão prontos, como nós costumamos dizer, lá para a semana dos
nove dias.
PANGLOSS – Nô. Mim nô gostar de
perder tempo.
Time is money!
ZÉ
–
Compris!
Time is monim, como diziam lá nas
trinchas. Mas então vem mal para esta terra. Aqui só se faz uma
coisa: perder tempo. Passe amanhã pelos Arcos e há-de ver. Parece
mesmo um aquário... À noitinha, então, é de ver para crer. Aparece
ali cada tesoura, cada rabeca!
PANGLOSS – Tesore? Rabeca? Mim não
perceber nada...
ZÉ – Não percebe?! Depois perceberá.
(Fora, ouve-se música).
PANGLOSS – Musique?
ZÉ – Ir esperar monsiú Pangloche!
PANGLOSS
– Pangloss, Yes! Nascido
in Deutschland, mas baptizada em França. Ser minha padrinho monsieur
Voltaire, escritor very ilustre. (Pausa) Mim querer limpar
poeira.
ZÉ (Apanhando as malas) – Por
aqui, if vos please. Não tarda a people! (Ouve-se fora sussurro e
música).
PANGLOSS (Desconfiado) – All
rigth! Por aqui. (Saem. Entram pouco depois,
Tainha e Josefa.)
*
TAINHA (ofegante) – Mas tens
a certeza? Vês? Não está!
JOSEFA – Veio, Sr. Tainha! Era um
sujeito magro...
TAINHA (radiante) – É ele!
JOSEFA – ...de óculos grandes,
barbicha branca...
TAINHA – Não há dúvida; é ele!
JOSEFA – Trazia um chapéu muito
esquisito na cabeça e duas malas. Falava a modos que estrangeirado.
TAINHA – Bem! Vai dizer a essa gente
que entre! (Josefa sai. Tainha vai à janela do fundo, abre-a e
faz sinais para fora. Passados poucos instantes, entram os dezassete
concelhos de Aveiro, homens e mulheres, com seus trajos
característicos, e cantam).
*
Ouvi, por um instante,
nosso canto jovial,
estrela fulgurante,
estrela sem igual!
Saudar-vos aqui vimos
aos vossos pés, Senhor;
o prazer que nós sentimos
é decerto o maior.
Vossas marinhas de sal
são valor e são riqueza;
sois de Veneza a rival
nesta terra portuguesa.
O teu olhar sem igual
é dos nautas o farol,
é das luzes sem rival
que mais brilha além do sol.
TAINHA (canta)
Minhas Senhoras, meus Senhores,
contente estou de aqui vos ver;
prazer maior não posso ter,
penhorado a tais favores.
Dançai, dançai vossas danças;
desfraldai as vossas tranças;
mil folganças podemos ter
neste dia de bom prazer.
VILA DA FEIRA – Como concelho mais
antigo que me prezo de ser, mas sempre fresca e graciosa, eu, a
nobilíssima Vila da Feira, que vivo em Terras de Santa Maria, tomo a
palavra para vos dizer que todos os vossos concelhos vos vêm
cumprimentar e fazer as honras ao ilustre hóspede, Dr. Pangloss.
TAINHA – Obrigado, meus amigos!
Muito abrigado! Já contava convosco. Vós nunca costumais faltar nas
horas de alegria como nas horas tristes. Em breve vos apresentarei
Sua Sapiência o Dr. Pangloss. (Indo à janela) Rapazes, música
e foguetes! (Passados instantes, soam alguns compassos da marcha
da «Aida» e fogo em profusão. Entra Pangloss, que pára hirto e
majestoso à entrada da porta. Luz intensa. Espectativa gera!)
*
TAINHA – Ei-lo! (Curva-se em
reverência, e todos o imitam.)
PANGLOSS – Good evening! Mim ser
Pangloss! Vós ser Tainha?
TAINHA – Um humílimo criado de V.
Ex.ª! (Curva-se)
PANGLOSS –
Yes!
(Canta)
/ 23 /
Very good of Lisbonne,
very good of Aveira!
Tem baratos ovos moles,
in England borrachera.
Oh, my dear Pove!
Nô são patarates!
Só in Gafanhe
há bon batates.
Nô mais nô speach;
nô mais be quite;
muita aranzel,
mas enfim... all rigth!
Very good of Lisbonne,
Very good of Aveira;
tem baratos mexilhões,
in English borrachera!
Mas mim aqui canta
e faz aranzel:
Aveira ser bon!
| Bis
Yes! Very well!
| "
TODOS –
Mas ele aqui canta
e faz aranzel:
Aveira ser bon!
| Bis
Yes! Very well!
| "
PANGLOSS
–
Yes!
Mim estar muite contenta! All right.
TAINHA (indicando a cadeira)
– Queira V. Ex.ª sentar-se.
PANGLOSS (sentando-se) – Well!
Muito obrigada!
TAINHA – Ex.mo e
Venerando Mestre! A música que vibra entusiástica e marcialmente aos
nossos ouvidos, os foguetes que atroam os ares e esta carinhosa
manifestação que os meus dezassete concelhos quiseram fazer-vos –
provam que todo o clero, toda a nobreza e todo o povo deste Distrito
vos considera e estima do fundo da alma. É que vós sois um nome
universalmente conhecido. Quem há aí que desconheça o excelso
filósofo, grande luminar da «metafísica-cosmológica-nigologia»?
Ninguém, meus senhores!
UM CONCELHO (Aparte para outro)
– Percebeste?.. Nem eu!
TAINHA (Limpando o suor) –
Estou cansado do já longo discurso; sinto mesmo que a comoção me
embarga a voz... Perdoai, ilustre entre os ilustres, sapiente entre
os sapientes, o «primus inter pares» de todos os tempos!
Fala, ó sábio! Da tu boca pendem os nossos olhos, ávidos de luz
espiritual.
PANGLOSS (Levantando-se) –
Mim nô gostar de muitas parolas e dizer tudo em resumo. Agradeço as
alegrias, mas nô gostar de foguetas e de bombas, que fazem muita
barulha e mortificam as orelas. A minha filosófia resume-se nestas
parolas: tudo o que succede no mundo é pelo melhor. Ali right!
A base de todo o meu sistema filosófica é o optimismo: tudo está
good! Tudo está bonne! Yes! (Senta-se).
TODOS – Apoiado!
PANGLOSS (erguendo-se) – All right! Mim gostar desta terre, apesar de haver pouques comodidades!
TAINHA – A cidade continua em obras,
Sapiência! O camartelo do Dr. Peixinho deita abaixo, e quem vier que
levante!
PANGLOSS – Peixinho?! Mim gostar
muite de peixe.
TAINHA – Tê-Io-á hoje ao jantar. O
Sr. Presidente da Câmara mandou, frescos que nem alface, robalos,
enguias, solhas e linguados... tudo apanhado no Parque.
PANGLOSS – Very well! (Levanta-se)
Vamos ao diner?
TAINHA – Não, Sapiência! Segue-se
agora a recepção. O povo, lá fora, é assim! (Faz uma pinha com os
dedos. Pangloss senta-se. Entra Zé e jornalistas).
*
ZÉ – Sr. Tainha! Pela ordem da
inscrição, entram agora os esteios do progresso regional – a
imprensa dos Ovos Moles. (Apresentam-se os oito jornais –
«Campeão», «Debate», «Democrata», «O de Aveiro», «Aveiro Sportivo»,
«Correio de Aveiro», «Voz do Povo» e «Alma Académica» –, com os
respectivos títulos a tiracolo, em letras bem visíveis. Mostram uma
caneta e cantam).
TODOS –
É com esta nossa arma
que traçamos a notícia
que o mundo corre e alarma
verdadeira ou fictícia.
Servem-nos todos os meios,
para de alguém dizer mal.
Eis aqui os cinco esteios
do progresso regional.
«CAMPEÃO» e «DEBATE» –
Temos nós por vade-mecum
Afonso Costa em terno duo.
Dizemos só: – «Dominus tecum
et cum spiritu tuo».
/
24 /
«DEMOCRATA» –
Jornalista e refilão,
sou pau para toda a colher.
Água benta e presunção
Cada um toma a que quer.
«O DE AVEIRO» –
Canalhas, pulhas, ladrões,
Bandidos, asnos, paspalhos!
Ó corja de vendilhões,
Ó súcia má de bandalhos!
«AVEIRO SPORTlVO» –
Saudações desportivas
é cá o lema do lar;
nada a favor dos «Galitos»,
Tudo prà banda do «mar».
«CORREIO DE AVEIRO» –
Para mim, um puritano,
nada são prazeres da vida:
vivo ano após ano,
| Bis
pela ponte da bestida
|
"
(Caso de bis)
Chorai, fadistas, chorai,
que o Zé Maria morreu
pela terra da Murtosa,
| Bis
que foi onde ele nasceu.
|
"
A minha pena acerada
é também muito teimosa:
sempre pugna denodada, |
Bis
pela terra da Murtosa.
|
"
«VOZ DO POVO» –
Aqui está o Cadete,
para o que der e vier;
pois se não mandar o homem,
há-de mandar a mulher.
«ALMA ACADÉMICA» –
Eu sou a «Alma Académica»,
há pouco tempo nascida;
não tenho doença endémica;
terei talvez longa vida.
PANGLOSS – Very good! Mim gostar
destes figurões. (Para Tainha) Que escrevem eles?
TAINHA – Vai ouvir.
«CAMPEÃO» (Avança, faz vénia e lê
num exemplar) – Junho, 23 – O Sr. Flamengo achou na Ponte da
Dobadoura, à meia-noite e um quarto, uma ponta de cigarro. Novembro,
30. Nasceu o dente do siso ao filho mais velho do nosso amigo
Ventura. Venturas ao Ventura.
PANGLOSS – Muito útil. All right!
«DEBATE» – Sempre temos dito, Sr.ª
Câmara, que estas covas nas principais artérias da cidade não se
podem consentir. Nós somos, positivamente, uma cidade encovada, ou,
melhor, encavacada – Tenho dito.
PANGLOSS – Mim gostar desta rapaz.
Yes! (Entra Zé).
*
ZÉ (Com um cartão numa bandeja)
– Um cartão, Sr. Tainha.
TAINHA – Deixa ver. (Lendo) O
«Cisne da Arcada» centro da boa e má língua local, abraça
efusivamente o sábio Pangloss e oferece-lhe, como recordação de
Aveiro, dois belos exemplares das peras de Eixo. (Para Zé)
Então, as peras?
ZÉ – As peras estão lá dentro.
TAINHA – Está bem. Podes ir.
«DEMOCRATA» (lendo) – Por
absoluta falta de espaço, não podemos publicar a carta do Dr. Lopes
de Oliveira, de Oliveira de Azeméis. Está de serviço a farmácia
Cabral.
ZÉ – Você sempre me saiu um
maduro!... (Sai)
*
«O DE AVEIRO» (Lendo) – Tudo
o que aqui dissemos, desde a implantação da República, saiu certo.
Nós somos um verdadeiro saragoçano. O nosso país é um carnaval
constante. Não há remédio que o salve. Nem o Grijó é capaz de o
endireitar. Está tudo perdido! Tudo perdido! Tudo! Isto está a pedir
muita... (Interrompe com um ataque de tosse).
PANGLOSS – Oh! (Faz o gesto de
dar pancada).
«AVEIRO SPORTlVO» (Idem) – No
domingo, houve encontro entre o 11 da Azurva e o F. C. O. H. P. de
S. Bernardo. Venceu o primeiro por 4 a zero. Não gostámos da
arbitragem do Sr. Duarte Simão. Para outra vez será melhor escolher
outro que pesque mais disto.
«CORREIO DE AVEIRO» – O «Correio de
Aveiro» tem um princípio: a Murtosa; um meio: a Murtosa; um fim: a
Murtosa.
«VOZ DO POVO» – Camaradas!
Camaradinhas! Para a frente é que é o caminho! Vamos à conquista do
pão: a fome não tem lei!
/ 25 /
PANGLOSS – Yes! Com foma não se pode
viver! Yes!
«ALMA ACADÉMICA» – Rapazes! Tenhamos
fé! Confiemos na força dos nossos pulmões e no entusiasmo, sempre
esplendoroso, dos nossos corações! Sursum corda!
PANGLOSS (Levantando-se) –
Aveira ter boas alavancas. Aveira querer progredir. Mim querer ficar
para sempra em Aveira! Aqui tudo está good!
TAINHA – Viva o Dr. Pangloss!
TODOS – Viva! Viva Pangloss!
TAINHA (Cantando)
Sem esta filosofia
não há terra que remoce!
Digam todos neste dia:
– Viva, viva Pangloss!
TODOS – Sem esta filosofia, etc. (Entra
Zé).
*
ZÉ (Um tanto comprometido) –
Sr. Tainha...
TAINHA – Que temos?
ZÉ – É que... Não sei se...
TAINHA – Vamos! Fala!
ZÉ – É que está ali a «Feira de
Março», que deseja entrar; mas vem tão maltrapilha, tão pelintra...
TAINHA – Que tenha paciência! E mais
ninguém?
ZÉ – Há um par de botas.
TAINHA – Um par de botas?!
ZÉ – Mandaram-nas da Sapataria
Miguéis. Diz que é para o descomunalíssimo talento do Dr. Pangloss.
TAINHA – Põe-nas no quarto de Sua
Excelência.
ZÉ – Ainda há mais.
TAINHA – Mais botas?!
ZÉ – Não, Senhor! Mas agora é que
não sei se deva dizer. Receio ser indiscreto.
TAINHA – Desembucha, homem!
ZÉ – É um esqueleto.
PANGLOSS (Erguendo-se) –
Esquelete?!
ZÉ – São as «Ossadas da Guerra» do
Capitão Rebocho.
TAINHA – Que entrem as «Ossadas»! (Apagam-se
as luzes. Saem todos, menos Tainha e Pangloss, que andam às
apalpadelas).
*
PANGLOSS – Mim nô gostar destas
brincadeiras. Nô achar graça nenhuma.
TAINHA – Tenha paciência, Dr. A
minha luz é intermitente. (Entra D. Eléctrica e oito lâmpadas.
Aparece a luz. Pangloss esfrega os olhos).
D. ELÉCTRICA E LÂMPADAS (Cantando)
Nossa luz
aqui penetra,
luz de truz,
pois é eléctrica.
Se ela se apaga
por um momento,
logo se alaga
o escurecimento.
É a melhor,
a mais barata,
mas a pior
| Bis
pra zaragata
| "
D. ELÉCTRICA –
Nem somente o sol e mais a lua,
com seus claros, vivos raios de ouro
e a sua luz violenta e crua
iluminam o mundo com um tesouro.
Bruxuleando firme, rebrilhando,
quando a chama intensa nos produz,
sente-se a alma quente, volitando
em torno, em redor da nossa luz.
As estrelas sidéreas, luminosas,
sentem-se mal de nos ver cintilar,
e cerram-se, apagando, invejosas,
o fulgor que elas têm em seu olhar.
CORO –
As mariposas douradas
| Bis
em redor de nós volitam;
| "
e de luz embriagadas
| Bis
dentro de nos se precipitam
| "
PANGLOSS – D. Electrique nô fazer
mais graças dessas!
D. ELÉCTRICA – Engana-se, Senhor!
Isto não são graças. São síncopes que me dão. Ando muito fraca,
muito anémica. Receitaram-me ares dos Campos; mas o que eu precisava
era ir para o... Alfusqueiro. Falta-me... Aquilo com que se compram
os melões! E, se não fosse o Dr. Ferramenta... Já não era viva. (Entram
Zé, populares, um polícia e um bombeiro).
ZÉ (Com um lampião aceso na mão,
os populares armados de bengala e o bombeiro com uma agulheta) –
Ah; É a Senhora Eléctrica? É boa! E nós a julgarmos que eram as
«Ossadas», ou almas do outro mundo!
/
26 /
TODOS – Ah, ah, ah! (Cantam).
Se acaso aqui vimos,
quais outros D. Quixotes,
creiam bem que aqui sentimos
o coração aos piparotes.
Não é medo, vamos jurar,
nem susto ou aflição;
para na cidade andar,
é preciso lampião!
Ah, ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Viva a pândega,
Olé, olá!
Viva a pândega
e a folia,
o prazer
e a alegria!
Ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Viva a pândega
e a folia,
olé, olá.
Não somos conspiradores,
nem se quer mal a ninguém;
só da ordem amadores
e da rapioca também.
Sem bulha nem matinada,
Sem barulho de maior,
Cá trazemos gente armada,
pra não irmos pró «major».
Ah, ah, ah, ah!, etc.
(Pangloss e Tainha riem-se. Cai o
pano – Fim do 1º Acto)
|