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N.º 14

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1972 

Pangloss em Aveiro

Revista de costumes aveirenses em 3 actos, original do Dr. José Tavares, antigo Reitor do Liceu Nacional de Aveiro e do Dr. Álvaro Sampaio, antigo Professor, representada no Teatro Aveirense por alunos do liceu nos dias 13, 16 e 20 de Fevereiro de 1924. Música, parte original e parte adaptada, do P.e António Estêvão.
> CARTAZ DO ESPECTÁCULO <

Obs. - Nesta reconversão para Internet, cada acto ocupa uma página independente, devendo-se utilizar, para leitura integral, os botões de navegação horizontal colocados no cimo ou no final das páginas.

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PRÓLOGO

 

(Logo que a orquestra termina a abertura, a personagem Tainha, envolta numa capa de estudante, surge em frente do pano de boca, faz vénia e fala)

 

Senhoras, Senhores:

A revista que ides ver, interpretada por alunas e alunos do liceu desta encantadora cidade, não tem escabrosidades que possam envergonhar-vos, nem crítica que vos faça corar. Ligeiras e amigas referências a pessoas; benévolos piparotes a factos da actualidade; em suma, riso bonacheirão para pessoas e coisas de Aveiro – é o que ela vos apresenta. – A interpretação é que deve ficar muito aquém da vossa expectativa; mas nós, os estudantes, já estamos habituados à vossa benevolência e com ela contamos hoje. Para a vossa estada aqui, vai a expressão sincera do nosso mais profundo respeito. – E, como os antigos Gregos e como os antigos Romanos, pedimos a Vossas Excelências, ao correr do pano no último acto, meia dúzia de palmas, que nos sirvam de perdão ao imperfeito trabalho que vamos apresentar-vos. Valete, senhoras minhas! Valete, meus senhores! (Faz vénia e retira-se. Sobe imediatamente o pano).

 

 

ACTO I

 

Espaçosa sala de hotel, armada em sala de recepção. À direita, cadeira de espaldar sobre um pequeno estrado. Mobiliário onde convier. Flores. Ao fundo, em letras bem visíveis, este dístico: Aveiro, terra de encantos. O começo do acto é ao anoitecer. A certa altura, luz eléctrica.

 

ZÉ: (Trata da ornamentação da sala, mas devagar e com visível aborrecimento. De vez em quando, suspira.

Ouve-se fora, uma fanfarra, em marcha marcial. Estralejam foguetes. Entra Tainha, muito bem posto nas suas vestes da Beira-Mar: botas de borracha, fato domingueiro, chapéu mole, grossa corrente.)

 

TAINHA – Tudo pronto?

ZÉ  – Estava dando os últimos retoques, Excelência, para o adorno ser perfeito e completo, falta só...

TAINHA – Cale-se! Tu, aqui dentro, não és mais que um autómato. Cumpre-te obedecer e pôr de parte as observações.

ZÉ  – Já as pus, Senhor Tainha.

TAINHA – Ora bem! Bom é isso!

ZÉ – V. Ex.ª bem sabe que cá com o Zé Malaquias pode contar.

TAINHA – Óptimo! Vieram todas as músicas que convidei?

ZÉ – Todas, excepto a de Frossos, por à última hora ter adoecido o requinta, o saxofone e o Bombo.

TAINHA – Também o bombo?

ZÉ – Também, patrão: o bombo teve um antraz; o requinta constipou-se na palheta, e o saxofone partiu um pistão.

TAINHA – Não se pensa mais no caso. Paciência. (Pausa) Ora atende bem, Zé.

ZÉ – Pronto, Sou todo ouvidos.

TAINHA – Logo, durante a recepção, não deixes entrar senão as pessoas que vierem bem preparadas. A escória...

ZÉ – O que é a escória? São os párias sem vintém como eu?

TAINHA – Exactamente. A escória fica lá fora; que se contente com os foguetes.

ZÉ – Está bem. E os novos-ricos?

TAINHA – Ouve. Os novos-ricos entram em primeiro lugar, porque deles é que a Humanidade depende hoje. / 20 /

ZÉ – Também os açambarcadores?

TAINHA – É claro, porque sem eles nós não teríamos um grito de arroz, um grão de milho, nem uma sede de água. Deixa-os entrar. Na rua só ficam os parasitas como os bacharéis, os empregados públicos, toda essa coorte de desgraçados que não tenham onde cair vivos.

ZÉ – Muito bem! Óptimo, Sr. Tainha!

TAINHA – Quanto a cartões de visita, esses... Se forem lacónicos...

ZÉ – Lacónicos?!

TAINHA – Sim, homem! Se disserem pouco, aceita-os; se forem longos, lixo com eles. Não quero maçadas para o nosso ilustre hóspede.

ZÉ – Mas quem é ele, afinal? Sim! Quem é esse hóspede ilustre?

TAINHA – (Solene) o Dr. Pangloss!

ZÉ – Pelo nome, deve ser nobrezia!

TAINHA – O Dr. Pangloss, oriundo da Alemanha, é o maior amigo da Humanidade. A sua filosofia é a única que nos pode salvar! Eis porque o recebo! Eis porque o admiro! É ele que vai salvar-nos. Sabes como?

ZÉ – (Aparvalhado) Eu... não!

TAINHA – Nem é preciso. Aveiro vai ter ocasião de admirar o «aspecto venerando» deste super-homem! (Indicando os camarotes) Olha! (Zé, aparvalhado, olha) Tudo às janelas! Colgaduras! Rostos lindos de lindas mulheres num supremo anseio. Homens de toda a casta a erguerem a cabeça, à espera que surja o extraordinário sábio! Pangloss! Pangloss é o único lenitivo aos males e desesperos de todos os portugueses. Aveiro –eu, o Tainha – vou planglossizar-me. Panglossizarmo-nos, hoje em dia, no meio deste contínuo descrer, é a redenção. (Pausa) É agora... (consulta o relógio) São horas. Vá. Tudo a postos e que nada falte!

ZÉ – Sim, Sr. Tainha. (Tainha sai. Zé, aproximando-se duma porta) Zefa! Ó Zefa!

 

*

 

JOSEFA (Mal humorada) – Que quer?

ZÉ – É para lhe dizer que esta vida, assim, não tem jeito. Esfalfa-se um homem, como eu, a trabalhar, desde que o sol nasce até que o patrão entenda que devo deitar-me, e, no fim do mês, toma lá uns míseros papéis sebentos pelo teu serviço. E que papéis! Estou farto! (Josefa vai para falar) Estou farto. Já lhe disse! O que me vale... (Com brandura) ...Você bem sabe... são as gorjetas dos hóspedes e – muito aqui para nós... – uns negociozinhos escuros que faço todos os dias nas compras.

JOSEFA – Ah, seu maroto!

ZÉ – Pudera! Se assim não fosse, andava sempre à dependura. Ah, mas um dia há-de vir em que o Zé, com a sua Zefa ao lado, passeará de automóvel por essas ruas fora, charuto ao canto da boca como o Sr. Antoninho de Castro e o Dr. Fontes, botas de polimento do Miguéis, um relógio comprado ali no Ratola... E hei-de dizer muita vez, ao passar: Ó Rebocho, ó Alfredo Esteves, ó tu, toma lá uma ponta! (Esfregando as mãos) Isto vai num sino, Zefa! O bolchevismo está à porta. (Assobia alguns compassos da «Marselhesa»).

JOSEFA – Sim, sim. Mas o que nós agora precisamos é de fazer o que o patrão mandou. Tenho de ir buscar coisas para a cozinha, e você prende-me aqui. Sempre me saiu um ralaço!...

ZÉ – Diabos o levem!

JOSEFA – Ao patrão?!

ZÉ – Não! A esse alma de chicharro do tal Dr. Pagode, ou lá que diabo é. E isso de ralaço, menina Zefa, mais devagar. O trabalho, cá em casa, quem o faz sou eu, enquanto que vossemecê é só dar à língua ali na fonte dos Arcos, e nada mais. Sempre desejava saber qual é o seu serviço.

JOSEFA – Não sabe?! Oiça lá, seu Zé! (Canta)

 

Sou a Josefa, pura e singela,

           flor a mais bela

           cá deste prado!

Namoro à noite – mas que delícia –

           quer um polícia,

           quer um soldado.

 

Sempre a tardinha foi meu encanto;

           mas, entretanto,

           por distracção,

se me aparece algum janotinha,

           também doidinha

           dou-lhe atenção.

 

Tic-tic-tac, tic-tic-tão,                      | Bis

cá dentro me faz o meu coração! |  "

 

Das criadas eu sou a rainha

           e amiguinha

           cá do patrão!

Altos mistérios, altos favores:

           em caso de amores,

           não digo que não!

 

/ 21 /

Sou mais prudente nesta façanha;

           tudo com manha

           sei conseguir;

mas, se a fardinha logo aparece,

           tudo me esquece

           pra logo sentir.

 

Tic-tic-tac, tic-tic-tão,                       | Bis

cá dentro me faz o meu coração!  |   "

 

ZÉ – Bravíssimo! Sim, senhora! Muito bom serviço! Mas diga-me cá, muito em segredo, Zefinha: como consegue namoriscar um polícia, se eles não existem nesta terra?

JOSEFA – Não existem?! Ora vá contando: o Buíça com barbas, um; o Buíça sem barbas, dois; Buíça fardado, três; Buíça à paisana, quatro...

ZÉ – Basta, basta, basta! Basta de tanto Buíça! Também para quê? Não há roubos, não há desordens, não há mortos. Donde se conclui que quanto mais gatos, mais ratos!

JOSEFA – Mas deixemo-nos de parola e vamos lá depressa pró serviço.

ZÉ (Sentando-se) – É o vais! O trabalho, quando o patrão não está, é este. (Levanta-se) Quer ouvir? (Canta)

 

Descansa a bota de tacão,

           e no chão!

Descansa o caixeiro ao balcão,

           o maganão!

Também descansa o estudante

           – que tunante! –

em cima dos livros do estudo

           – que canudo! –

O mesmo faz o "Come e dorme»,

           sem ter fome,

ali na loja do Osório

           – que finório! –.

Descansa à banca o empregado

           – pobre Estado!

Té o padeiro quis descanso

           – que entalanço!

Só não descansa o marnoto

           – que maroto! –,

nem aqui o Zé estafado

           – que criado! –

Só não descansa o marnoto

           – que maroto! –,

nem este vosso criado!

 

(Declamando)

           – Ora aqui têm a minha triste situação.

JOSEFA – Ai você estafa-se muito, coitado! (Ouve-se a campainha) Deixa-me lá ir. É capaz de ser a Senhora. (Campainha) Agora, é a da entrada. Vá! Mexa-se, homem! (Zé sai por uma porta e Josefa por outra. Passados instantes, entram Zé e Pangloss)

 

*

 

ZÉ (Com duas malas) – Faz favor! Por aqui, meu Senhor!

PANGLOSS – Ya! Ich bix... Ya! Pangloss!

ZÉ (Atarantado, deixando cair as malas) Pangloss?!

PANGLOSS -- Verstchen Sie Deutsch? (Zé não percebe) Em que língua querer digo coisas?

ZÉ – Língua? Português!

PANGLOSS – English?

ZÉ (Com grande alegria de Pangloss) – Yes! English! Eu falar muito bem English. Eu estar nas trinchas da França.

PANGLOSS – Yes! Mim ser Alemão, Deutsch...
 

O estudante Henrique Mota, no papel de Pangloss (1º acto) - Clicar para ampliar.

ZÉ – Boche... non bonne.

PANGLOSS (Atalhando) – Mas mim ser amiga de Portugal.

Compris, bonne, monsier... Pangloche. Vossa Excelência veio antes do tempo! O Sr. Tainha foi esperá-lo à estação (Pangloss não percebe).

PANGLOSS – Estàçon?!

ZÉ (Aparte) – Ai, é verdade; ele é bife! (Alto) O patrão... já esperava você e ir station esperar monsiú. Compris? / 22 /

PANGLOSS – Yes! Mim no conocer esta region e sair nas Quintas...

ZÉ – Quintãs! Quintãs!

PANGLOSS Yes! Thank you! Quintãs! E vir a butes com mes males e apanar muito poeira (Sacode-se).

ZÉ – Isso de poeira...

O estudante Henrique Mota, no papel de Pangloss (1º acto)

 

PANGLOSS – Desejar um hotel que nô tenha pulgues, que nô tenhe percevejas, que no tenhe rates! Um hotel...

ZÉ – Não diga mais... O hotel nas condições é este. (Apontando o letreiro) «Aveiro, terra de encantos». A não ser que queira esperar pelo hotel da Avenida Peixinho; mas isso só lá pràs calendas gregas! Isso e o mercado só estarão prontos, como nós costumamos dizer, lá para a semana dos nove dias.

PANGLOSS – Nô. Mim nô gostar de perder tempo. Time is money!

Compris! Time is monim, como diziam lá nas trinchas. Mas então vem mal para esta terra. Aqui só se faz uma coisa: perder tempo. Passe amanhã pelos Arcos e há-de ver. Parece mesmo um aquário... À noitinha, então, é de ver para crer. Aparece ali cada tesoura, cada rabeca!

PANGLOSS – Tesore? Rabeca? Mim não perceber nada...

ZÉ – Não percebe?! Depois perceberá. (Fora, ouve-se música).

PANGLOSS – Musique?

ZÉ – Ir esperar monsiú Pangloche!

PANGLOSS Pangloss, Yes! Nascido in Deutschland, mas baptizada em França. Ser minha padrinho monsieur Voltaire, escritor very ilustre. (Pausa) Mim querer limpar poeira.

ZÉ (Apanhando as malas) – Por aqui, if vos please. Não tarda a people! (Ouve-se fora sussurro e música).

PANGLOSS (Desconfiado) – All rigth! Por aqui. (Saem. Entram pouco depois, Tainha e Josefa.)

 

*

 

TAINHA (ofegante) – Mas tens a certeza? Vês? Não está!

JOSEFA – Veio, Sr. Tainha! Era um sujeito magro...

TAINHA (radiante) – É ele!

JOSEFA – ...de óculos grandes, barbicha branca...

TAINHA – Não há dúvida; é ele!

JOSEFA – Trazia um chapéu muito esquisito na cabeça e duas malas. Falava a modos que estrangeirado.

TAINHA – Bem! Vai dizer a essa gente que entre! (Josefa sai. Tainha vai à janela do fundo, abre-a e faz sinais para fora. Passados poucos instantes, entram os dezassete concelhos de Aveiro, homens e mulheres, com seus trajos característicos, e cantam).

 

*

 

Ouvi, por um instante,

nosso canto jovial,

estrela fulgurante,

estrela sem igual!

Saudar-vos aqui vimos

aos vossos pés, Senhor;

o prazer que nós sentimos

é decerto o maior.

Vossas marinhas de sal

são valor e são riqueza;

sois de Veneza a rival

nesta terra portuguesa.

O teu olhar sem igual

é dos nautas o farol,

é das luzes sem rival

que mais brilha além do sol.

 

TAINHA (canta)

Minhas Senhoras, meus Senhores,

contente estou de aqui vos ver;

prazer maior não posso ter,

penhorado a tais favores.

Dançai, dançai vossas danças;

desfraldai as vossas tranças;

mil folganças podemos ter

neste dia de bom prazer.

 

VILA DA FEIRA – Como concelho mais antigo que me prezo de ser, mas sempre fresca e graciosa, eu, a nobilíssima Vila da Feira, que vivo em Terras de Santa Maria, tomo a palavra para vos dizer que todos os vossos concelhos vos vêm cumprimentar e fazer as honras ao ilustre hóspede, Dr. Pangloss.

TAINHA – Obrigado, meus amigos! Muito abrigado! Já contava convosco. Vós nunca costumais faltar nas horas de alegria como nas horas tristes. Em breve vos apresentarei Sua Sapiência o Dr. Pangloss. (Indo à janela) Rapazes, música e foguetes! (Passados instantes, soam alguns compassos da marcha da «Aida» e fogo em profusão. Entra Pangloss, que pára hirto e majestoso à entrada da porta. Luz intensa. Espectativa gera!)

 

*

 

TAINHA – Ei-lo! (Curva-se em reverência, e todos o imitam.)

PANGLOSS – Good evening! Mim ser Pangloss! Vós ser Tainha?

TAINHA – Um humílimo criado de V. Ex.ª! (Curva-se)

PANGLOSS Yes! (Canta) / 23 /
 

Very good of Lisbonne,

very good of Aveira!

Tem baratos ovos moles,

in England borrachera.

 

Oh, my dear Pove!

Nô são patarates!

Só in Gafanhe

há bon batates.

Nô mais nô speach;

nô mais be quite;

muita aranzel,

mas enfim... all rigth!

 

Very good of Lisbonne,

Very good of Aveira;

tem baratos mexilhões,

in English borrachera!

 

Mas mim aqui canta

e faz aranzel:

Aveira ser bon!   | Bis

Yes! Very well!    |   "

 

TODOS  –

Mas ele aqui canta

e faz aranzel:

Aveira ser bon!   | Bis

Yes! Very well!    |  "

 

PANGLOSS Yes! Mim estar muite contenta! All right.

TAINHA (indicando a cadeira) – Queira V. Ex.ª sentar-se.

PANGLOSS (sentando-se) – Well! Muito obrigada!

TAINHA – Ex.mo e Venerando Mestre! A música que vibra entusiástica e marcialmente aos nossos ouvidos, os foguetes que atroam os ares e esta carinhosa manifestação que os meus dezassete concelhos quiseram fazer-vos – provam que todo o clero, toda a nobreza e todo o povo deste Distrito vos considera e estima do fundo da alma. É que vós sois um nome universalmente conhecido. Quem há aí que desconheça o excelso filósofo, grande luminar da «metafísica-cosmológica-nigologia»? Ninguém, meus senhores!

UM CONCELHO (Aparte para outro) – Percebeste?.. Nem eu!

TAINHA (Limpando o suor) – Estou cansado do já longo discurso; sinto mesmo que a comoção me embarga a voz... Perdoai, ilustre entre os ilustres, sapiente entre os sapientes, o «primus inter pares» de todos os tempos! Fala, ó sábio! Da tu boca pendem os nossos olhos, ávidos de luz espiritual.

PANGLOSS (Levantando-se) – Mim nô gostar de muitas parolas e dizer tudo em resumo. Agradeço as alegrias, mas nô gostar de foguetas e de bombas, que fazem muita barulha e mortificam as orelas. A minha filosófia resume-se nestas parolas: tudo o que succede no mundo é pelo melhor. Ali right! A base de todo o meu sistema filosófica é o optimismo: tudo está good! Tudo está bonne! Yes! (Senta-se).

TODOS – Apoiado!

PANGLOSS (erguendo-se) – All right! Mim gostar desta terre, apesar de haver pouques comodidades!

TAINHA – A cidade continua em obras, Sapiência! O camartelo do Dr. Peixinho deita abaixo, e quem vier que levante!

PANGLOSS – Peixinho?! Mim gostar muite de peixe.

TAINHA – Tê-Io-á hoje ao jantar. O Sr. Presidente da Câmara mandou, frescos que nem alface, robalos, enguias, solhas e linguados... tudo apanhado no Parque.

PANGLOSS – Very well! (Levanta-se) Vamos ao diner?

TAINHA – Não, Sapiência! Segue-se agora a recepção. O povo, lá fora, é assim! (Faz uma pinha com os dedos. Pangloss senta-se. Entra Zé e jornalistas).

 

*

 

ZÉ – Sr. Tainha! Pela ordem da inscrição, entram agora os esteios do progresso regional – a imprensa dos Ovos Moles. (Apresentam-se os oito jornais – «Campeão», «Debate», «Democrata», «O de Aveiro», «Aveiro Sportivo», «Correio de Aveiro», «Voz do Povo» e «Alma Académica» –, com os respectivos títulos a tiracolo, em letras bem visíveis. Mostram uma caneta e cantam).

 

TODOS –

 

É com esta nossa arma

que traçamos a notícia

que o mundo corre e alarma

verdadeira ou fictícia.

 

Servem-nos todos os meios,

para de alguém dizer mal.

Eis aqui os cinco esteios

do progresso regional.

 

«CAMPEÃO» e «DEBATE» –

 

Temos nós por vade-mecum

Afonso Costa em terno duo.

Dizemos só: – «Dominus tecum

et cum spiritu tuo».

/ 24 /

 

«DEMOCRATA» –

 

Jornalista e refilão,

sou pau para toda a colher.

Água benta e presunção

Cada um toma a que quer.

 

«O DE AVEIRO» –

 

Canalhas, pulhas, ladrões,

Bandidos, asnos, paspalhos!

Ó corja de vendilhões,

Ó súcia má de bandalhos!

 

«AVEIRO SPORTlVO» –

 

Saudações desportivas

é cá o lema do lar;

nada a favor dos «Galitos»,

Tudo prà banda do «mar».

 

«CORREIO DE AVEIRO» –

 

Para mim, um puritano,

nada são prazeres da vida:

vivo ano após ano,          | Bis

pela ponte da bestida     |   "

 

(Caso de bis)

Chorai, fadistas, chorai,

que o Zé Maria morreu

pela terra da Murtosa,      | Bis

que foi onde ele nasceu.  |  "

 

A minha pena acerada

é também muito teimosa:

sempre pugna denodada,  | Bis

pela terra da Murtosa.         |   "

 

 

«VOZ DO POVO» –

 

Aqui está o Cadete,

para o que der e vier;

pois se não mandar o homem,

há-de mandar a mulher.

 

«ALMA ACADÉMICA» –

 

Eu sou a «Alma Académica»,

há pouco tempo nascida;

não tenho doença endémica;

terei talvez longa vida.

 

PANGLOSS – Very good! Mim gostar destes figurões. (Para Tainha) Que escrevem eles?

TAINHA – Vai ouvir.

«CAMPEÃO» (Avança, faz vénia e lê num exemplar) – Junho, 23 – O Sr. Flamengo achou na Ponte da Dobadoura, à meia-noite e um quarto, uma ponta de cigarro. Novembro, 30. Nasceu o dente do siso ao filho mais velho do nosso amigo Ventura. Venturas ao Ventura.

PANGLOSS – Muito útil. All right!

«DEBATE» – Sempre temos dito, Sr.ª Câmara, que estas covas nas principais artérias da cidade não se podem consentir. Nós somos, positivamente, uma cidade encovada, ou, melhor, encavacada – Tenho dito.

PANGLOSS – Mim gostar desta rapaz. Yes! (Entra Zé).

 

*

 

ZÉ (Com um cartão numa bandeja) – Um cartão, Sr. Tainha.

TAINHA – Deixa ver. (Lendo) O «Cisne da Arcada» centro da boa e má língua local, abraça efusivamente o sábio Pangloss e oferece-lhe, como recordação de Aveiro, dois belos exemplares das peras de Eixo. (Para Zé) Então, as peras?

ZÉ – As peras estão lá dentro.

TAINHA – Está bem. Podes ir.

«DEMOCRATA» (lendo) – Por absoluta falta de espaço, não podemos publicar a carta do Dr. Lopes de Oliveira, de Oliveira de Azeméis. Está de serviço a farmácia Cabral.

ZÉ – Você sempre me saiu um maduro!... (Sai)

 

*

 

«O DE AVEIRO» (Lendo) – Tudo o que aqui dissemos, desde a implantação da República, saiu certo. Nós somos um verdadeiro saragoçano. O nosso país é um carnaval constante. Não há remédio que o salve. Nem o Grijó é capaz de o endireitar. Está tudo perdido! Tudo perdido! Tudo! Isto está a pedir muita... (Interrompe com um ataque de tosse).

PANGLOSS – Oh! (Faz o gesto de dar pancada).

«AVEIRO SPORTlVO» (Idem) – No domingo, houve encontro entre o 11 da Azurva e o F. C. O. H. P. de S. Bernardo. Venceu o primeiro por 4 a zero. Não gostámos da arbitragem do Sr. Duarte Simão. Para outra vez será melhor escolher outro que pesque mais disto.

«CORREIO DE AVEIRO» – O «Correio de Aveiro» tem um princípio: a Murtosa; um meio: a Murtosa; um fim: a Murtosa.

«VOZ DO POVO» – Camaradas! Camaradinhas! Para a frente é que é o caminho! Vamos à conquista do pão: a fome não tem lei!  / 25 /

PANGLOSS – Yes! Com foma não se pode viver! Yes!

«ALMA ACADÉMICA» – Rapazes! Tenhamos fé! Confiemos na força dos nossos pulmões e no entusiasmo, sempre esplendoroso, dos nossos corações! Sursum corda!

PANGLOSS (Levantando-se) – Aveira ter boas alavancas. Aveira querer progredir. Mim querer ficar para sempra em Aveira! Aqui tudo está good!

TAINHA – Viva o Dr. Pangloss!

TODOS – Viva! Viva Pangloss!

TAINHA (Cantando)

Sem esta filosofia

não há terra que remoce!

Digam todos neste dia:

– Viva, viva Pangloss!

 

TODOS – Sem esta filosofia, etc. (Entra Zé).

 

*

 

ZÉ (Um tanto comprometido) – Sr. Tainha...

TAINHA – Que temos?

ZÉ – É que... Não sei se...

TAINHA – Vamos! Fala!

ZÉ – É que está ali a «Feira de Março», que deseja entrar; mas vem tão maltrapilha, tão pelintra...

TAINHA – Que tenha paciência! E mais ninguém?

ZÉ – Há um par de botas.

TAINHA – Um par de botas?!

ZÉ – Mandaram-nas da Sapataria Miguéis. Diz que é para o descomunalíssimo talento do Dr. Pangloss.

TAINHA – Põe-nas no quarto de Sua Excelência.

ZÉ – Ainda há mais.

TAINHA – Mais botas?!

ZÉ – Não, Senhor! Mas agora é que não sei se deva dizer. Receio ser indiscreto.

TAINHA – Desembucha, homem!

ZÉ – É um esqueleto.

PANGLOSS (Erguendo-se) – Esquelete?!

ZÉ – São as «Ossadas da Guerra» do Capitão Rebocho.

TAINHA – Que entrem as «Ossadas»! (Apagam-se as luzes. Saem todos, menos Tainha e Pangloss, que andam às apalpadelas).

 

*

 

PANGLOSS – Mim nô gostar destas brincadeiras. Nô achar graça nenhuma.

TAINHA – Tenha paciência, Dr. A minha luz é intermitente. (Entra D. Eléctrica e oito lâmpadas. Aparece a luz. Pangloss esfrega os olhos).

D. ELÉCTRICA E LÂMPADAS (Cantando)

Nossa luz

aqui penetra,

luz de truz,

pois é eléctrica.

 

Se ela se apaga

por um momento,

logo se alaga

o escurecimento.

 

É a melhor,

a mais barata,

mas a pior       | Bis

pra zaragata   |    "

 

D. ELÉCTRICA –

Nem somente o sol e mais a lua,

com seus claros, vivos raios de ouro

e a sua luz violenta e crua

iluminam o mundo com um tesouro.

 

Bruxuleando firme, rebrilhando,

quando a chama intensa nos produz,

sente-se a alma quente, volitando

em torno, em redor da nossa luz.

 

As estrelas sidéreas, luminosas,

sentem-se mal de nos ver cintilar,

e cerram-se, apagando, invejosas,

o fulgor que elas têm em seu olhar.

 

CORO –

As mariposas douradas     | Bis

em redor de nós volitam;    |   "

e de luz embriagadas             | Bis

dentro de nos se precipitam  |   "

 

PANGLOSS – D. Electrique nô fazer mais graças dessas!

D. ELÉCTRICA – Engana-se, Senhor! Isto não são graças. São síncopes que me dão. Ando muito fraca, muito anémica. Receitaram-me ares dos Campos; mas o que eu precisava era ir para o... Alfusqueiro. Falta-me... Aquilo com que se compram os melões! E, se não fosse o Dr. Ferramenta... Já não era viva. (Entram Zé, populares, um polícia e um bombeiro).

ZÉ (Com um lampião aceso na mão, os populares armados de bengala e o bombeiro com uma agulheta) – Ah; É a Senhora Eléctrica? É boa! E nós a julgarmos que eram as «Ossadas», ou almas do outro mundo!

/ 26 /

TODOS – Ah, ah, ah! (Cantam).

 

Se acaso aqui vimos,

quais outros D. Quixotes,

creiam bem que aqui sentimos

o coração aos piparotes.

 

Não é medo, vamos jurar,

nem susto ou aflição;

para na cidade andar,

é preciso lampião!

 

Ah, ah, ah, ah!

            Ah, ah, ah!

            Ah, ah, ah!

Viva a pândega,

            Olé, olá!

Viva a pândega

            e a folia,

            o prazer

            e a alegria!

            Ah, ah, ah!

            Ah, ah, ah!

Viva a pândega

            e a folia,

            olé, olá.

 

Não somos conspiradores,

nem se quer mal a ninguém;

só da ordem amadores

e da rapioca também.

 

Sem bulha nem matinada,

Sem barulho de maior,

Cá trazemos gente armada,

pra não irmos pró «major».

 

Ah, ah, ah, ah!, etc.

 

(Pangloss e Tainha riem-se. Cai o pano – Fim do 1º Acto)

 

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