O FIM DO MONSTRO
Dorme a cidade nobre e bela do
oriente.
Adormeceu há pouco ouvindo o mar
fremente
Contar-lhe, com paixão e
paternais cuidados,
Um caso sucedido em tempos
afastados.
Era um caso d'amor cujo
protagonista,
Um príncipe radioso e bom como a
Beleza,
Obrara colossais prodígios de
bravura
P'ra libertar a sua angélica
princesa
Da tenebrosa dor duma prisão
escura.
E ao ver adormecida a histórica
cidade,
O mar arranca então um hino
soluçante,
Tão cheio d'agonias,
Tão claro de saudade
Como se ali batesse o coração
gigante
Do velho Jeremias.
Tudo deserto. O céu, soturno e
carregado,
Sem uma luz sequer no âmbito
infinito,
Ergue-se sobre nós como o tecto
pesado
Dum cárcere maldito.
Rompem, de quando em vez, do
fundo dum tugúrio
Ou dum palácio ingente
A asa dum soluço, o sopro dum
murmúrio
Como jactos fatais de sangue
efervescente.
/ 48 /
Rebenta além um ai. Ele resume a
dor
Desta infeliz cidade.
É a lava da paixão fremindo pelo
horror
Das voragens sem fim duma
fatalidade.
É toda um'alma ideal caindo das
montanhas
De séculos de glória
À escuridão gelada, às lúgubres
entranhas
Dos gelos eternais da Sibéria da
História.
É como o ai febril duma cativa
bela
Que estende o seu olhar pela
amplidão sem fim
E já não vê luzir a compassiva
estrela,
O astro sedutor
Que um dia lhe doirou a torre de
marfim
Assente num sorriso esplêndido
d'amor.
Ergue-se a Morte, uivando, em
meio das ruínas.
Distantes, os leões, frementes
como a lava,
Descerram torvamente as bocas
purpurinas.
Passa uma sombra, além, fremente
e lacrimosa.
É a alma desta Pátria, inda
ontem majestosa,
Arrastando o seu manto humílimo
d'escrava.
Ao longe explui a voz satânica e
mordente,
Dominadora e forte,
Da sentinela atroz das feras do
Ocidente
De guarda a este campo horrífico
da Morte.
Os templos colossais,
esfíngicos, funéreos,
Alguns tombados já ao ódio dos
tiranos,
Têm a voz potente, imensa, de
Mistérios
De centenares d'anos.
Eles viram passar as hostes
triunfantes
De volta das batalhas.
Ouviram ressoar o grito dos
gigantes,
Sentiram palpitar o seio das
muralhas.
Eles viram passar os luzidos
cortejos
Dos reis omnipotentes.
Sentiram coruscar muitos milhões
de beijos
E ouviram soluçar muitos milhões
de crentes.
Morreram gerações, tombaram
monumentos
E tronos seculares.
E eles desafiando os ímpetos dos
ventos
Como desafiando as cóleras dos
mares.
Mas hoje, sobre o pó ou tristes
como párias,
Soturnos, pensativos,
Os templos colossais de
centenares d'anos
Só vêm através das ruas
solitárias,
Carpindo – a dor imensa e santa
dos cativos.
Rugindo – o ódio rubro e infame
dos tiranos.
E a noite avança. Agora, o
ingente mar profundo,
Como que se retrai, tomado de
surpresa.
Lateja fortemente o coração do
mundo.
Dilata-se, assombrado, o olhar
da natureza.
Há o pavor gelado, estranho,
indecifrável,
Das trágicas visões, das
convulsões fatais.
Como que se presente o passo
formidável
D' inúmeros milhões d'espectros
colossais.
Tremem, violentamente, as almas
das colinas.
E súbito – visão macabra e
repelente!.
Avançam através das lúgubres
ruínas
Dois hórridos clarões de luz
fosforescente.
Estala uma feroz, diabólica
risada.
E enchendo todo o mar e toda a
imensidão,
Rompe uma voz cruel, tremenda,
desvairada,
Mais rude do que a voz potente
dum trovão:
«Levanta-te, cidade! Erguei-vos,
gerações!
Eu sou um domador de povos e de
reis
Mais forte que a Ambição, mais
forte que as Paixões,
Tenho na minha mente um círculo
de leis
E tenho no meu peito um antro de
leões.
Fui eu que conduzi às cóleras
supremas
As feras imortais a que chamais
tiranos.
Liguei-as bem a mim com um
milhão d'algemas
E vê-Ias-ei rolar, pelos montes
dos anos,
Por entre aluviões d'imprecações
extremas.
Fidalgo e sedutor, subtil em
artifícios,
Eu tive muita vez as rútilas
belezas
Chorando no meu peito as
lágrimas dos vícios.
Queimou-me muitas vez a carne
das princesas,
Sentei-me muita vez nos tronos
pontifícios.
Depois de presidir à morte d'um
país,
Depois de sentir bem o temporal
desfeito,
Das cóleras brutais, sangrentas
e Febris,
Eu vou-me descansar na doce paz
do leito
E fico-me a dormir como um
burguês feliz.
Na noite em que a Polónia, a
velha peregrina,
Soltou, sob os meus pés, o seu
extremo arranco,
Os cortesãos gentis da ardente
Catarina
Viram-me atravessar, como um
fantasma branco,
Os mágicos salões da régia
libertina.
A arte d'intrigar é a minha
acção mais grata.
Ninguém, como eu, baralha as
cartas da Politica.
Fui ontem canibal, sou hoje
diplomata.
Iludo os meus heróis na
ocasião mais crítica
Cantando do Progresso a ingénua
serenata.
Mas nesta lide intensa,
aspérrima, sombria,
Neste lutar feroz de tanta
majestade,
Eu sei que vou perdendo a minha
simpatia.
Custa-me já erguer ao peso
d'esta idade
E sofro d'amaurose e sofro
d'anemia.
/ 49 /
Mas hei-de reflorir. A minha
omnipotência
Ainda freme e impera em seu
fulgor imenso.
Não pode triunfar tamanha
incongruência.
Não pode triunfar tão rude
contra-senso:
Criar-me o Coração, matar-me a
Consciência!»
E fica silencioso, aterrador
funéreo.
O seu olhar é como o tremebundo
olhar
Da Morte contemplando um vasto
cemitério.
A própria escuridão palpita como
o mar.
E, rápido, uma voz longínqua e
imperativa,
Severa como a voz da cólera de
Deus,
Fulgura como a luz duma centelha
viva
Caindo da amplidão intérmina dos
céus.
E a voz ordena:
«Adiante, adiante, canibal!
Eu sou a Consciência, a mártir
imortal!
Adiante, celerado! Há séculos
sem fim,
Desde que a voz de Deus caiu
sobre Caim
Que eu luto contra ti, esquálido
Proteu!
Adiante, salteador! O mundo
agora é meu!»
E nisto o velho mar, leão
alucinado,
Atira para o ar os vagalhões
gigantes,
Titânica explosão dum tédio
concentrado.
Os raios e os trovões estalam,
fulminantes.
A terra, rebramindo em fortes
cataclismos,
Arranca imprecações, em fogo,
das entranhas.
Relampagueiam ódio os olhos dos
abismos,
Trovejam maldições as bocas das
montanhas.
Perpassam, conclamando, as
sombras desvairadas
Das vítimas gentis das raivas
dos tiranos.
Goteja-lhes do peito o sangue
das espadas,
Lampeja-lhes no olhar todo o
rancor dos anos.
O Céu inclina um pouco a fronte
tenebrosa.
Os arrancos do mar sucedem-se
violentos.
A chuva cai feroz, tremenda,
prodigiosa,
Por entre o assobiar terrífico
dos ventos.
Sibilam pelo ar satânicas
pedradas.
Ululam torvamente as campas
famulentas.
Chasqueia a escuridão. Estrugem
gargalhadas
Mais rudes que punhais de
lâminas sangrentas.
E o Génio Mau da Guerra, inerte,
dominado,
Misterioso como os ódios mais
profundos,
Caminha como um ébrio, um pária
escalavrado,
Para o extremo horror, p'ra a
solidão dos mundos.
Pouco depois surgia o sol
omnipotente.
Do peito varonil da histórica
cidade
Rompia o brado imenso, o grito
refulgente
E audaz da liberdade.
Partiam-se os grilhões de toda a
escravidão.
E o mar profundo, além, fitando
o azul dos céus,
Vibrava um hino imenso, um
cântico à Razão
Como se fora a voz altíssona de
Deus. |