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N.º 11

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1971 

Murtosa

Por Jaime Vilar

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S. Paio da Torreira

Não é tarefa fácil para um cronista amador, noviço na etnografia e política dos povos, falar do panorama económico-social da Murtosa. A Murtosa é um dos mais novos e mais pequenos concelhos da metrópole. A sua posição geográfica deixou-a a desbanda das grandes vias de comunicação com importantes centros comerciais e industriais, debruçada sobre a Ria, Mar e Campo, cismando no seu destino numa quietação só perturbada pelas emoções constantes da ida e vinda de seus filhos dispersos pelo mundo. Oliveira Martins classificou de «anfíbia» a vida dos homens nesta região marinhoa onde se deu, no lento e longo cerimonial das vicissitudes dos séculos, o mais feliz casamento da terra e a água. Estará aqui a razão suficiente do marasmo da Murtosa? O seu desenvolvimento, na certeira opinião de Jaime de Magalhães Lima, profundo conhecedor da gente ribeirinha, vai-se processando segundo o ritmo de evolução da sua constituição antropológica somática inicial à qual se sobrepôs a constituição de uma alma nova procedendo da acumulação dos resíduos anímicos de milhares de gerações que se sucederam e cruzaram moralmente com impetuosa intensidade.

O comércio reduz-se às estreitas limitações dos interesses individuais. Embora concorde que «a gente da Murtosa exerce o comércio com uma largueza que não tem semelhante em quaisquer outros povos das nossas províncias, disseminando-se por toda a terra portuguesa e em toda colhendo e amealhando para enriquecer os casais onde nasceu», há-de entender-se que essa actividade mercantil, ambulante ou sedentária, é toda pessoal, sem ambições colectivas que extravasem as necessidades e sonhos do próprio ninho. Por ele afere as medidas de trabalho a peixeira, o taberneiro, o merceeiro, o negociante. Esta exploração mercantil é, sem dúvida, cosmopolita, universal, e exerce-a com a / 17 / mesma facilidade na Murtosa, na capital, na América ou na Austrália, onde a gente da Murtosa mantém os mesmos processos de subsistência, os mesmos costumes, a mesma voz, a mesma personalidade.

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Barco ao mar, na Torreira – arte da xávega

Um mercado promissor e merecedor de recinto adequado – preocupação actual da Câmara Municipal – atrai à Praça de Pardelhas, uma vez por semana, caravanas de mercadores de fora-parte. E o murtoseiro compra com mais engodo a mercadoria chegada do que aquela que se lhe oferece todos os dias nos estabelecimentos locais.

A indústria, que alimenta o grande comércio, está representada apenas na fábrica de conservas «Comur», com larga projecção e muita aceitação no mercado internacional, cujas exigências a capacidade limitada de fabrico não pode satisfazer completamente nos prazos e condições desejadas. Aliás a crise da pesca afecta profundamente o ritmo da produção. Os pescadores vão escasseando da Ria e do Mar. A xávega, que se pratica ainda na Torreira, é relíquia do passado mantido com unhas e dentes por um punhado de briosos murtoseiros. Pouco pesa na economia municipal. As peixeiras de canastra ao domicílio vão cedendo a função a carrinhas e carretas que «limpam» o pescado para a grande indústria conserveira e hoteleira. Apesar de tudo, o mercado do Peixe em Pardelhas é dos mais ricos e frequentados em toda a orla ribeirinha. É diário.

O bacalhau, o «dollar», qualquer outro ofício mesmo de pá e pico, em qualquer parte do Mundo, que cheire a rendoso, atrai e satisfaz o murtoseiro que, previdente, acautelado, temeroso do futuro dos seus, deixa barcos e redes, enxada e arado, pela aventura de emigrar. E não será verdade que o que a Murtosa tem presentemente de válido se deve ao emigrante? Pena é que a iniciativa particular não passe além do alindamento e conforto do berço e não se atreva a investimentos que prendam a população à terra, dando-lhe a certeza do trabalho quotidiano, a garantia segura de um salário justo e de um futuro sem apreensões.

Quando a Murtosa congregar todas as potências dispersas e reconhecer que contém em si o «abre-te, Sésamo» de um opulento destino, só então terá dada o passo decisivo para sua total valorização e para o seu definitivo enquadramento nos planos económicos da Nação. Vivemos numa era em que toda a actividade se realiza e desenvolve plenamente na equipa, no agrupamento, na corporação, e estiola e morre quando se isola no egoísmo, na busca do interesse doméstico, no âmbito asfixiante da capacidade individual. O conceito social de indivíduo está em vias de uma formulação nova que, futuramente, só poderá admiti-lo em termos de abstracção.

A pobreza dos nossos actuais recursos afecta, também, e de forma angustiante, a lavoura. O campo está deserto. As terras, maninhas. A gente foge da lavoura para a fábrica e para fora. Todos os esforços já tentados para colectivizar a tarefa agrícola e salvá-la da total ruína, fracassaram por falta de apoio de quem podia e devia apoiar, pela barreira difícil de tradições ingénitas, pela desconfiança com que o lavrador encara novas promessas depois de sofrer frustrações sem conta.

Presentemente assistimos a um despertar geral para a exploração de rendas esquecidas, mortas ou ignoradas, que as disponibilidades do Governo vão apadrinhando. A Torreira perdeu já seu ar pacato que a sequestrou até há pouco do rol das grandes praias do nosso litoral. Hoje, ter casa na Torreira, veranear na Torreira, é timbre de luxo. Não é de surpreender, portanto, que a nossa Edilidade olhe para ela como recôndito tesouro, fonte inexaurível de recursos e de fama.

A Torreira é eco ressoante das realidades turísticas do concelho.

É certo – com magoada surpresa sublinhamos – que as suas atracções não foram ainda tão longe como seria de esperar e que não tenham merecido de entidades responsáveis pela revelação de Portugal Desconhecido melhor atenção. Vejo, por exemplo, com assiduidade na Televisão Portuguesa, reportagens e séries de imagens de romarias típicas colhidas em cantinhos escondidos do País, cantinhos de nome perdido entre os nomes das coisas pequenas e remotas. Quem se lembrou de chamar a atenção da TV para as Festas Concelhias, as festas do São Paio? Alguma coisa falta no nosso turismo. O São Paio é nota típica da nossa gente que ali se retrata no seu fácies sócio-religioso, com apontamentos interessantes de folclore. Romaria enquadrada entre Mar e Ria, num quadro de belezas sem par no Mundo, é, sem metáfora poética, uma festa de confraternização da Terra e Água, do Mar e Campo, do lavrador e do pescador, do rico e do pobre, dos velhos e dos novos.

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Mar da Torreira - Barco de pesca (arte da xávega)

Apesar destas e doutras lacunas que o tempo preencherá, o Turismo é, nesta hora, a mais válida certeza económica da Murtosa. A Ponte da Varela, lançada sobre a Ria – magnífico dom da Natureza e Alma-Mater da nossa gente – veio facilitar a comunicação com a banda de cá, relegando para lugar secundário a obsoleta carreira de lanchas. A projectada estrada Murtosa-Aveiro será complemento arrojado da teia de ligações que porão a Murtosa na perspectiva de grandiosas realidades. Este sopro de progresso será, porventura, a viragem de uma página na história do concelho a marcar para sempre estas três décadas finais do nosso século. A. Câmara da Murtosa, mãos dadas / 18 / com a Junta de Turismo da Torreira, com a participação indispensável do Governo da Nação e com a compreensão e audácia das iniciativas particulares, está empenihada nesta empresa de valorização.

Traçam-se novas e amplas estradas, modernizam-se as antigas. Todo o concelho está electrificado, e a rede de distribuição de energia eléctrica vem sofrendo metódica e eficiente remodelação, dentro das exigências do consumo muitas vezes multiplicado na última década.

O esquema de perspectivas e o resumo de actividades da Murtosa que acabámos de traçar bastará para uma sumária e rápida visão do «status quo» do concelho. O estudo em pormenor deste tema fica para os entendidos na matéria. Para mim é altura do ponto final.

 

páginas 15 a 18

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