S. Paio da Torreira
Não é tarefa fácil para um cronista
amador, noviço na etnografia e política dos povos, falar do panorama
económico-social da Murtosa. A Murtosa é um dos mais novos e mais
pequenos concelhos da metrópole. A sua posição geográfica deixou-a a
desbanda das grandes vias de comunicação com importantes centros
comerciais e industriais, debruçada sobre a Ria, Mar e Campo,
cismando no seu destino numa quietação só perturbada pelas emoções
constantes da ida e vinda de seus filhos dispersos pelo mundo.
Oliveira Martins classificou de «anfíbia» a vida dos homens nesta
região marinhoa onde se deu, no lento e longo cerimonial das
vicissitudes dos séculos, o mais feliz casamento da terra e a água.
Estará aqui a razão suficiente do marasmo da Murtosa? O seu
desenvolvimento, na certeira opinião de Jaime de Magalhães Lima,
profundo conhecedor da gente ribeirinha, vai-se processando segundo
o ritmo de evolução da sua constituição antropológica somática
inicial à qual se sobrepôs a constituição de uma alma nova
procedendo da acumulação dos resíduos anímicos de milhares de
gerações que se sucederam e cruzaram moralmente com impetuosa
intensidade.
O comércio reduz-se às estreitas
limitações dos interesses individuais. Embora concorde que «a gente
da Murtosa exerce o comércio com uma largueza que não tem semelhante
em quaisquer outros povos das nossas províncias, disseminando-se por
toda a terra portuguesa e em toda colhendo e amealhando para
enriquecer os casais onde nasceu», há-de entender-se que essa
actividade mercantil, ambulante ou sedentária, é toda pessoal, sem
ambições colectivas que extravasem as necessidades e sonhos do
próprio ninho. Por ele afere as medidas de trabalho a peixeira, o
taberneiro, o merceeiro, o negociante. Esta exploração mercantil é,
sem dúvida, cosmopolita, universal, e exerce-a com a
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mesma facilidade na Murtosa, na capital, na América ou na Austrália,
onde a gente da Murtosa mantém os mesmos processos de subsistência,
os mesmos costumes, a mesma voz, a mesma personalidade.
Barco ao mar, na Torreira – arte da
xávega
Um mercado promissor e merecedor de
recinto adequado – preocupação actual da Câmara Municipal – atrai à
Praça de Pardelhas, uma vez por semana, caravanas de mercadores de
fora-parte. E o murtoseiro compra com mais engodo a mercadoria
chegada do que aquela que se lhe oferece todos os dias nos
estabelecimentos locais.
A indústria, que alimenta o grande
comércio, está representada apenas na fábrica de conservas «Comur»,
com larga projecção e muita aceitação no mercado internacional,
cujas exigências a capacidade limitada de fabrico não pode
satisfazer completamente nos prazos e condições desejadas. Aliás a
crise da pesca afecta profundamente o ritmo da produção. Os
pescadores vão escasseando da Ria e do Mar. A xávega, que se pratica
ainda na Torreira, é relíquia do passado mantido com unhas e dentes
por um punhado de briosos murtoseiros. Pouco pesa na economia
municipal. As peixeiras de canastra ao domicílio vão cedendo a
função a carrinhas e carretas que «limpam» o pescado para a grande
indústria conserveira e hoteleira. Apesar de tudo, o mercado do
Peixe em Pardelhas é dos mais ricos e frequentados em toda a orla
ribeirinha. É diário.
O bacalhau, o «dollar», qualquer
outro ofício mesmo de pá e pico, em qualquer parte do Mundo, que
cheire a rendoso, atrai e satisfaz o murtoseiro que, previdente,
acautelado, temeroso do futuro dos seus, deixa barcos e redes,
enxada e arado, pela aventura de emigrar. E não será verdade que o
que a Murtosa tem presentemente de válido se deve ao emigrante? Pena
é que a iniciativa particular não passe além do alindamento e
conforto do berço e não se atreva a investimentos que prendam a
população à terra, dando-lhe a certeza do trabalho quotidiano, a
garantia segura de um salário justo e de um futuro sem apreensões.
Quando a Murtosa congregar todas as
potências dispersas e reconhecer que contém em si o «abre-te,
Sésamo» de um opulento destino, só então terá dada o passo decisivo
para sua total valorização e para o seu definitivo enquadramento nos
planos económicos da Nação. Vivemos numa era em que toda a
actividade se realiza e desenvolve plenamente na equipa, no
agrupamento, na corporação, e estiola e morre quando se isola no
egoísmo, na busca do interesse doméstico, no âmbito asfixiante da
capacidade individual. O conceito social de indivíduo está em vias
de uma formulação nova que, futuramente, só poderá admiti-lo em
termos de abstracção.
A pobreza dos nossos actuais
recursos afecta, também, e de forma angustiante, a lavoura. O campo
está deserto. As terras, maninhas. A gente foge da lavoura para a
fábrica e para fora. Todos os esforços já tentados para colectivizar
a tarefa agrícola e salvá-la da total ruína, fracassaram por falta
de apoio de quem podia e devia apoiar, pela barreira difícil de
tradições ingénitas, pela desconfiança com que o lavrador encara
novas promessas depois de sofrer frustrações sem conta.
Presentemente assistimos a um
despertar geral para a exploração de rendas esquecidas, mortas ou
ignoradas, que as disponibilidades do Governo vão apadrinhando. A
Torreira perdeu já seu ar pacato que a sequestrou até há pouco do
rol das grandes praias do nosso litoral. Hoje, ter casa na Torreira,
veranear na Torreira, é timbre de luxo. Não é de surpreender,
portanto, que a nossa Edilidade olhe para ela como recôndito
tesouro, fonte inexaurível de recursos e de fama.
A Torreira é eco ressoante das
realidades turísticas do concelho.
É certo – com magoada surpresa
sublinhamos – que as suas atracções não foram ainda tão longe como
seria de esperar e que não tenham merecido de entidades responsáveis
pela revelação de Portugal Desconhecido melhor atenção. Vejo, por
exemplo, com assiduidade na Televisão Portuguesa, reportagens e
séries de imagens de romarias típicas colhidas em cantinhos
escondidos do País, cantinhos de nome perdido entre os nomes das
coisas pequenas e remotas. Quem se lembrou de chamar a atenção da TV
para as Festas Concelhias, as festas do São Paio? Alguma coisa falta
no nosso turismo. O São Paio é nota típica da nossa gente que ali se
retrata no seu fácies sócio-religioso, com apontamentos
interessantes de folclore. Romaria enquadrada entre Mar e Ria, num
quadro de belezas sem par no Mundo, é, sem metáfora poética, uma
festa de confraternização da Terra e Água, do Mar e Campo, do
lavrador e do pescador, do rico e do pobre, dos velhos e dos novos.
Mar da Torreira - Barco de pesca (arte
da xávega)
Apesar destas e doutras lacunas que
o tempo preencherá, o Turismo é, nesta hora, a mais válida certeza
económica da Murtosa. A Ponte da Varela, lançada sobre a Ria –
magnífico dom da Natureza e Alma-Mater da nossa gente – veio
facilitar a comunicação com a banda de cá, relegando para lugar
secundário a obsoleta carreira de lanchas. A projectada estrada
Murtosa-Aveiro será complemento arrojado da teia de ligações que
porão a Murtosa na perspectiva de grandiosas realidades. Este sopro
de progresso será, porventura, a viragem de uma página na história
do concelho a marcar para sempre estas três décadas finais do nosso
século. A. Câmara da Murtosa, mãos dadas
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com a Junta de Turismo da Torreira, com a participação indispensável
do Governo da Nação e com a compreensão e audácia das iniciativas
particulares, está empenihada nesta empresa de valorização.
Traçam-se novas e amplas estradas,
modernizam-se as antigas. Todo o concelho está electrificado, e a
rede de distribuição de energia eléctrica vem sofrendo metódica e
eficiente remodelação, dentro das exigências do consumo muitas vezes
multiplicado na última década.
O esquema de perspectivas e o resumo
de actividades da Murtosa que acabámos de traçar bastará para uma
sumária e rápida visão do «status quo» do concelho. O estudo
em pormenor deste tema fica para os entendidos na matéria. Para mim
é altura do ponto final. |