MURTOSA
«As mais longínquas recordações da
Murtosa, dos seus modos, das suas coisas, da sua gente, datam para
mim dos tempos de férias que eu, estudante do Seminário, vinha
passar com a minha mãe em Aveiro, na nossa pequenina casa da Rua da
Estação.
Eram dois ou três núcleos de
representantes femininos da raça que faziam por ali perto o seu
quartel-general, donde irradiavam em todas as direcções, num largo
diâmetro; quase todas mulheres alentadas, vestidas de preto, com um
chapelinho tão chato sobre a cabeça que dava ideia de um prato raso
voltado para baixo ou, se o tingissem de encarnado ou de verde e lhe
pusessem as borlas, e não fosse irreverência dizê-lo, do chapelinho
simbólico que encima os brasões dos bispos e dos cardeais.
Distinguiam-se elas em primeiro
lugar no bairro pela piedade exuberante dos seus corações; davam
logo sinal da sua devoção a Jesus, a Maria, aos Santinhos, como a
violeta dá logo sinal de si pelo seu aroma ou o orvalho dos campos
pela suave frescura que espalha à volta.
Ao mesmo tempo era gente de trabalho
rijo e de infatigável indústria. Para o seu comércio de galinhas, de
ovos, de banha de porco nas cantarinhas de barro preto de Arada,
elas caminhavam como galgos as estradas todas da região, recolhiam
quantidades de bicos abertos nas suas gaiolas de rede ou de ripas,
acumulavam pirâmides de ovos sem quebrar nem um só, sustentavam com
graça nas ancas, uma de cada lado, com simetria perfeita, como se
fossem âncoras de jaspe ou de alabastro, duas bilhas de unto.
Se alguém se aproximava no caminho
dalguma dessas «abelhas industriosas», como se diz no ofício de
Santa Cecília, e lhe pedia troco de mil escudos ou de nota maior, se
houvesse, ela deitava logo mão à algibeira que lhe pendia ao flanco
e satisfazia, quase sem parar, ao desejo do transeunte. Talvez que
não pudessem ser tão prontos os Armazéns do Chiado, por exemplo.
Só se lhes poderia não levar
totalmente a bem que, ao passo que enchiam de aves e de gemas de ovo
os mercados da vizinha Espanha, a nós nos deixassem por assim dizer
sem um caldo de galinha para as nossas doenças e sem sombra de
omeleta para o nosso fastio. Mas os grandes comércios quase se não
compreendem sem estes profundos desequilíbrios, e é ter então um
bocado de paciência.
Também sabiam, no intervalo dos
negócios ou das devoções, descansar ao sol ou ao luar placidamente e
regalar a vizinhança das cores pitorescas da fala própria da sua
Murtosa.
Mais tarde, quando já ensinava em
Coimbra, ou melhor, quando fingia com ensinar em Coimbra, fui à
Murtosa fingir que pregava um sermão e vim de lá com a ideia de que
a Murtosa, entre as freguesias maiores de todo o país, era um vasto
terreno onde, por privilégio inaudito, não germinava a mais
pequenina gramínea de escândalo; o jardineiro não tinha lá nada que
arrancar ao solo, era só regar e dar graças.
Era de crer que um sangue destes,
tão vigoroso, tão são, não se contivesse apenas nos estreitos
limites do seu clã e tentasse, como tentou, emigrações de largo
estilo.
Lá ao longe, porém, em Lisboa, na
Ribeira, pelo Arsenal, a varina não se deixou tocar e muito menos
absorver pelo meio, conservou e parece que conserva sempre a mesma
pureza no coração, o mesmo Cristo ao pescoço e na alma, a mesma
alegria no rosto, o mesmo vigor indomável nos braços, os mesmos
traços inconfundíveis da sua origem.
É falso que, quando elas passam com
as suas canastras de sardinha ou de pescada à cabeça, salpiquem de
propósito os que cruzam com elas nas
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passagens estreitas do Arsenal. Isso poderá acontecer às vezes, mas,
salvo defesa legítima, é fora de toda a intenção malfazeja.
Lembra-me, quando estava em Lisboa,
de uma delas que foi vítima uma vez da sanha de um alfamista; não
sei se o enterro de Sidónio Pais, esse mesmo, foi maior que o dela,
se não sou vítima de exageração.
(C. V., n.º 598, de 26-9-1942, pg. 1)
Num esboço da Murtosa, dos seus
campos, das suas águas, do seu panorama, da sua gente, ainda que
imperfeito ou mais que imperfeito, ainda que traçado às escuras pela
mão de um cabouco, como aquele que eu comecei a tentar nas linhas
anteriores, não poderia certamente deixar de acentuar uma nota,
entre todas talvez a que deita luz, ou uma luz mais do céu: a de ser
ela, a Murtosa, um viveiro de vocações para a Igreja.
Dizem-me que os jardins da Murtosa
já começaram a não ser tão ricos destas flores, como foram em tempos
passados, como foram ontem, e que, agora, já não seria pouco
contá-los por duas ou três vezes nos dedos das mãos. Não sei. O Sr.
Arcipreste quis ter à volta de mim, na visita, os seminaristas e os
sacerdotes que nasceram em berços da terra, embalados pela sua
aragem; fez uma espécie de concílio patrício do clero da freguesia.
Ora não direi que fosse propriamente uma capela sixtina nos dias das
grandes solenidades de Roma; não direi mesmo que fosse a catedral de
Lisboa ou de Braga, em maré-cheia de pontifical. Mas o cortejo das
sobrepelizes, das dalmáticas e das capas de asperges era longo e
vistoso na procissão; e, na Igreja, não só não havia acumulação de
deficiência de ofícios e ministros, como até sobejavam clérigos
para, assentados sem responsabilidades litúrgicas nos cadeirais,
darem ideia de cónegos ou de beneficiados de alguma basílica. Não
era ali com certeza que eu podia queixar-me ao povo de ser enorme a
seara e serem poucos os operários para a trabalharem.
Vieram do norte e do sul, de Évora,
do Porto, de Penafiel e de Beja, e será crível doutras proveniências
que escapam no momento à minha memória. Havia lá um monsenhor e um
cónego, dois arciprestes, uma dúzia de párocos, e outra, senão mais,
de aspirantes mais ou menos próximos do sacerdócio. E o quadro,
ainda assim, não estava cheio. Um ou outro, pela sua idade,
conjuntamente com os embaraços de comunicações que nos tolhem os
passos à margem da guerra, só de longe e em espírito assistiu à
concentração da Murtosa. Outros ainda, como um capitular da Sé de
Évora, o cónego Silva, nem os intimidaram as distâncias ou os
desagravos actuais das viagens só os retiveram no seu posto atenções
in loco e manobras especiais dos cargos que
desempenham.
Eu creio que é ainda principalmente
à Murtosa – e agora quando digo Murtosa quero alargar um pouco mais
a vista e referir-me não só à terra como a toda a região murtoseira
– creio que ainda é principalmente a ela que a nova Diocese de
Aveiro deve a consolação e a glória de conceder vocações a outras
que, embora mais ricas de tudo o mais, nos pedem de qualquer maneira
a esmola de sacerdotes. Évora, Beja, Coimbra, o próprio Patriarcado,
têm por lá, em maior ou menor abundância, filhos que adoptaram das
beiras do nosso Vouga.
(C.V. n.º 599. de 3-10-1942, pg. 1)
TORREIRA
Eu não gosto de exageros de espécie
nenhuma, embora ache às vezes graça a certas palavras grandíloquas,
altissonantes, ou a certas imagens ou panoramas vistos à lente de
aumento, sem cerimónia coloridos, hipertrofiados, com que nós, na
febre do entusiasmo, pretendemos pôr em relevo a beleza que nos
fascina ou a admiração que acima de nós e da nossa pequena medida
nos ergue. Também a hipérbole pode servir para, feitos os devidos
descontos, ficarem as coisas no seu quadro justo.
Nesta ordem de ideias é que eu não
receio de dizer que, de todas as terras que eu conheço no mundo, sem
falar de Aveiro, porque afinal de um aspecto de Aveiro se trata,
outra não há que tenha um encanto, uma magia de águas, de sons, de
ruídos, uma luz tão doce, um sol tão límpido, um céu tão
transparente, tão meigo, como tem a Torreira. Das terras que não
conheço, se alguém me disser que há alguma em qualquer parte mais
linda do que a Torreira, tenham paciência, eu não acredito.
Barco Mercantel
E para prova é que eu, no passado
domingo, durante a procissão do rio ao mar, do mar ao rio, e do rio
pela lomba à igreja, com uma capa de asperges por cima dos ombros,
com uma mitra apertada na fronte, com um báculo de ferro maciço nas
mãos, à hora dum dia quente, senti por tal maneira refrescado a
velhice, acordados os lânguidos nervos, que, quando alguém me
perguntou se eu iria porventura cansado, eu respondi, quase
indignado pela injúria que essa dúvida poderia representar para os
ares da Torreira:
– Ó meu caro senhor, na Torreira nem
os velhos se cansam, ainda que os ponham solenemente debaixo dum
pálio, cobertos de espessas vestes umas por cima das outras, levando
às costas ou nos braços o peso de um mundo! Como é que na Torreira
se morre?
E o que ainda mais completa o enlevo
do quadro e lhe imprime carácter é que a gente que a anima está
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em perfeita harmonia com as cores inefáveis do ambiente que a cerca.
As criancinhas têm nos olhos a candura dos anjos; embora mais ou
menos torradas pelo sol do seu berço e pela áspera exalação das
águas, mesmo assim, descalcinhas algumas, de andarem habituadas aos
pés na areia, fariam lindas figuras no paraíso, com umas asas aos
ombros, a voar e a piar como os passarinhos à roda de Nossa Senhora.
Teria aqui Murillo farta fonte para se inspirar.
Dizem que os pescadores são rudes e
não se acanham lá muito de deitar a sua praga ao mar, às redes, aos
barcos. Isso não teria lá grande alcance e estaria para os
pescadores pouco mais ou menos como a camisola aos quadrados com que
andam cobertos ou como o barrete de maçaneta que, como uma bandeira,
lhes flutua à cabeça. Mas estes, é vê-los: sem afectação, sem
arranjos, todavia tão correctos, tão graves, tão sociais, tão
gentis, digamos mesmo tão afectuosos, tão abertos de alma, de
coração, que até faz bem estar com eles. Até na maneira como as
mulheres e as raparigas da terra se aproximavam do pálio para deitar
as suas flores à passagem do Bispo, com aquela compostura elegante e
modesta que faria lembrar o Arcanjo S. Gabriel no quadro da
Anunciação de Fra Angélico, pétala por pétala até à última, e depois
a reverência, o olhar, o sorriso final, confundindo-se em seguida na
multidão, até nisto, neste pequeno detalhe, se nota qualquer coisa
de polido, eu diria de aristocrático, se não tivesse medo de algum
sarcasmo, de diamante a luzir através das sombras da sua capa.
Está-se a ver portanto o aprazível
cenário que foi no fim, quando, ao sair da igreja, todos passaram
diante de mim e uns, com a moeda pronta nas mãos, outros a
procurá-la nos bolsos para a deitar na bandeja, foram enchendo das
suas esmolas a sacola do Seminário.
Quando eu dizia a um pequenito, por
exemplo: – Mas agora ficas sem dinheiro para os teus rebuçados – ele
encolhia os ombros num ar de isenção, e dizia: – Ora! – como quem
diz: não se trata agora de rebuçados! maiora premunt!
Quando eu dizia por exemplo à mulher
do sacristão ou a outras mulheres em igualdade de circunstâncias: –
Mas o seu homem já deu; já deu o seu filho! – elas, baixando os
olhos, quase envergonhadas do justo reparo, diziam algumas: somos
nove lá em casa! diziam outras: somos dez, somos doze! e
acrescentavam todas: não há nenhum lá que não queira dar!
(C.V. n.º 877 de 6-3-1948. pg. 2)
Do livro «Aveiro – Suas Gentes. Terras e Costumes» de D. João
Evangelista de Lima Vidal
*
* *
Por toda a Beira Litoral o mais
afamado e activo centro de pesca de arrasto era, naqueles tempos, na
costa da Torreira, e o seu peixe, mormente as sardinhas, desfrutava
as merecidas auras de celebridade retumbante, de saboroso que ele
era!... Com localização mais cerca e directa, tal entrepósito
achava-se ao alcance menos tormentoso e árduo, das isoladas
povoações serranas, perdidas pelas vertentes das montanhas
circundantes que só eram atingidas com suado custo e trabalheira
pertinaz. Modo de vida sacrificante, quer o suão encardisse os ossos
ou as frigideiras dum verão tórrido assassem as carnes dos azemeis
em recovas, palreiros, arrastando sapatorras a chiar no trato quase
diário de seus machos de cabrestos e cilhões tachados, guiseiras e
chocalhos de cobre soantes. Elas, ajoujadas sob as canastras
cheiinhas, bufarinhavam pelos cerros ínvios aqueles clúpeos de
gordos lombos – presigo maior, então, do pobre! – a parecerem
retraços dos esmaltes verdes de Palissy, tantas vezes versicolores
nos montes das lotas, ainda vivinhas a saltar, sempre que um
gume de sol a poalhar vivo, lhes chapava sobre as escamas da
farpela, embebida da salsugem da água, os raios irisados da sua luz,
como reflexos de toda a gama dum espectro.
Assoberba-se, igualmente, com seus
ares e tomares, fumos ostentosos de praia aristocrática,
certo que, pelos meados do século passado, aos seus banhos de fundo
e limpo mergulho com pimponices sobre as cristas farfalhantes das
ondas, e aos bailes escolhidos do «palheirão» forrado no seu
interior pelos brocados das esteiras de bunho, a fidalgaria de
muitas léguas em redor, pressurosa e folgazã, acudia a recrear-se
aos seus passatempos de alacridade e devaneios, embora muito
comedidos e sornos, entregando-se à regalice daquelas areias fulvas
e tão empachadas de um salutar iodo. Os rios Vouga e Águeda
carreavam-Ihe às barcadas ruidantes e de penachos coloridos com
bandeiras festivas nos mastros e à proa, o melhor e empavesado
gentio das terras que banhavam, e as raparigas morenas embiocadas
nos capuchos lá das bandas do Caramulo, pegureiras bonitas,
esmoleres tantas vezes, sempre a alegrar com a sua presença, mesmo
no sorumbático do seu burel, as danças-de-roda das varinas pé-leve.
Por lá se divertiram morgados
estroinas e pimpões, gentes das cortes amesendadas em altas
cavalarias, titulares e políticos de nomeada, burgueses remediados e
pobretes em ruínas. José Luciano de Castro, que veio a ser um
árbitro da vida política nacional, era o frequentador dos seus
banhos higienizados, passando nesta praia as suas férias de
estudante buliçoso, e até nela publicou o Boletim da Torreira,
gazeta de humorismos e tentativa de literatices etnográficas locais,
publicada em 1853 e impresso na tipografia do Campeão do Vouga,
em Aveiro. É pena que os nossos
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arquivos, mormente os da nossa região sempre preguiçosos em
resguardar dos estragos do tempo e de uma criminosa dispersão estas
preciosidades, não possam conter no fundo das suas estantes os cinco
números do jornalzinho que tão grande celeuma e intrigas de salão
chegou a levantar, entre as donas banhistas do tempo na praia
escolhida da sua assídua preferência.
Perdura ainda hoje, entre os mais
velhos murtoseiros, a forma da sumptuosidade das festas em que foi
recebido o duque de Loulé na sua visita à Torreira, em 1867. Este
venerando ancião era filho do também duque de Loulé, velho Mendonça,
descendente da estirpe dos senhores de Biscaia, ligados aos Vale de
Reis e ao Rolim que tinha sido condenado à morte por ser um dos que
invadiram Portugal com as hostes de Massena e a quem D. João VI, em
1821, perdoou no Brasil quando ele pessoalmente o procurou para tal
fim, conforme pormenores manuscritos num diário cuja cópia coeva o
registo do meu arquivo avaramente guarda. Havia sido o chefe do
chamado partido histórico, o qual em 1856 fora incumbido de
presidir a um governo moderador sem qualquer inspiração
setembrista, erguido perante o grupo de políticos audazes da
Regeneração em seus planos de fomento e de economia, aos quais a
mocidade ardente de Fontes dava alentos impulsivos, agitando
doutrinas renovadoras.
Acompanharam-no nessa diversão e
passeio à linda praia que toda ela se movimentava então nas
estúrdias sonorosas da romaria de S. Paio, – festa do melhor cunho e
feição folclóricos da região marinhoa – seu filho o conde de Vale
dos Reis, o ministro de Estado honorário Matias de Carvalho, o par
do reino José da Costa Pinto Basto, D. Luís da Cunha, Figueira
Freire, Francisco Ribeiro da Cunha e outras individualidades de
relevo. O trajecto fluvial fez-se, ilustrado de grande animação e
calor eufórico de vibratilidades emocionais, saído do cais da
Ribeira, em Ovar, num cortejo inicial de 14 barcos que depois
engrossou e se converteu numa flotilha embandeirada passante de 40
embarcações. Os edis camarários de Estarreja e Sever do Vouga
apareceram a fazer os seus cumprimentos com bandas de música,
assistidos pelas pessoas mais gradas das suas vilas. Os ares
atroavam-se com o estampido dos foguetes e dos vivas. A certa altura
desta grande manifestação de simpatia acorreram também em mercanteis
adornados com festões de flores os arrais da Torreira e «era digno
de ver-se a alegria que respiravam aqueles rostos crestados pelo sol
de Agosto, aquelas expansões de entusiasmo de almas singelas»..., no
dizer do cronista do Campeão das Províncias. Nunca, nos
factos históricos desta costa se viu uma coisa assim!...
Então, pelas tardes serenas, já de
luz baça dos crepúsculos bem serenos e varridos de pesadelos, que o
mar, sortílogo aglutinador, tanta vez, dos maus humores, das
tristezas mofinas e sem conto, ia mergulhando nos fundos glaucos do
insondável pélago, a empertigada gente d'algo, flamante de chanças,
estadeava-se pela praia, descalça, no costume obrigado de todos os
dias, amparando-se ao seu cacetinho de brunido marmeleiro ou de cana
da índia, no jeito daqueles janotas e faias dos tempos faustosos do
Império.
Bem depressa os pares sequiosos se
perdiam, em andanças e contradanças, por entre a neblina das
moiteiras misteriosas, passarinhando até encontrá-las, àquelas
apetecidas corcovas de afundimento abertas pelo vento mareiro, a
concitá-los a inscrever na areia alisada dos seus terraços, as
garatujas de um gorjeio de amor. Como a enflorar-lhes a cor, era lá
que se encolhiam sobre os caules veludosos ou rastejavam nas brandas
monticulações, as gotas azuis dos «cordeirinhos», pequeninas
lágrimas presumidas, dir-se-ia antes pingos do azul-claro de
Signarelli que um romântico artista, amante dos silêncios e dos
ermos nostálgicos, por aqui e por ali, deixasse cair da sua paleta
distraída, ao pintar uma das suas maravilhosas telas com a luz
divina desses entardeceres.
De passo, as donas a quem o Diabo
nada quis pedir, destacadas em vigiar ao rondó vespertino, as ondas,
pertinho, a delir murmúrios e cícios de leves sonidos embaladores
como canções de berço, toda a beleza de tons sanguíneos do sol a
deitar-se nas lantejoulas das águas, deixaram-se ficar para trás,
embevecidas de tantas maravilhas e a simular que entretidas no
arregaçar tímido das saias compridas de folhas e rendas, quando a
mareta sem a menor pudicícia e recato, vinha espreitar-lhes os
segredos e tocar com os salpicos das espumas, os artelhos finos, de
pele macia, mais alva que o luar...
O regresso fazia demorado, pelo
lusco-fusco dentro, já a entenebrescer com a volta, coisas e pessoas
numa fusão indecisa de tons, e começavam também a espreitar,
rebitados na umbela azul dos céus um nada encandescidos, os cravos
das primeiras estrelas, enquanto as ondulações mansas das vagas
dobravam sobre o lençol das areias, epenechadas as suas cristas pela
ardentia de miríades de seres que entornavam, à doida, incontáveis,
infinitos cântaros de leite luminoso.
Vinha depois a ceia, suculenta, que
os arrais das companhas, às famílias eleitas por seu trato e
méritos, haviam antes amimado com as espécies finas, abocadas às
redes dos últimos lanços. Após o prândio tradicional, as matronas
sem mester de vigiar encolhiam-se ao canto aconchegadinho da sala
ainda tépida das quenturas dos últimos raios do sol. Sentavam-se que
nem mouras acocoradas sobre esteiras a rezar o
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terço pelos seus mortos, para que Deus os aliviasse depressa
das penas dos Purgatório. Nesse comenos, as julietas, essas,
porque o folgar e divertir era atributo funcional do seu veraneio e
da sua mocidade, iam-se para o «palheirão» assim popularizado, mais
tarde substituído pela «assembleia» chique dos Sebolões. Urdiam logo
uma roda de jogo de prendas, chegadas aos toques das pernas dos
romeus, beliscões inocentes ou à surrelfa, de permeio, ais e
soluços, desejos e anseios. Erguiam-se a jeitos de melopeia
arrastada e plangente de «amentar as almas» no ermo profundo da
noite, as estrofes mirradas do Noivado do Sepulcro, em que um
sadismo em voga, romântico e piegas, tange emotivamente as cordas
dos alaúdes nacionais. Tal uma nódoa de azeite, tanto alastrou pelos
salões perfumados a incenso, da gente de prol, ouro-velho e sanefas
de secular brocado, ora até pelas alcovas pintalgadas a ocre das
marafonas. Foi uma praga como as do Egipto!...
Naqueles bons tempos passados, esta
praia aliciava, assim, sem esforço, a especial atracção dos
paroquianos das redondezas que nela vinham divertir-se a seu modo e
gozar horas bonançosas, fora das agruras do dia-a-dia trabalhoso e
cruciante. Depois, as modinhas do antigo curso foram obliteradas
como velhas usanças botas-de-elástico, por anacrónicas e até
risoteiras ridículas mesmo na opinião de muitos fabianos. E a
afamada estância perdeu os seu créditos de rejuvenescimento de
físico em ruínas, sendo desprezada pelo seu exotismo de patina,
palmar, à margem das modernidades espampanantes que outras mais
audazes e aventureiras ultrapassaram por seu mais fácil acesso,
melhores cómodos, vida mais alegre, luxuosa, com regalos de
prazeres, jogo e sensualidades..., que não nos mimos da
Madre-Natureza tão pródiga, ar aberto, paisagens de fascinação,
encantos múltiplos e seus primores de recato – complexo de
jucundidade e abonos morais, muito de atender e preferir, se este
mundo não andasse do avesso.
E porque os olhos, tocados e
encandescidos de alumbramentos e de falsas miragens, já não vêem a
nitidez dos melhores e mais elevados lances a alcançar, há que
fornecer-lhes a visão doutras perspectivas mais rúbidas, doutra
ética com aparências mais aliciatórias, ainda que seja de conturbado
regabofe para presigo do corpo, que a alma, ilaqueada pelo efémero,
já não conta...
Do livro «Murtosa – Gente Nossa» de Lopes Pereira
* * *
A ria é um enorme pólipo com os
braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. Todas as águas
do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar
encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos
quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de
lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta
constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o
homem que junta a terra movediça e a regulariza. Vem depois a raiz e
ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o
charco numa magnífica estrada, que lhe dá o estrume e o pão, o peixe
e a água da rega. Abre canais e valas. Semeia o milho na ria. Povoa
a terra alagadiça e, à custa de esforços persistentes, obriga a
areia inútil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a água,
conquistando-a, como na Gafanha, onde alastra pela ria. Aduba-a com
o fundo que lhe dá o junco, a alga e o escasso, – detritos de
pequenos peixes.
Exploram a ria os mercantéis, que
fazem o tráfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes
marítimos, os rendeiros das praias que lhe aproveitam os juncais, os
marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os moliceiros que
apanham as algas, e finalmente os pescadores da Murtosa, que são os
únicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre outras redes
usam a solheira, a rede de salto, a murgeira e a branqueira.
O homem nestes sítios é quase
anfíbio: a água é-lhe essencial à vida e a população filha da ria é
condenada a desaparecer com ela.
*
Se a ria adoece, a população adoece.
Segundo Pinho leal, em 1150, Aveiro tinha doze mil habitantes e
armava 150 navios. A barra atulha-se, a terra decai. Em 1575, com a
barra outra vez entupida, os campos tornam-se estéreis e a cidade
despovoa-se. A alma desta terra é na realidade a sua água. A ria,
como o Nilo, é quase uma divindade. Só ela gera e produz. Todos os
limos, todos os detritos vêm carregados na vazante até à planície
onde repousam.
*
A sardinha, sempre a saltar, vivinha.
Ninguém aqui vem que não fique
seduzido, e noutro país esta região seria um lugar de vilegiatura
privilegiado. É um sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio
d'água lhes chega e os encanta. É um sítio para sonhadores e para os
que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos
imprevistos. É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo; e para
os medrosos que só se arriscam num palmo
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d'água – porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito
simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o
verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida
prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou
abica-se ao areal: um foguaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a
luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miríades de estrelas. Vida
livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais
se extingue. É a ria também sítio para os que querem descobrir novas
terras à proa do seu barco e para os que amam a luz acima de todas
as coisas. Eu por mim adoro-a. É-me mais necessária que o pão. E é
esse talvez o ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema.
Na ria o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera
comunica distinção aos homens e às mulheres e até às coisas, mais
finas na claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia. A
luz aqui estremece antes de pousar...
...Aqui o drama é o da humidade. As
névoas têm na ria uma vida extraordinária: cada gota possui uma alma
distinta e irisa-se como uma bola de sabão. De forma que não só as
figuras se harmonizam com os fundos, mas a todo o momento e à minha
vista a paisagem húmida se transforma e muda de aspecto: afasta-se,
prolonga-se, não tem fim nem realidade. Ao longe árvores violetas
nascem n'água, o horizonte ainda cinzento teima em fixar-se, mas
espumas azuis já estremecem junto a reflexos verdes. Bois pastam na
água, um barco navega no interior das terras... A ria é mágica e
possui uma luz própria que a veste. Vem acolá uma vela vermelha que
é uma nota inédita neste sonho diluído em água... É este o momento
em que começa a aparecer o azul e que convém anotar. Dissolvem-se as
névoas, mas deixam o ar carregado de humidade, deixam a luz
reflectindo-se em milhares de gotas invisíveis, deixam a atmosfera
impregnada de frescura e de vida. Esta passagem para o azul faz-se
lentamente até o azul dominar de todo. Atenuam-se as neblinas e
ficam ainda farrapos suspensos, derretidos nos agueiros, agarrados à
terra e embrulhados nas ervas. Um grande lanço de água vem até mim
em pequenas ondulações azuis e por camadas sucessivas, como estas
manchas que os pintores acumulam nos quadros com a ajuda da
espátula. Junto ao barco a água reflecte um azul vivo e fresco como
nunca vi. Longe azul desmaiado, perto azul como tinta. Vejo diante
de mim a amplidão azul, num assombro. E todo este azul se põe a
estremecer nos milhões de gotas extáticas de que se compõe a
atmosfera e que se impregnam agora e ao mesmo tempo da mesma cor...
Azul, azul, azul...
*
Distingo um fundo muito roxo – o
recorte dos montes. Aqui a ria mais larga, aumenta ainda e
divide-se, de um lado até Ovar, do outro até Salreu. É além, é
além... Casinhas num reprego da encosta, onde apetece viver,
perdidas no mundo e esquecidas do mundo. Mesmo à beira de água e
reflectida na água a Murtosa aureolada de oiro: algumas casas
brancas reluzindo, algumas árvores muito verdes em contraste e um
canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o leme
estrambólico atravessado por um pau. Aconchego e sol. A fantástica
esquadrilha desdobra-se na água que estremece, menos em certos veios
que ficam lisos de propósito para reflectirem os mastros num
sarrabiobisco até ao fundo.
Agora o barco encalhou e a água está
dourada até onde a vista alcança. Deixo-me ficar, olhando para o
funda da areia. A meu lado há um verde que nenhuma paleta pode dar
um verde vivo, um verde trespassado da luz que se côa pelos
canaviais e todo se arrepia à superfície do veio, ao mexer das
quatro tábuas do barco, para enfim parar absorto no silêncio. Bóia
aqui nestas águas uma alma entontecida, humilde e tímida tão ténue
que pode desaparecer num sopro de um momento para o outro. Existe,
mas não se sabe bem que existe. É quase nada. Um fio de oiro,
silêncio, um reflexo de luz... Andem devagarinho com o barco – não
vamos nós assustá-la.
Do livro «Os Pescadores» de Raul
Brandão
*
* *
Eu nunca tinha visto a ria de
Aveiro. Daí – dirão – este meu entusiasmo. Ora a laguna, com os seus
múltiplos canais, seus campos encharcados, seus horizontes abertos,
sua exuberância de luz e seu sonho
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de distância – é bela sempre e cada vez mais, afirmam os que todos
os dias se banham no mistério da sua extensão panorâmica.
A ria de Aveiro – é uma maravilha.
Fujo a descrevê-la, porque isso não está agora no meu programa.
Faltam aos meus olhos os palácios de
mármore, as colunas de oiro, as igrejas erguidas em renda, as
margens coalhadas de sonho e arte: S. Maria degli Scalzi, S.
Marcuola, a casa dos Contarini, e a distância de oiro sobre gaze de
azul de S. Giorgio Maggiore. Mas –lembro-me de Veneza... Uma Veneza
despida, no seu estado imaculado, em plena exuberância primitiva,
onde se adivinha a vontade de Deus, de tudo ficar como ele a criou.
Maravilha contemplativa!
O canal segue até o mar, lá pr'a
baixo, nem eu sei pr'a onde. E as margens respiram humildade e
humidade; evolam-se dos pisos encharcados emanações salinas, vêem-se
fumos de casas que há um quarto de século abrigam heróis que refazem
as areias em seiva, até darem rosas e pão, frutos ,e sombra – e, ao
longe, com riscos de asas brancas de patos ou de gaivotas, esplendem
as cidades: cidades agachadas que se fizeram a esforços que nenhum
homem da Cidade é capaz de entender: cidades a que se chamam vilas,
aldeias, lugares, praias de doce título e dulcíssima vida laboriosa:
a Gafanha, mais Gafanha, S. Jacinto, a Murtosa, o Bunheiro, a
Torreira. Os fundos cenográficos são recortados em bruma que não
cabe nas paletas dos pintores: a Gralheira, o Caramulo, e
adivinha-se o Buçaco na má vontade da manhã, que acordou sombria.
É uma maravilha a ria de Aveiro!
de Norberto de Araújo
*
* *
No velho pontão da Bestida, que as
invernias todos os anos despedaçam, dir-se-ia que Portugal acaba.
Portugal e a terra na sua solidez física, nos seus costumes mais
vulgares, e até nalguns dos elementos mais primordiais da sua vida.
É outro mundo, líquido, brumoso, feito de distância azul, isolado do
continente por uma ria maravilhosa, paleta de mil cores, tão larga
que cabe nela o Tejo, nos seus dois quilómetros de água tranquila e
adormecida. Fecham-se atrás de nós, como sob o pano de uma ribalta,
as terras ribeirinhas da Murtosa, e de Bunheiro, entre pâmpanos
virentes, muito tufados, milheirais extensos que ondeiam as suas
bandeiras doiradas, pomares cerrados, onde os ramos já nos estendem
os frutos maduros, corados de sol, que fendem a casca, pejados de
sumo.
Uma fotosfera prateada envolve a ria
que vem do Furadouro, lá longe, para nascente, recortada de canais,
hérnias líquidas daquele ventre de água, extraordinariamente fecundo
que se desentranha em admiráveis espécies piscatórias que, por
vezes, como a carnuda tainha, se vêem saltar à superfície
cristalina, tão límpida que se enxerga o seu fundo doirado de areia,
manchado duma verdura submarina, o moliço, com que a dez léguas em
redor se adubam as leiras.
A visão da paisagem, na sua penumbra
sobrenatural, ascende em sonho na visão extática de lirismo. Não há
uma cor violenta, naquela paleta aquática, mas tons, sobre tons,
prateados e violetas, tão etéreos e fugitivos, que parecem pintados
numa laca japonesa, pelo pincel dum Outamarco ou dum Fujita.
de Artur PorteIa
E, conforme a hora e o cenário do
céu, essa paisagem elisiamente calma, ao mesmo tempo movimentada e
silenciosa, oferece tonalidades diversas: ora é toda em nuances de
sanguínea, com toques e relevos de oiro; ora em tons de azul,
frescos e transparentes como os das marinhas dos azulejos de Delft;
agora é o verde que predomina em gradações sucessivas, desde o
verde-negro dos pinhais ao verde-marinho das águas paradas; depois é
o alaranjado dos poentes; depois o violeta dos crespúsculos; depois
os cinzentos desbotados; os pálidos tons de pérola, as aguadas de
nanquim da noite que começa...
*
«E se há luar, se a lua cheia,
surgindo atrás da cumeada das serras longínquas, vem banhar toda
essa extensão de águas e de planícies – então os aspectos que ela
oferece têm qualquer coisa de maravilhoso, de irreal, como uma visão
criada por um sortilégio mágico. Entre o céu e a ria, a linha da
terra fronteira é apenas um longo e fino traço escuro, um delgado
filete de sombra. Os astros que cintilam no espaço
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cintilam também nas águas, como se o firmamento se desdobrasse ou
prolongasse em abismo aos nossos pés. E de leste a oeste, sob a
incidência do luar, um grande leque de prata tremeluzente abre o seu
enorme triângulo luminoso sobre a água, a que a aragem apenas dá uma
ligeira crispação. É um esplendor! Então, num grande silêncio, em
que só o monótono rumor do mar se ouve, uma pequena bateira de pesca
movida a remos, um moliceiro velejando lentamente, um mercantel
impelido à vara, atravessam, lá ao longe, essa zona iluminada, num
destaque nítido e cortante de pequenas sombras chinesas. E dir-se-ão
visões de sonho, barquinhos de fadas, tripulados por minúsculos
gnomos, negras gôndolas misteriosas, deslizando sem ruído numa
laguna de águas argentinas...»
*
Os moliceiros e os pescadores da
Murtosa são os que mais a povoam. Toda a semana, durante alguns
meses, vivem sobre essas águas, apanhando o moliço ou lançando as
redes, dormindo na proa dos seus barcos, cozinhando neles ou perto
deles, em terra, a sua frugal caldeirada.
«Ria de Aveiro» de Luís de
Magalhães
Mas a ria enche-se de asas brancas,
garças reais que coalham o azul, além sobre a barra, onde a névoa
fumega indecisa e lenta, e do outro lado, sobre Pardelhas,
Estarreja, até Ovar bolinando ao vento.
É uma verdadeira esquadra,
embandeirada em festa, porque hoje é dia de São Paio, na Torreira.
Cada barco traz a sua povoação, a sua aldeia, a sua canção, as suas
guitarras e adufes. A ria torna-se melodiosa, e sussurra, vibrante
nas suas ondas de água, finas como cabelos de mulher, que os ventos
represados percutem como uma arcada de violino. Durante muito tempo
embala-nos aquela música aquática, dolente e enlanguescedora. As
tonalidades mudam. Já não há azul. Os longes tornaram-se brumosos, e
a água oleosa, baça, não tem uma vaga, uma crispação. Dir-se-ia um
lago imobilizado por um silêncio astral. Um cinzento de agonia
envolve esta paisagem de além mundo, prostrada na morte, se o sol
não acordar antes da tarde.
Mas,sobre a Torreira, estralejam os
primeiros foguetes da festa, com os seus balões brancos que, num
jeito de pára-quedas, ficam a pairar no céu, e as canções dos
barcos, que já não se ouviam, volta a ecoar numa harmonia de alaúde,
sonambúlicas na sua tristeza de ladainha. Nem no dia de hoje o homem
deixou a faina da ria. Ainda tem tempo para ir à sua casa lacustre
trocar os farrapos curtidos de salmoura pela véstia negra de festa.
À tona d'água vogam os moliceiros, de amura baixa, velas brancas,
quadradas muito, altas sobre o mastro, a proa subida e recurvada
como o pescoço dum cisne, voltado para trás. O seu galbo esbelto, de
fina estrutura náutica, que alguns dizem herdado dos Fenícios, mas
que seria mais exacto, talvez, atribuir às embarcações dos Vikings,
é uma curva alada, quase imponderável, que não fende as águas, antes
desliza desposando as suas formas líquidas, numa subtil perfeição de
equilíbrio.
Cada um ostenta à proa, num ingénuo
painel pintado de cores álacres, numa rusticidade de ícone, a que
não falta o fundo de oiro, um rei coroado, de sumptuoso manto de
arminhos, com todos os atributos de majestade. É modelo antigo que a
tradição mantém ainda. Mas há variantes. A mais vulgar é um par de
noivos com grande legenda de graciosa malícia, que o artista assina.
Dois homens, um à vara e outro ao
moliço, este último com dois ancinhos, verdadeiras cravelhas de
guitarra que vão rapando o fundo da ria e são levantados,
alternadamente, constituem toda a sua tripulação. Há dezenas,
centenas, todos do mesmo tipo, variando, apenas, na pintura da
quilha, por vezes recortada da «falca», em largas bandas
horizontais, onde o negro é constante, orlando dum almagre que criou
ferrugem de oiro.
Mas a ria enche-se, mais e mais, de
velas brancas. Parecem as núpcias do mar, que vêm de longe, de
Aveiro, no seu labirinto de esteiros, vales e canais, aqui
alargando, em golfos de contornada parábola, além mais impetuoso e
extenso, quase sem limites terrestres, carreando peixe ou criando-o
no seu fundo rico de plâncton.
Artur Portela, O São Paio da
Torreira, a Romaria dos Pescadores |