Acesso à hierarquia superior.

N.º 10

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1970 

Egas Moniz e a Igreja Católica

Pelo Padre João Gonçalves Gaspar

A 5 de Outubro de 1910 – sabe-o qualquer jovem aluno que tenha terminado os estudos elementares da Escola Primária – proclamava-se em Portugal o Regime Republicano. Nesse dia e com esse facto, traçava-se no País uma linha marcante na nossa história: terminava a secular Monarquia e começava a incipiente República.
 

Campanha anti-religiosa

Apesar de, há vários anos, muitos políticos virem atacando a Igreja e as suas instituições, sem poupar diversas estruturas morais e tradicionais, os primeiros meses que se seguiram à revolução triunfante foram de expectativa nas altas esferas eclesiásticas. Contudo, logo na tarde da vitória da Rotunda, um grupo descontrolado de energúmenos assaltava em Lisboa o Colégio de S. Vicente de Paulo e, criminosamente, assassinava dois sacerdotes lazaristas. E o novo Regime, embora propalando-se defensor de todas as liberdades, anunciava-se, desde o princípio, como hostil à Religião e anticlerical; restava saber até onde iriam os seus extremismos – o que se conheceria pela ulterior legislação.

Prof. Dr. Egas Moniz - Clicar para ampliar.

Sucederam-se as leis e os decretos, por onde se foi antevendo a posição dos homens do Governo quanto às futuras relações com a Igreja. Põem-se em vigor as leis pombalinas e liberais, pelas quais são extintas as Ordens e as Congregações Religiosas, integrando-se os seus bens no património do Estado (8 de Outubro); é abolido o juramento com carácter religioso (18 de Outubro); suprime-se o ensino religioso nas escolas normais e primárias (22 de Outubro); extingue-se a Faculdade de Teologia na Universidade de Coimbra (23 de Outubro); manda-se que todos os dias, mesmo os dias santificados, sejam de trabalho, à excepção dos domingos (26 de Outubro); publica-se a lei do divórcio, atacando a família nos seus fundamentos (3 de Novembro); formulam-se as chamadas leis da família, em que o matrimónio passa a ser considerado como contrato puramente civil (25 de Dezembro); decreta-se o Código do Registo Civil, onde também se põem entraves à acção espiritual dos Sacerdotes (18 de Fevereiro de 1911).

Como remate da obra de oposição à Igreja, anunciava-se para breve a promulgação duma lei da Separação entre o Estado e as Igrejas, que viria definitivamente romper as relações multisseculares entre os dois poderes, mesmo sem esperar a convocação da Assembleia Constituinte. O Estado continuava, assim, a não / 43 / ser objectivo em face da população que governava, e era infiel ao mandato de que se devia sentir obrigado. Trinta anos mais tarde, o Dr. António de Oliveira Salazar diria, num outro contexto político: – «A primeira realidade que o Estado tem diante de si é a formação católica do povo português; a segunda é que a essência desta formação se traduz numa constante da sua história» (1). A isto não se atendeu nos primeiros anos da República.

Efectivamente, a 20 de Abril de 1911, foi ditatorialmente decretada pelo Governo Provisório a lei da Separação, que iria entrar em vigor a 1 de Julho. Pretendendo estrangular a Igreja e ficar-lhe com os seus bens, ela continha disposições em grande parte agressivas a tradicionais hábitos e direitos da Religião Católica; mas, por outro lado, criou uma profunda e generalizada perturbação espiritual na maioria dos portugueses, e mesmo em bom número de republicanos.

O Dr. Afonso Costa – então Ministro da Justiça que, a 24 de Abril, afirmava em Braga que o Catolicismo acabaria em Portugal em duas ou três gerações (2), já havia feito «sensacionais declarações sobre a próxima lei da Separação» na sessão magna do Grande Oriente Lusitano Unido, a 8 de Março: – «No regime de separação irá conhecendo pouco a pouco o povo que a Igreja é um grande polvo, que o há-de sugar por todas as formas, à medida que o orçamento for sendo aliviado das pensões vitalícias que, neste momento, são concedidas aos actuais serventuários da Igreja. Está admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a acção da medida será tão salutar que, em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o Catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu. Assim Portugal se distinguirá entre todos os povos latinos da Europa e da América, dando-lhes o exemplo da liberdade» (3).

Numa palavra, a actividade legislativa do Governo Provisório mostrou claramente uma preocupação laicizante e anti-religiosa.

 

Reacção católica

Entretanto, os Bispos portugueses não podiam calar-se ante os diplomas da República. Já a 24 de Dezembro de 1910 haviam assinado uma Pastoral Colectiva, divulgada dois meses mais tarde, que, não sendo um grito de revolta contra as novas Instituições – pois até prometiam obedecer aos poderes constituídos – era todavia um documento cheio de firmeza, escrito com elegância, dignidade e correcção. O Governo mandou-o apreender, proibindo a sua leitura nas igrejas, nas capelas e noutros lugares públicos, bem como a sua publicação em periódicos; os párocos desobedientes seriam detidos e processados e os jornais suprimidos. Houve vexames a Bispos e Sacerdotes por terem corajosamente cumprido em consciência os seus deveres de homens da Igreja.

Após a promulgação da referida lei da Separação, mais uma vez o Episcopado se dirigiu aos católicos portugueses, assinando e divulgando o chamado Protesto Colectivo. Aí se define aquele diploma com quatro palavras: injustiça, opressão, espoliação e ludíbrio. «A Religião Católica deixou de ser a Religião do Estado; não deixou, porém, de ser a do povo português», afirma-se nesse documento.

A Santa Sé, por sua parte, foi também tomando uma atitude reservada ante aquilo que, mês a mês, se verificava.

Era Núncio em Lisboa, desde Dezembro de 1906, Mons. Júlio Tonti, Arcebispo de Ancira. A 20 de Outubro de 1910, ao darem-se as primeiras amostras de anti-clericalismo oficial, retirou-se a caminho de Itália; ficava encarregado da Nunciatura o jovem sacerdote Mons. Bento Aloisi Masella, como representante oficioso do Vaticano, que passou a corresponder-se com a Santa Sé por intermédio do Núncio em Madrid.

Mons. Masella, que veio para Portugal em 1908 e cá se manteve até 1919, era um diplomata de boa formação, dotado duma inteligência esclarecida e duma vontade firme; soube sempre orientar e encorajar os Bispos em numerosas dificuldades, e informar fielmente a Santa Sé e dela receber directrizes para as transmitir. Nesses anos conturbados da nossa vida político-religiosa, granjeou a admiração de todo o Episcopado Português; mais tarde, cumprida a sua espinhosa missão, seria nomeado Núncio noutras nações e, por fim, Cardeal da Igreja, vindo a falecer a 30 de Setembro de 1970.

Uma vez que, pelas primeiras disposições legais, o nosso Governo se mostrava anti-religioso, Mons. Júlio Tonti julgou melhor tomar aquela atitude: o abandono das suas funções; era praticamente o corte das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a República Portuguesa.

O Papa S. Pio X, que já a 15 de Março, em carta dirigida aos Bispos, se congratulara com eles pela publicação da Pastoral Colectiva, uma vez decretada a Lei da Separação, houve por necessário divulgar uma encíclica sobre o caso português. Desta forma, a carta apostólica Jamdudum in lusitania (4), de 24 de Maio de 1911, consumava oficialmente aquele rompimento de relações, de que a República, pelo seu agir, tomara a iniciativa. Os Bispos dirigiram ao Santo Padre uma mensagem acerca dos dois documentos pontifícios, a qual muito os honra pela formal e inteira adesão à Santa Sé (5).

Em Roma, o Encarregado de Negócios de Portugal terminaria as suas funções em Setembro desse ano. / 44 /

 

Opinião de Egas Moniz

Conforme escreveu o Dr. Egas Moniz, «a separação do Estado da Igreja era uma aspiração de muitos liberais portugueses; mas não o era menos de uma grande parte dos católicos, sobretudo daqueles que, pensando pouco em interesses, aspiravam à sublimação das doutrinas cristãs. Daqui se conclui que uma lei que marcasse a diferenciação dos departamentos do Estado e da Igreja devia agradar à maior parte da população portuguesa. Bastava que fosse estabelecida em bases honradas e não houvesse o propósito de vexar fosse quem fosse. Todos se devem respeitar e, mais ainda do que os homens, se devem respeitar as crenças de cada um. Por isso, uma lei que houvesse de fazer-se em assunto de tanta monta, visto jogar com milhões de consciências portuguesas, tinha de ser ponderada e sem propósitos agressivos. Ora a Lei da Separação que foi publicada, embora fundamentalmente consignasse um princípio justo, vinha cheia de pequeninas agressões contra o clero, classe que merece ser respeitada como qualquer outra.

E foi pena que assim sucedesse – continua o insuspeito Dr. Egas Moniz – porque imediatamente o meio eclesiástico se manifestou contrário às disposições que o vexavam e a população católica do País não viu com bons olhos os exageros da lei» (6).

Entretanto, a aplicação do Código do Registo Civil, que começara a vigorar a 1 de Abril de 1911, punha obstáculos ao livre exercício do múnus pastoral dos Párocos; as cultuais, fomentadas e dirigidas pelos governantes, eram condenadas como associações cismáticas a intrometerem-se na vida da Igreja; o Clero rejeitava as pensões que se lhe ofereciam em condições humilhantes, apesar de ficar reduzido a uma vida económica incerta e deficiente, preferindo sacrificar o seu bem-estar à liberdade da sua consciência e da sua acção espiritual; arrolavam-se os bens móveis e imóveis da Igreja; perseguiam-se e desterravam-se Bispos e Sacerdotes; proibia-se o uso dos hábitos talares na via pública; praticavam-se sacrilégios com o aprazimento da Autoridade; não se permitia o ensino religioso não só nas escolas oficiais mas ainda nas particulares.

No meio de todas estas e de outras violências, nota-se também um intenso e salutar ressurgimento cristão; aparecem católicos sinceros e destemidos, prontos a defenderem os direitos da Igreja. São eles que, no próprio Parlamento, se levantam corajosamente em nome da liberdade religiosa, apesar das apóstrofes e das ameaças. Revela-se uma novidade política nas eleições de 13 de Junho de 1915: em alguns círculos são propostos deputados do partido católico – O Centro Católico; o Dr. António Augusto de Castro Meireles, mais tarde Bispo do Porto, tomava lugar no Parlamento, fazendo ouvir várias vezes a sua voz.

 

Um novo clima

A partir de 1914, começa a fazer parte do programa de certos Ministérios a necessidade de se rever a Lei da Separação – o que, quando se tenta, provoca acesas discussões entre os deputados; mas... tudo vai ficando na mesma. Tanta desorientação política e social faz com que o Dr. António José de Almeida, futuro Presidente da República, reconhecesse em Março de 1916 a tremenda realidade: – «A Pátria está em perigo» (7). Quando se arrepiaria caminho e se começaria a rever a governação pública, dentro da realidade portuguesa?...

Cedo os políticos portugueses verificaram que a interrupção das relações diplomáticas com o Vaticano constituía um erro grave a que se tornava urgente dar remédio, uma vez que a população portuguesa era essencialmente católica; e – como afirma o Dr. Egas Moniz – «a República não diminuiu esse espírito religioso; pelo contrário, avigorou-o», porque «as Religiões não se extinguem ao sabor dos estadistas» (8).

Em 1917, o Chefe de Estado, que era o Dr. Bernardino Machado, tentava o reatamento dessas relações diplomáticas; mas tais diligências efectuadas em Roma foram então infrutíferas, por falta de entendimento entre as partes, senão mesmo por insuficiência de tacto. Nessa ocasião, ante a recente espoliação dos bens da Igreja e a constante perseguição de que foram vítimas os Bispos, os Sacerdotes e os católicos, a Santa Sé apresentava bases de acordo deveras exigentes.

Mas já se haviam começado a abrir caminhos novos ao Catolicismo em Portugal; preparava-se uma Igreja liberta das peias e das prepotências do Estado, onde o Clero deixasse de ser uma das categorias de funcionários públicos à mercê dos governantes políticos. A Revolução Republicana trouxe sem dúvida horas amargas, mas – forçoso é reconhecê-lo – marca também um ponto de partida para uma tomada de consciência da Igreja em Portugal; mais uma vez, Deus escreve direito por linhas tortas: homens sem paixões partidárias pensavam com o Dr. António Lino Neto que dizia, ao escrever ao Bispo de Portalegre a 19 de Setembro de 1917:

– «Quanto a perseguições a Prelados, espero que não continuarão; e as que se fizeram recentemente aos Srs. Patriarca e Bispo do Porto redundaram em benefício do prestígio e força da Igreja em Portugal» (9).

Entretanto, em Dezembro deste ano, após uma revolução triunfante, o Dr. Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais tornou-se o Presidente da República Portuguesa. Da orientação do seu Governo fez parte, desde / 45 / logo, o uso da máxima tolerância tanto no campo político como no campo religioso. As principais disposições de excepção consignadas na Lei da Separação foram abolidas e a consciência católica era libertada de embaraços injustos. Enveredando por novo caminho no sentido de reintegrar o País nas suas tradições, o Dr. Sidónio Pais pôs termo à perseguição religiosa, tranquilizou a consciência nacional, anulou os castigos infligidos a membros do Clero, declarou sem efeito a pena de interdição de residência imposta aos ministros da Religião e aboliu várias outras prescrições vexatórias. Mas não só: prestou também justiça aos capelães militares, reconhecendo como útil e válida a assistência religiosa em campanha e alargando o seu raio de acção; assistiu oficialmente a cerimónias religiosas, com a presença dos Ministros do Governo e do Corpo Diplomático. Tantas e tão oportunas providências, tomadas num curto espaço de tempo, obtiveram-lhe as simpatias da população católica – a grande maioria da Nação – e criaram-lhe um ambiente internacional, propício ao Regime.

Pouco antes da revolução de Dezembro fundou-se também um novo partido – O Centrismo – para o qual trabalhou activamente o Dr. Egas Moniz. No programa de acção deste movimento inseria-se a liberdade dos cultos e, mantendo-se embora a separação do Estado da Igreja, concedia-se aos sacerdotes seculares as regalias de cidadãos portugueses; além disso, julgava-se necessário reatar as relações diplomáticas com a Santa Sé e celebrar uma Concordata de Separação, para pacificação dos espíritos.

Foi dentro destes princípios que o Dr. Sidónio Pais, «inteligente e tolerante como todos os homens verdadeiramente superiores» (10), procurou governar, como estadista fiel ao sentimento popular; passou como um meteoro, vítima das paixões políticas, mas «foi uma individualidade marcante» (11). Como escreveu Cunha e Costa, «aos que o acusam de não ter feito tudo, diremos simplesmente que fez o bastante para que lhe tirassem a vida» (12). Morto violentamente a 14 de Dezembro de 1918, dele afirma ainda o mesmo autor: – «O culto recatado da sua memória é maior do que o aplauso ruidoso da sua vida» (13).

 

Egas Moniz – Embaixador em Madrid

Nesta ocasião, aparece-nos na órbita dos políticos governamentais o nosso conterrâneo, Dr. António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz (14).

Escolhido pelo Dr. Sidónio Pais para Embaixador de Portugal junto da Corte Espanhola, o Dr. Egas Moniz seguiu para Madrid em princípios de Março de 1918; Afonso XIII recebeu as suas cartas credenciais a 16 desse mês e, dias depois, o novo Ministro era convidado a assistir à abertura solene das Câmaras. A Espanha reconhecia assim, embora de forma implícita, o novo Governo da República Portuguesa.

O Dr. Egas Moniz intentou logo concretizar a parte do ideário do seu partido e do Governo Sidonista, em que se consignava o reatamento das relações com a Santa Sé; é que «os políticos que têm programas a realizar devem procurar efectivá-los, sempre que se lhes proporcione ensejo» (15). Esperavam-no trabalhos e preocupações, mas alcançaria com satisfação o fim almejado; era ocasião de pôr à prova uma vontade bem vertebrada e pertinaz, que facilmente não cedia ou não quebrava ante dificuldades, mesmo as maiores, e muito menos ante oposições que se julgassem inoportunas ou sem fundamento.

Era então Núncio em Madrid Mons. Francesco Ragonesi, «alta individualidade da diplomacia do Vaticano» (16). É o próprio Dr. Egas Moniz que nos dá conta das tentativas efectuadas.

«Assim, logo que cheguei a Madrid, e feita a tournée das visitas ao Corpo Diplomático, pedi ao Sr. Arenas de Lima, Conselheiro da Legação em Madrid, para procurar o Sr. Núncio e lhe dizer, em ar de conversação, que o novo Ministro de Portugal tinha inscrito no programa do seu partido a necessidade do reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé. A diligência foi feita num dos primeiros domingos de Março, antes mesmo de apresentar as minhas credenciais ao Monarca Espanhol.

Passou-se bastante tempo. Em 15 de Maio o Sr. Núncio pediu ao Sr. Arenas de Lima que me solicitasse uma audiência.

Como se se tratasse do Decano do Corpo Diplomático, imediatamente me ofereci para ir à Nunciatura, para o que foi pedida a indicação de dia e hora.

A entrevista realizou-se no dia 16, pela tarde» (17).

 

Egas Moniz e Mons. Ragonesi

Mons. Ragonesi, que causou ao nosso Embaixador «a impressão de homem muito inteligente e com boa visão das coisas, sem intolerâncias excessivas» (18), recebeu-o com afabilidade. Comunicou-lhe que o Cardeal Vicente Vannutelli, antigo Núncio junto da Corte Portuguesa entre 1883 e 1891, tomara a iniciativa de fundar, com a vultosa soma de trezentos mil francos, seis bolsas de estudo a favor de estudantes portugueses que, destinando-se à vida eclesiástica, frequentassem cursos em Roma; por isso, dizia ter necessidade de se deslocar a Lisboa para se avistar com o Cardeal Patriarca, D. António Mendes Belo, mesmo que tivesse de ir incógnito, sujeitando-se também às condições que lhe fossem indicadas. / 46 /

No decorrer da entrevista, Mons. Ragonesi foi dizendo: – «Sua Santidade vê com muito agrado o actual Governo da República Portuguesa».

O Núncio pretendeu ainda saber qual a orientação política do País em matéria religiosa, ao que o Dr. Egas Moniz respondeu, apontando o que ultimamente já havia sido feito. O Diplomata da Santa Sé afirmou categoricamente que «à Igreja nada interessavam as formas de Governo e, pelo que respeita a Portugal, desejava apenas que se mantivesse a República tolerante que hoje temos e que, em seu entender, trará grandes vantagens para o nosso País».

Finalmente, veio a pergunta focal da audiência, lançada por Mons. Ragonesi, porque o ambiente de diálogo e de cordialidade entre os dois estava criado:

– «Que diz V. Ex.ª sobre o reatamento das relações diplomáticas da República Portuguesa com a Santa Sé? A própria Inglaterra, que é um Estado na sua maioria protestante, transigiu em ter representação diplomática junto do Vaticano. A República Portuguesa tem por certo vantagem em reatar as suas relações com Roma Papal. Esse passo reconciliaria de vez com o Regime todos os bons católicos. Consta-me que V. Ex.ª defendeu, como político português, a aproximação com o Vaticano. Em Portugal há alguma corrente nesse sentido?»

A esta questão respondeu prudentemente o Dr. Egas Moniz: – «Neste momento o político desapareceu. Perante V. Ex.ª está apenas o Delegado do Governo Português e, em seu nome, não posso fazer afirmações a tal respeito». Ainda o informou da sua maneira de ver pessoal, que não era uma opinião isolada; «mas – disse – o Governo do meu País é que tem de julgar e decidir sobre a questão.»

Por fim, para «desviar a insistência com que o Sr. Núncio procurava sondar uma opinião que eu, ao certo, não conhecia nem estava autorizado a revelar, mesmo que a conhecesse», o Dr. Egas Moniz prometeu transmitir para Lisboa, embora resumidamente, os termos e a sequência da entrevista; ao mesmo tempo iria solicitar as necessárias instruções para a atitude que devia tomar, tanto sobre este importantíssimo ponto da conferência como sobre a hipotética viagem do Núncio a Lisboa (19).

O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Espírito Santo Lima, respondeu imediatamente que Mons. Ragonesi podia deslocar-se a Portugal, quando entendesse, e não necessitava de viajar incógnito, pois era «um diplomata da mais alta categoria, recebido numa nação amiga», onde representava Bento XV, o Chefe da Igreja Católica, «cuja subidíssima autoridade moral o Governo da República não desconhece». O Ministro aconselhava finalmente o Dr. Egas Moniz a prosseguir no diálogo encetado com o Núncio, em ordem ao passível reatamento das relações. «Parece-me – dizia – que temos vantagem em ouvir e perguntar, mais do que em responder e nos pronunciarmos» (20).

 

Diálogo franco entre o Embaixador e o Núncio

Em face do bom acolhimento do Governo, o nosso Embaixador decidiu-se, pois, «a seguir com prudência, mas também com decisão, no sentido desejado» (21). E o Dr. Egas Moniz, em vez de responder à pergunta formulada pelo Núncio na anterior conferência, punha ele próprio a Mons. Ragonesi, com toda a clareza, a seguinte questão: – «Convinha ao Vaticano que as relações diplomáticas com Portugal se restabelecessem?»

Diante da pronta resposta afirmativa, o Ministro declarou também que Portugal lucraria com o seu reatamento (22).

As comunicações entre Madrid e Lisboa sucedem-se; os avisos do Governo Português ao seu Representante são sempre de prudência, «visto ter de tratar com diplomatas tão destros e experimentados como os do Vaticano» (23).

Nas audiências finais, o Dr. Egas Moniz e Mons. Francesco Ragonesi concordaram nos pontos seguintes:

1 – O Núncio deslocar-se-ia a Lisboa, quando e como desejasse, para regulamentar o assunto das bolsas Vannutelli.

2 – O Núncio também conversaria em Portugal com Mons. Bento Aloisi MaselIa – o representante oficioso do Vaticano em Lisboa – que se correspondia com a Cúria Romana por seu intermédio, mas que não conhecia pessoalmente.

3 – O Núncio iria a Lisboa afirmar ao Cardeal Patriarca e aos Bispos portugueses que a Santa Sé estimaria que os católicos se juntassem em torno da presente situação política republicana, trabalhando por melhorar o Regime e dando-lhe o apoio sincero e leal; ia-se ao ponto de assim aconselhar a própria colaboração e o próprio auxílio ao Governo constituído, que não apenas o que Leão XIII determinara aos católicos franceses: – «Aceitai a República, isto é, o poder constituído e existente entre vós; respeitai-a e sede-lhe submissos, como representando o poder vindo de Deus» (24). Mas, como dizia o Diplomata Pontifício, «a Igreja não pretende tirar do acatamento e respeito pelas instituições vigentes quaisquer vantagens para si; mais: não deseja tirá-las da recomendação que vai fazer aos Prelados portugueses para que os católicos defendam as actuais Instituições».

4 – O Núncio acedia em fazer uma declaração pública, na qual, segundo o desejo do nosso Governo, a Santa Sé informasse o País de que era sua a iniciativa do restabelecimento das relações diplomáticas. / 47 /

5 – O Núncio teria ainda uma audiência com o Presidente da República Portuguesa, a que se seguiria a distribuição à Imprensa duma nota, previamente estudada e redigida em Madrid, depois de trabalhoso diálogo, e sancionada por Lisboa (25).

 

A 23 de Junho de 1918, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, escrevendo ao Dr. Egas Moniz, congratulava-se pelo bom resultado das diligências efectuadas e informava: – «Visto a situação estar bem definida, o Sr. Núncio poderia vir desde já a Lisboa e pedir imediatamente audiência de cumprimento a Sua Ex.ª o Sr. Presidente da República, que o receberia ostensivamente com todas as marcas de deferência devidas à sua posição».

A 25, o mesmo Ministro, em novo ofício, acrescentava que o último relatório do Dr. Egas Moniz fora lido em Conselho de Ministros e que a solução tivera o máximo assentimento (26). Quando o nosso embaixador recebeu esta alegre comunicação, já Mons. Ragonesi se encontrava em Lisboa.

 

Mons. Francesco Ragonesi em Lisboa

Efectivamente, no dia 26 de Junho chegava a Lisboa Mons. Ragonesi, hospedando-se no antigo palácio da Nunciatura Apostólica, e iria rapidamente cumprir com felicidade todo o programa traçado; acompanhava-o Mons. Cicognani, Secretário da Nunciatura de Madrid. Graças aos porfiados esforços do Dr. Egas Moniz, estavam prestes a ser reatadas as relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé, depois de mais de sete anos de rompimento.

Logo a 27, o Diplomata encontrava-se com o Dr. Sidónio Pais; os jornais do dia imediato, ao darem a notícia do evento, publicavam a seguinte nota: – «O Sr. Núncio declarou ao Sr. Presidente que a Santa Sé segue com primoroso interesse os acontecimentos de Portugal e deseja ardentemente o seguimento da política de reconciliação dos espíritos, que está nos propósitos e orientação do actual Governo. Essa reconciliação será a base dum maior e mais esplêndido futuro da República. As recentes modificações feitas por este Governo à Lei da Separação marcam já um grande passo para esta pacificação» (27).

Mons. Ragonesi demorou-se em Portugal durante o mês de Julho para falar aos nossos Bispos e para tratar da regulamentação das bolsas de estudo.

 

Reatamento das Relações com a Santa Sé

Finalmente, o Diário do Governo, de 10 de Julho, inseria o Decreto n.º 4558, com data do dia antecedente, assinado pelo Presidente da República e por todos os Secretários de Estado, pelo qual se restabelecia a Legação de Portugal junto do Vaticano e se revogava toda a legislação contrária. A 13 do mesmo mês, a Santa Sé nomeava Mons. Aquiles Locatelli, Arcebispo de Tessalónica e Internúncio em Bruxelas, como Núncio Apostólico em Portugal (28); estaria em Lisboa a 16 de Abril seguinte, entregando as cartas credenciais a 26.

Na sequência dos factos, o Santo Padre Bento XV, imitando o gesto do seu predecessor Leão XIII, a 18 de Dezembro de 1919 escreveu aos Bispos portugueses: – «Alimentamos em primeiro lugar a grande esperança de que todos, sejam clérigos ou leigos, nos quais é sincero e forte o amor da Pátria, a ninguém cedam o lugar em contribuir para a paz e a concórdia dos cidadãos. E, porque a Igreja não conhece facções, pois é evidente que não deve servir partidos políticos, é próprio dela exortar os fiéis a obedecer aos que estão no poder, qualquer que seja a forma de Governo constituído. Destes depende, efectivamente, o bem comum, e este é, na verdade, conforme a vontade de Deus, a lei suprema da sociedade. (...)

Seguindo, portanto, a doutrina e o costume da Igreja, que tem relações de amizade com Governos de várias formas, e considerando que recentemente se reataram as mútuas relações com a República Portuguesa, pedimos aos católicos que se submetam com ânimo sincero à forma de Governo agora constituído e que aceitem aqueles ofícios públicos que lhes forem oferecidos com vantagem comum para a Religião e para a Pátria.

Fazendo esta exortação, (...) confiamos que o Governo Português deixará à Igreja plena liberdade e o completo uso de direitos sagrados, para que lhe seja dado exercer com a maior vantagem a sua divina missão. E será do vosso dever, Veneráveis Irmãos, persuadir o clero e os fiéis que, pondo a Igreja acima de questiúnculas e partidos, estejam unidos para totalmente lhe defender os direitos; assim contribuirão também para o incremento e a prosperidade da Pátria Portuguesa» (29).

Estas relações amistosas entre a Santa Sé e a República tomar-se-iam ainda mais estreitas com a assinatura da Concordata e do Acordo Missionário, a 7 de Maio de 1940; a Igreja seria reconhecida tal qual é, sem a menor diminuição dos direitos dos cidadãos que não lhe pertencem. Continuaria a separação dos dois poderes, embora colaborando entre si, «para a paz e maior bem da Igreja e do Estado» (30).

O Dr. Egas Moniz que, regressando de Madrid, havia chegado a Lisboa a 12 de Julho de 1918, cumprira brilhantemente o seu dever e desempenhara com escrúpulo mais esta missão, prestigiara o nome da sua Pátria e realizara uma grande tarefa a favor da Nação e um grande acto diplomático para a República. Os / 48 / católicos portugueses ficaram a dever ao antigo aluno dos Jesuítas, em S. Fiel, o assinalado serviço daquelas negociações, pois ele, pelo seu carácter firme, pela sua inteligência esclarecida, pela sua cultura extraordinária, pela sua educação esmerada e pelo seu civismo mais puro, apesar de não ser diplomata de carreira, soube atrair o bom acolhimento de Mons. Ragonesi, que nele, desde o princípio, depositou absoluta confiança (31). Até alguns dos seus próprios adversários políticos lhe prestaram justas homenagens «por tão relevante serviço prestado ao País» (32). É que ele não era um cientista ou um sábio divorciado da vida ou do mundo que o rodeava: se tomasse essa atitude, sentir-se-ia constrangido ou diminuído. Procurou, ao contrário, integrar-se no seu meio, viver a fundo os problemas humanos e ajudar a dar-lhes soluções.

O Dr. Egas Moniz, todavia, reconhecendo as qualidades do Núncio Apostólico em Madrid, deixou escrito:

– «Devo, porém, dizer, da maneira mais peremptória, que as honras desta obra diplomática se devem especialmente às notabilíssimas qualidades de Mons. Ragonesi, à sua tolerância, ao seu tacto, à sua visão dos acontecimentos» (33).

Posteriormente, decorridos cerca de vinte anos, quando a Santa Sé pensou em transferir a Nunciatura para outro edifício mais acomodado, foi ainda o mesmo Dr. Egas Moniz que, não escondendo o seu aprazimento por continuar a ser útil à Igreja, lhe vendeu o seu palácio, na Avenida de Luís Bivar.

___________________________________

NOTAS:

(1)Salazar, Discurso na Assembleia Nacional, proferido a 25 de Maio de 1940, a propósito da assinatura da Concordata e do Acordo Missionário.

(2)Afonso Costa, Discurso proferido em Braga a 24 de Abril de 1'911.

(3)O Tempo (jornal), de 26 de Março de 1911, que relata aquela sessão.

(4)Acta Apostolicae Sedis (Órgão oficial da Santa Sé), Ano III, 31 de Maio de 1911, pgs. 217-224.

(5)Voz da Verdade, n.º 36, de 7 de Setembro de 1911.

(6)Egas Moniz, UM ANO DE POLÍTICA, Lisboa, 1919; pgs. 110-111.

(7)António José de Almeida, Declaração Ministerial de 16 de Março de 1916.

(8)Egas Moniz, ob. cit., pg. 113.

(9)Mons. Jerónimo de Alcântara Guerreiro, MONS. ALOISI MASELLA E O ARCEBISPO DE ÉVORA D. AUGUSTO EDUARDO NUNES, Évora, 1968, pgs. 98-99.

(10)Cunha e Costa, A EGREJA CATHOLICA E SIDONIO PAES, Coimbra, 1921, pg. 55.

(11)Egas Moniz, ob. cit., pg. 87.

(12)Cunha e Costa, ob. cit., pg. 55.

(13) – Ib., pg. 5.

(14) – O resumo biográfico do Dr. Egas Moniz é o seguinte, conforme consta da Bibliografia Científica e Literária de Egas Moniz, Edição do Centro de Estudos Egas Moniz, 1963:
Nasceu em Avanca, do concelho de Estarreja, a 29 de Novembro de 1874; Fez a instrução primária numa escola de Pardilhó, do mesmo concelho; cursou os estudos liceais no Colégio de S. Fiel, dos Jesuítas, e, o último ano, no Liceu de Viseu; após os Preparatórios de Medicina, em Coimbra, desde 1891, matriculou-se em 1894 na Faculdade de Medicina; terminado o curso em 1899, doutorou-se em Medicina a 14 de Julho de 1902; de 1903 a 1911 foi professor da mesma Faculdade de Medicina, em Coimbra (Anatomia, Histologia e, mais tarde, Patologia Geral), sendo transferido para a Faculdade de Medicina de Lisboa em 1911, onde ocupou a cadeira de Neurologia, então criada; jubilou-se em 1944, por ter atingido o limite de idade. Tornou-se mundialmente conhecido pela descoberta da angiografia cerebral e da leucotomia pré-frontal, o que abriu novos processos no tratamento de doenças mentais; por isso, em 1949, foi-lhe merecidamente atribuído o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia. Faleceu em Lisboa a 13 de Dezembro de 1955.
Na sua actividade política foi também deputado em várias legislaturas, na vigência tanto do antigo Regime Monárquico como da República Democrática.

(Vd. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. XXXV, Aveiro, 1939, pg. 197, nota 1).

(15)Egas Moniz, ob. cit., pg. 114.

(16) – Ib., pg. 115.

(17) – Ib., pg. 115.

(18) – Ib., pg. 116.

(19) – Ib., pgs. 116-120.

(20) – Ib., pg. 121.

(21) – Ib., pg. 125.

(22) – Ib., pg. 125.

(23) – Ib., pg. 126.

(24) – Leão XIII; transcrito na Carta-Encíclica de 3 de Maio de 1892, dirigida aos católicos franceses.

(25)Egas Moniz, ob. cit., págs. 128-136.

(26) – Ib., pg. 138.

(27) – Cit. por Mons. José Augusto Ferreira, FASTOS EPISCOPAES DA IGREJA PRIMACIAL DE BRAGA – IV, Braga, 1935, pg. 435.

(28)Acta Apostolicae Sedis, cit., Ano X, 1 de Agosto de 1918, pg. 349.

(29) – Revista cit., Ano XII, 2 de Fevereiro de 1920, pgs. 32-33.

(30) – Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, de 7 de Maio de 1940, Introdução.

(31)Jornal da Tarde, de 13 de Julho de 1918.

(32)O Dia (jornal diário), de 9 de Julho de 1918.

(33)Egas Moniz, ob. cit., pg. 140.

 

páginas 42 a 48

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte