A 5 de Outubro de 1910 – sabe-o
qualquer jovem aluno que tenha terminado os estudos elementares
da Escola Primária – proclamava-se em Portugal o Regime
Republicano. Nesse dia e com esse facto, traçava-se no País uma
linha marcante na nossa história: terminava a secular Monarquia
e começava a incipiente República.
|
Campanha anti-religiosa
Apesar de, há vários anos,
muitos políticos virem atacando a Igreja e as suas instituições,
sem poupar diversas estruturas morais e tradicionais, os
primeiros meses que se seguiram à revolução triunfante foram de
expectativa nas altas esferas eclesiásticas. Contudo, logo na
tarde da vitória da Rotunda, um grupo descontrolado de
energúmenos assaltava em Lisboa o Colégio de S. Vicente de Paulo
e, criminosamente, assassinava dois sacerdotes lazaristas. E o
novo Regime, embora propalando-se defensor de todas as
liberdades, anunciava-se, desde o princípio, como hostil à
Religião e anticlerical; restava saber até onde iriam os seus
extremismos – o que se conheceria pela ulterior legislação. |
|
Sucederam-se as leis e os decretos,
por onde se foi antevendo a posição dos homens do Governo quanto às
futuras relações com a Igreja. Põem-se em vigor as leis pombalinas e
liberais, pelas quais são extintas as Ordens e as Congregações
Religiosas, integrando-se os seus bens no património do Estado (8 de
Outubro); é abolido o juramento com carácter religioso (18 de
Outubro); suprime-se o ensino religioso nas escolas normais e
primárias (22 de Outubro); extingue-se a Faculdade de Teologia na
Universidade de Coimbra (23 de Outubro); manda-se que todos os dias,
mesmo os dias santificados, sejam de trabalho, à excepção dos
domingos (26 de Outubro); publica-se a lei do divórcio, atacando a
família nos seus fundamentos (3 de Novembro); formulam-se as
chamadas leis da família, em que o matrimónio passa a ser
considerado como contrato puramente civil (25 de Dezembro);
decreta-se o Código do Registo Civil, onde também se põem entraves à
acção espiritual dos Sacerdotes (18 de Fevereiro de 1911).
Como remate da obra de oposição à
Igreja, anunciava-se para breve a promulgação duma lei da Separação
entre o Estado e as Igrejas, que viria definitivamente romper as
relações multisseculares entre os dois poderes, mesmo sem esperar a
convocação da Assembleia Constituinte. O Estado continuava, assim, a
não / 43
/ ser objectivo em face da população que governava, e
era infiel ao mandato de que se devia sentir obrigado. Trinta anos
mais tarde, o Dr. António de Oliveira Salazar diria, num outro
contexto político: – «A primeira realidade que o Estado tem diante
de si é a formação católica do povo português; a segunda é que a
essência desta formação se traduz numa constante da sua história»
(1). A isto não
se atendeu nos primeiros anos da República.
Efectivamente, a 20 de Abril de
1911, foi ditatorialmente decretada pelo Governo Provisório a lei da
Separação, que iria entrar em vigor a 1 de Julho. Pretendendo
estrangular a Igreja e ficar-lhe com os seus bens, ela continha
disposições em grande parte agressivas a tradicionais hábitos e
direitos da Religião Católica; mas, por outro lado, criou uma
profunda e generalizada perturbação espiritual na maioria dos
portugueses, e mesmo em bom número de republicanos.
O Dr. Afonso Costa – então Ministro
da Justiça que, a 24 de Abril, afirmava em Braga que o Catolicismo
acabaria em Portugal em duas ou três gerações
(2), já havia feito «sensacionais
declarações sobre a próxima lei da Separação» na sessão magna do
Grande Oriente Lusitano Unido, a 8 de Março: – «No regime de
separação irá conhecendo pouco a pouco o povo que a Igreja é um
grande polvo, que o há-de sugar por todas as formas, à medida que o
orçamento for sendo aliviado das pensões vitalícias que, neste
momento, são concedidas aos actuais serventuários da Igreja. Está
admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a acção da
medida será tão salutar que, em duas gerações, Portugal terá
eliminado completamente o Catolicismo, que foi a maior causa da
desgraçada situação em que caiu. Assim Portugal se distinguirá entre
todos os povos latinos da Europa e da América, dando-lhes o exemplo
da liberdade» (3).
Numa palavra, a actividade
legislativa do Governo Provisório mostrou claramente uma preocupação
laicizante e anti-religiosa.
Reacção católica
Entretanto, os Bispos portugueses
não podiam calar-se ante os diplomas da República. Já a 24 de
Dezembro de 1910 haviam assinado uma Pastoral Colectiva, divulgada
dois meses mais tarde, que, não sendo um grito de revolta contra as
novas Instituições – pois até prometiam obedecer aos poderes
constituídos – era todavia um documento cheio de firmeza, escrito
com elegância, dignidade e correcção. O Governo mandou-o apreender,
proibindo a sua leitura nas igrejas, nas capelas e noutros lugares
públicos, bem como a sua publicação em periódicos; os párocos
desobedientes seriam detidos e processados e os jornais suprimidos.
Houve vexames a Bispos e Sacerdotes por terem corajosamente cumprido
em consciência os seus deveres de homens da Igreja.
Após a promulgação da referida lei
da Separação, mais uma vez o Episcopado se dirigiu aos católicos
portugueses, assinando e divulgando o chamado Protesto Colectivo. Aí
se define aquele diploma com quatro palavras: injustiça, opressão,
espoliação e ludíbrio. «A Religião Católica deixou de ser a Religião
do Estado; não deixou, porém, de ser a do povo português», afirma-se
nesse documento.
A Santa Sé, por sua parte, foi
também tomando uma atitude reservada ante aquilo que, mês a mês, se
verificava.
Era Núncio em Lisboa, desde Dezembro
de 1906, Mons. Júlio Tonti, Arcebispo de Ancira. A 20 de Outubro de
1910, ao darem-se as primeiras amostras de anti-clericalismo
oficial, retirou-se a caminho de Itália; ficava encarregado da
Nunciatura o jovem sacerdote Mons. Bento Aloisi Masella, como
representante oficioso do Vaticano, que passou a corresponder-se com
a Santa Sé por intermédio do Núncio em Madrid.
Mons. Masella, que veio para
Portugal em 1908 e cá se manteve até 1919, era um diplomata de boa
formação, dotado duma inteligência esclarecida e duma vontade firme;
soube sempre orientar e encorajar os Bispos em numerosas
dificuldades, e informar fielmente a Santa Sé e dela receber
directrizes para as transmitir. Nesses anos conturbados da nossa
vida político-religiosa, granjeou a admiração de todo o Episcopado
Português; mais tarde, cumprida a sua espinhosa missão, seria
nomeado Núncio noutras nações e, por fim, Cardeal da Igreja, vindo a
falecer a 30 de Setembro de 1970.
Uma vez que, pelas primeiras
disposições legais, o nosso Governo se mostrava anti-religioso, Mons.
Júlio Tonti julgou melhor tomar aquela atitude: o abandono das suas
funções; era praticamente o corte das relações diplomáticas entre a
Santa Sé e a República Portuguesa.
O Papa S. Pio X, que já a 15 de
Março, em carta dirigida aos Bispos, se congratulara com eles pela
publicação da Pastoral Colectiva, uma vez decretada a Lei da
Separação, houve por necessário divulgar uma encíclica sobre o
caso português. Desta forma, a carta apostólica Jamdudum in
lusitania (4),
de 24 de Maio de 1911, consumava oficialmente aquele rompimento de
relações, de que a República, pelo seu agir, tomara a iniciativa. Os
Bispos dirigiram ao Santo Padre uma mensagem acerca dos dois
documentos pontifícios, a qual muito os honra pela formal e inteira
adesão à Santa Sé (5).
Em Roma, o Encarregado de Negócios
de Portugal terminaria as suas funções em Setembro desse ano.
/ 44 /
Opinião de Egas Moniz
Conforme escreveu o Dr. Egas Moniz,
«a separação do Estado da Igreja era uma aspiração de muitos
liberais portugueses; mas não o era menos de uma grande parte dos
católicos, sobretudo daqueles que, pensando pouco em interesses,
aspiravam à sublimação das doutrinas cristãs. Daqui se conclui que
uma lei que marcasse a diferenciação dos departamentos do Estado e
da Igreja devia agradar à maior parte da população portuguesa.
Bastava que fosse estabelecida em bases honradas e não houvesse o
propósito de vexar fosse quem fosse. Todos se devem respeitar e,
mais ainda do que os homens, se devem respeitar as crenças de cada
um. Por isso, uma lei que houvesse de fazer-se em assunto de tanta
monta, visto jogar com milhões de consciências portuguesas, tinha de
ser ponderada e sem propósitos agressivos. Ora a Lei da Separação
que foi publicada, embora fundamentalmente consignasse um princípio
justo, vinha cheia de pequeninas agressões contra o clero, classe
que merece ser respeitada como qualquer outra.
E foi pena que assim sucedesse –
continua o insuspeito Dr. Egas Moniz – porque imediatamente o meio
eclesiástico se manifestou contrário às disposições que o vexavam e
a população católica do País não viu com bons olhos os exageros da
lei» (6).
Entretanto, a aplicação do Código
do Registo Civil, que começara a vigorar a 1 de Abril de 1911,
punha obstáculos ao livre exercício do múnus pastoral dos Párocos;
as cultuais, fomentadas e dirigidas pelos governantes, eram
condenadas como associações cismáticas a intrometerem-se na vida da
Igreja; o Clero rejeitava as pensões que se lhe ofereciam em
condições humilhantes, apesar de ficar reduzido a uma vida económica
incerta e deficiente, preferindo sacrificar o seu bem-estar à
liberdade da sua consciência e da sua acção espiritual; arrolavam-se
os bens móveis e imóveis da Igreja; perseguiam-se e desterravam-se
Bispos e Sacerdotes; proibia-se o uso dos hábitos talares na via
pública; praticavam-se sacrilégios com o aprazimento da Autoridade;
não se permitia o ensino religioso não só nas escolas oficiais mas
ainda nas particulares.
No meio de todas estas e de outras
violências, nota-se também um intenso e salutar ressurgimento
cristão; aparecem católicos sinceros e destemidos, prontos a
defenderem os direitos da Igreja. São eles que, no próprio
Parlamento, se levantam corajosamente em nome da liberdade
religiosa, apesar das apóstrofes e das ameaças. Revela-se uma
novidade política nas eleições de 13 de Junho de 1915: em alguns
círculos são propostos deputados do partido católico – O Centro
Católico; o Dr. António Augusto de Castro Meireles, mais tarde
Bispo do Porto, tomava lugar no Parlamento, fazendo ouvir várias
vezes a sua voz.
Um novo clima
A partir de 1914, começa a fazer
parte do programa de certos Ministérios a necessidade de se rever a
Lei da Separação – o que, quando se tenta, provoca acesas
discussões entre os deputados; mas... tudo vai ficando na mesma.
Tanta desorientação política e social faz com que o Dr. António José
de Almeida, futuro Presidente da República, reconhecesse em Março de
1916 a tremenda realidade: – «A Pátria está em perigo»
(7). Quando se
arrepiaria caminho e se começaria a rever a governação pública,
dentro da realidade portuguesa?...
Cedo os políticos portugueses
verificaram que a interrupção das relações diplomáticas com o
Vaticano constituía um erro grave a que se tornava urgente dar
remédio, uma vez que a população portuguesa era essencialmente
católica; e – como afirma o Dr. Egas Moniz – «a República não
diminuiu esse espírito religioso; pelo contrário, avigorou-o»,
porque «as Religiões não se extinguem ao sabor dos estadistas»
(8).
Em 1917, o Chefe de Estado, que era
o Dr. Bernardino Machado, tentava o reatamento dessas relações
diplomáticas; mas tais diligências efectuadas em Roma foram então
infrutíferas, por falta de entendimento entre as partes, senão mesmo
por insuficiência de tacto. Nessa ocasião, ante a recente espoliação
dos bens da Igreja e a constante perseguição de que foram vítimas os
Bispos, os Sacerdotes e os católicos, a Santa Sé apresentava bases
de acordo deveras exigentes.
Mas já se haviam começado a abrir
caminhos novos ao Catolicismo em Portugal; preparava-se uma Igreja
liberta das peias e das prepotências do Estado, onde o Clero
deixasse de ser uma das categorias de funcionários públicos à mercê
dos governantes políticos. A Revolução Republicana trouxe sem dúvida
horas amargas, mas – forçoso é reconhecê-lo – marca também um ponto
de partida para uma tomada de consciência da Igreja em Portugal;
mais uma vez, Deus escreve direito por linhas tortas: homens sem
paixões partidárias pensavam com o Dr. António Lino Neto que dizia,
ao escrever ao Bispo de Portalegre a 19 de Setembro de 1917:
– «Quanto a perseguições a Prelados,
espero que não continuarão; e as que se fizeram recentemente aos
Srs. Patriarca e Bispo do Porto redundaram em benefício do prestígio
e força da Igreja em Portugal»
(9).
Entretanto, em Dezembro deste ano,
após uma revolução triunfante, o Dr. Sidónio Bernardino Cardoso da
Silva Pais tornou-se o Presidente da República Portuguesa. Da
orientação do seu Governo fez parte, desde
/ 45 /
logo, o uso da máxima tolerância tanto no campo político como no
campo religioso. As principais disposições de excepção consignadas
na Lei da Separação foram abolidas e a consciência católica
era libertada de embaraços injustos. Enveredando por novo caminho no
sentido de reintegrar o País nas suas tradições, o Dr. Sidónio Pais
pôs termo à perseguição religiosa, tranquilizou a consciência
nacional, anulou os castigos infligidos a membros do Clero, declarou
sem efeito a pena de interdição de residência imposta aos ministros
da Religião e aboliu várias outras prescrições vexatórias. Mas não
só: prestou também justiça aos capelães militares, reconhecendo como
útil e válida a assistência religiosa em campanha e alargando o seu
raio de acção; assistiu oficialmente a cerimónias religiosas, com a
presença dos Ministros do Governo e do Corpo Diplomático. Tantas e
tão oportunas providências, tomadas num curto espaço de tempo,
obtiveram-lhe as simpatias da população católica – a grande maioria
da Nação – e criaram-lhe um ambiente internacional, propício ao
Regime.
Pouco antes da revolução de Dezembro
fundou-se também um novo partido – O Centrismo – para o qual
trabalhou activamente o Dr. Egas Moniz. No programa de acção deste
movimento inseria-se a liberdade dos cultos e, mantendo-se embora a
separação do Estado da Igreja, concedia-se aos sacerdotes seculares
as regalias de cidadãos portugueses; além disso, julgava-se
necessário reatar as relações diplomáticas com a Santa Sé e celebrar
uma Concordata de Separação, para pacificação dos espíritos.
Foi dentro destes princípios que o
Dr. Sidónio Pais, «inteligente e tolerante como todos os homens
verdadeiramente superiores»
(10), procurou governar, como
estadista fiel ao sentimento popular; passou como um meteoro, vítima
das paixões políticas, mas «foi uma individualidade marcante»
(11). Como
escreveu Cunha e Costa, «aos que o acusam de não ter feito tudo,
diremos simplesmente que fez o bastante para que lhe tirassem a
vida» (12).
Morto violentamente a 14 de Dezembro de 1918, dele afirma ainda o
mesmo autor: – «O culto recatado da sua memória é maior do que o
aplauso ruidoso da sua vida»
(13).
Egas Moniz – Embaixador em Madrid
Nesta ocasião, aparece-nos na órbita
dos políticos governamentais o nosso conterrâneo, Dr. António
Caetano de Abreu Freire Egas Moniz
(14).
Escolhido pelo Dr. Sidónio Pais para
Embaixador de Portugal junto da Corte Espanhola, o Dr. Egas Moniz
seguiu para Madrid em princípios de Março de 1918; Afonso XIII
recebeu as suas cartas credenciais a 16 desse mês e, dias depois, o
novo Ministro era convidado a assistir à abertura solene das
Câmaras. A Espanha reconhecia assim, embora de forma implícita, o
novo Governo da República Portuguesa.
O Dr. Egas Moniz intentou logo
concretizar a parte do ideário do seu partido e do Governo Sidonista,
em que se consignava o reatamento das relações com a Santa Sé; é que
«os políticos que têm programas a realizar devem procurar
efectivá-los, sempre que se lhes proporcione ensejo»
(15).
Esperavam-no trabalhos e preocupações, mas alcançaria com satisfação
o fim almejado; era ocasião de pôr à prova uma vontade bem
vertebrada e pertinaz, que facilmente não cedia ou não quebrava ante
dificuldades, mesmo as maiores, e muito menos ante oposições que se
julgassem inoportunas ou sem fundamento.
Era então Núncio em Madrid Mons.
Francesco Ragonesi, «alta individualidade da diplomacia do Vaticano»
(16). É o
próprio Dr. Egas Moniz que nos dá conta das tentativas efectuadas.
«Assim, logo que cheguei a Madrid, e
feita a tournée das visitas ao Corpo Diplomático, pedi ao Sr.
Arenas de Lima, Conselheiro da Legação em Madrid, para procurar o
Sr. Núncio e lhe dizer, em ar de conversação, que o novo Ministro de
Portugal tinha inscrito no programa do seu partido a necessidade do
reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé. A diligência
foi feita num dos primeiros domingos de Março, antes mesmo de
apresentar as minhas credenciais ao Monarca Espanhol.
Passou-se bastante tempo. Em 15 de
Maio o Sr. Núncio pediu ao Sr. Arenas de Lima que me solicitasse uma
audiência.
Como se se tratasse do Decano do
Corpo Diplomático, imediatamente me ofereci para ir à Nunciatura,
para o que foi pedida a indicação de dia e hora.
A entrevista realizou-se no dia 16,
pela tarde» (17).
Egas Moniz e Mons. Ragonesi
Mons. Ragonesi, que causou ao nosso
Embaixador «a impressão de homem muito inteligente e com boa visão
das coisas, sem intolerâncias excessivas»
(18), recebeu-o com afabilidade.
Comunicou-lhe que o Cardeal Vicente Vannutelli, antigo Núncio junto
da Corte Portuguesa entre 1883 e 1891, tomara a iniciativa de
fundar, com a vultosa soma de trezentos mil francos, seis bolsas de
estudo a favor de estudantes portugueses que, destinando-se à vida
eclesiástica, frequentassem cursos em Roma; por isso, dizia ter
necessidade de se deslocar a Lisboa para se avistar com o Cardeal
Patriarca, D. António Mendes Belo, mesmo que tivesse de ir
incógnito, sujeitando-se também às condições que lhe fossem
indicadas.
/ 46 /
No decorrer da entrevista, Mons.
Ragonesi foi dizendo: – «Sua Santidade vê com muito agrado o actual
Governo da República Portuguesa».
O Núncio pretendeu ainda saber qual
a orientação política do País em matéria religiosa, ao que o Dr.
Egas Moniz respondeu, apontando o que ultimamente já havia sido
feito. O Diplomata da Santa Sé afirmou categoricamente que «à Igreja
nada interessavam as formas de Governo e, pelo que respeita a
Portugal, desejava apenas que se mantivesse a República tolerante
que hoje temos e que, em seu entender, trará grandes vantagens para
o nosso País».
Finalmente, veio a pergunta focal da
audiência, lançada por Mons. Ragonesi, porque o ambiente de diálogo
e de cordialidade entre os dois estava criado:
– «Que diz V. Ex.ª sobre o
reatamento das relações diplomáticas da República Portuguesa com a
Santa Sé? A própria Inglaterra, que é um Estado na sua maioria
protestante, transigiu em ter representação diplomática junto do
Vaticano. A República Portuguesa tem por certo vantagem em reatar as
suas relações com Roma Papal. Esse passo reconciliaria de vez com o
Regime todos os bons católicos. Consta-me que V. Ex.ª defendeu, como
político português, a aproximação com o Vaticano. Em Portugal há
alguma corrente nesse sentido?»
A esta questão respondeu
prudentemente o Dr. Egas Moniz: – «Neste momento o político
desapareceu. Perante V. Ex.ª está apenas o Delegado do Governo
Português e, em seu nome, não posso fazer afirmações a tal
respeito». Ainda o informou da sua maneira de ver pessoal, que não
era uma opinião isolada; «mas – disse – o Governo do meu País é que
tem de julgar e decidir sobre a questão.»
Por fim, para «desviar a insistência
com que o Sr. Núncio procurava sondar uma opinião que eu, ao certo,
não conhecia nem estava autorizado a revelar, mesmo que a
conhecesse», o Dr. Egas Moniz prometeu transmitir para Lisboa,
embora resumidamente, os termos e a sequência da entrevista; ao
mesmo tempo iria solicitar as necessárias instruções para a atitude
que devia tomar, tanto sobre este importantíssimo ponto da
conferência como sobre a hipotética viagem do Núncio a Lisboa
(19).
O Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Espírito Santo Lima, respondeu imediatamente que Mons.
Ragonesi podia deslocar-se a Portugal, quando entendesse, e não
necessitava de viajar incógnito, pois era «um diplomata da mais alta
categoria, recebido numa nação amiga», onde representava Bento XV, o
Chefe da Igreja Católica, «cuja subidíssima autoridade moral o
Governo da República não desconhece». O Ministro aconselhava
finalmente o Dr. Egas Moniz a prosseguir no diálogo encetado com o
Núncio, em ordem ao passível reatamento das relações. «Parece-me –
dizia – que temos vantagem em ouvir e perguntar, mais do que em
responder e nos pronunciarmos»
(20).
Diálogo franco entre o Embaixador e o Núncio
Em face do bom acolhimento do
Governo, o nosso Embaixador decidiu-se, pois, «a seguir com
prudência, mas também com decisão, no sentido desejado»
(21). E o Dr.
Egas Moniz, em vez de responder à pergunta formulada pelo Núncio na
anterior conferência, punha ele próprio a Mons. Ragonesi, com toda a
clareza, a seguinte questão: – «Convinha ao Vaticano que as relações
diplomáticas com Portugal se restabelecessem?»
Diante da pronta resposta
afirmativa, o Ministro declarou também que Portugal lucraria com o
seu reatamento (22).
As comunicações entre Madrid e
Lisboa sucedem-se; os avisos do Governo Português ao seu
Representante são sempre de prudência, «visto ter de tratar com
diplomatas tão destros e experimentados como os do Vaticano»
(23).
Nas audiências finais, o Dr. Egas
Moniz e Mons. Francesco Ragonesi concordaram nos pontos seguintes:
1 – O Núncio deslocar-se-ia a
Lisboa, quando e como desejasse, para regulamentar o assunto das
bolsas Vannutelli.
2 – O Núncio também conversaria em
Portugal com Mons. Bento Aloisi MaselIa – o representante oficioso
do Vaticano em Lisboa – que se correspondia com a Cúria Romana por
seu intermédio, mas que não conhecia pessoalmente.
3 – O Núncio iria a Lisboa afirmar
ao Cardeal Patriarca e aos Bispos portugueses que a Santa Sé
estimaria que os católicos se juntassem em torno da presente
situação política republicana, trabalhando por melhorar o Regime e
dando-lhe o apoio sincero e leal; ia-se ao ponto de assim aconselhar
a própria colaboração e o próprio auxílio ao Governo constituído,
que não apenas o que Leão XIII determinara aos católicos franceses:
– «Aceitai a República, isto é, o poder constituído e existente
entre vós; respeitai-a e sede-lhe submissos, como representando o
poder vindo de Deus»
(24). Mas, como dizia o Diplomata Pontifício, «a Igreja não
pretende tirar do acatamento e respeito pelas instituições vigentes
quaisquer vantagens para si; mais: não deseja tirá-las da
recomendação que vai fazer aos Prelados portugueses para que os
católicos defendam as actuais Instituições».
4 – O Núncio acedia em fazer uma
declaração pública, na qual, segundo o desejo do nosso Governo, a
Santa Sé informasse o País de que era sua a iniciativa do
restabelecimento das relações diplomáticas.
/ 47 /
5 – O Núncio teria ainda uma
audiência com o Presidente da República Portuguesa, a que se
seguiria a distribuição à Imprensa duma nota, previamente estudada e
redigida em Madrid, depois de trabalhoso diálogo, e sancionada por
Lisboa (25).
A 23 de Junho de 1918, o Ministro
dos Negócios Estrangeiros, escrevendo ao Dr. Egas Moniz,
congratulava-se pelo bom resultado das diligências efectuadas e
informava: – «Visto a situação estar bem definida, o Sr. Núncio
poderia vir desde já a Lisboa e pedir imediatamente audiência de
cumprimento a Sua Ex.ª o Sr. Presidente da República, que o
receberia ostensivamente com todas as marcas de deferência devidas à
sua posição».
A 25, o mesmo Ministro, em novo
ofício, acrescentava que o último relatório do Dr. Egas Moniz fora
lido em Conselho de Ministros e que a solução tivera o máximo
assentimento (26).
Quando o nosso embaixador recebeu esta alegre comunicação, já Mons.
Ragonesi se encontrava em Lisboa.
Mons. Francesco Ragonesi em Lisboa
Efectivamente, no dia 26 de Junho
chegava a Lisboa Mons. Ragonesi, hospedando-se no antigo palácio da
Nunciatura Apostólica, e iria rapidamente cumprir com felicidade
todo o programa traçado; acompanhava-o Mons. Cicognani, Secretário
da Nunciatura de Madrid. Graças aos porfiados esforços do Dr. Egas
Moniz, estavam prestes a ser reatadas as relações diplomáticas entre
Portugal e a Santa Sé, depois de mais de sete anos de rompimento.
Logo a 27, o Diplomata encontrava-se
com o Dr. Sidónio Pais; os jornais do dia imediato, ao darem a
notícia do evento, publicavam a seguinte nota: – «O Sr. Núncio
declarou ao Sr. Presidente que a Santa Sé segue com primoroso
interesse os acontecimentos de Portugal e deseja ardentemente o
seguimento da política de reconciliação dos espíritos, que está nos
propósitos e orientação do actual Governo. Essa reconciliação será a
base dum maior e mais esplêndido futuro da República. As recentes
modificações feitas por este Governo à Lei da Separação
marcam já um grande passo para esta pacificação»
(27).
Mons. Ragonesi demorou-se em
Portugal durante o mês de Julho para falar aos nossos Bispos e para
tratar da regulamentação das bolsas de estudo.
Reatamento das Relações com a Santa Sé
Finalmente, o Diário do Governo,
de 10 de Julho, inseria o Decreto n.º 4558, com data do dia
antecedente, assinado pelo Presidente da República e por todos os
Secretários de Estado, pelo qual se restabelecia a Legação de
Portugal junto do Vaticano e se revogava toda a legislação
contrária. A 13 do mesmo mês, a Santa Sé nomeava Mons. Aquiles
Locatelli, Arcebispo de Tessalónica e Internúncio em Bruxelas, como
Núncio Apostólico em Portugal
(28); estaria em Lisboa a 16 de
Abril seguinte, entregando as cartas credenciais a 26.
Na sequência dos factos, o Santo
Padre Bento XV, imitando o gesto do seu predecessor Leão XIII, a 18
de Dezembro de 1919 escreveu aos Bispos portugueses: – «Alimentamos
em primeiro lugar a grande esperança de que todos, sejam clérigos ou
leigos, nos quais é sincero e forte o amor da Pátria, a ninguém
cedam o lugar em contribuir para a paz e a concórdia dos cidadãos.
E, porque a Igreja não conhece facções, pois é evidente que não deve
servir partidos políticos, é próprio dela exortar os fiéis a
obedecer aos que estão no poder, qualquer que seja a forma de
Governo constituído. Destes depende, efectivamente, o bem comum, e
este é, na verdade, conforme a vontade de Deus, a lei suprema da
sociedade. (...)
Seguindo, portanto, a doutrina e o
costume da Igreja, que tem relações de amizade com Governos de
várias formas, e considerando que recentemente se reataram as mútuas
relações com a República Portuguesa, pedimos aos católicos que se
submetam com ânimo sincero à forma de Governo agora constituído e
que aceitem aqueles ofícios públicos que lhes forem oferecidos com
vantagem comum para a Religião e para a Pátria.
Fazendo esta exortação, (...)
confiamos que o Governo Português deixará à Igreja plena liberdade e
o completo uso de direitos sagrados, para que lhe seja dado exercer
com a maior vantagem a sua divina missão. E será do vosso dever,
Veneráveis Irmãos, persuadir o clero e os fiéis que, pondo a Igreja
acima de questiúnculas e partidos, estejam unidos para totalmente
lhe defender os direitos; assim contribuirão também para o
incremento e a prosperidade da Pátria Portuguesa»
(29).
Estas relações amistosas entre a
Santa Sé e a República tomar-se-iam ainda mais estreitas com a
assinatura da Concordata e do Acordo Missionário, a 7 de Maio de
1940; a Igreja seria reconhecida tal qual é, sem a menor diminuição
dos direitos dos cidadãos que não lhe pertencem. Continuaria a
separação dos dois poderes, embora colaborando entre si, «para a paz
e maior bem da Igreja e do Estado»
(30).
O Dr. Egas Moniz que, regressando de
Madrid, havia chegado a Lisboa a 12 de Julho de 1918, cumprira
brilhantemente o seu dever e desempenhara com escrúpulo mais esta
missão, prestigiara o nome da sua Pátria e realizara uma grande
tarefa a favor da Nação e um grande acto diplomático para a
República. Os
/ 48 / católicos portugueses ficaram a
dever ao antigo aluno dos Jesuítas, em S. Fiel, o assinalado serviço
daquelas negociações, pois ele, pelo seu carácter firme, pela sua
inteligência esclarecida, pela sua cultura extraordinária, pela sua
educação esmerada e pelo seu civismo mais puro, apesar de não ser
diplomata de carreira, soube atrair o bom acolhimento de Mons.
Ragonesi, que nele, desde o princípio, depositou absoluta confiança
(31). Até
alguns dos seus próprios adversários políticos lhe prestaram justas
homenagens «por tão relevante serviço prestado ao País»
(32). É que ele
não era um cientista ou um sábio divorciado da vida ou do mundo que
o rodeava: se tomasse essa atitude, sentir-se-ia constrangido ou
diminuído. Procurou, ao contrário, integrar-se no seu meio, viver a
fundo os problemas humanos e ajudar a dar-lhes soluções.
O Dr. Egas Moniz, todavia,
reconhecendo as qualidades do Núncio Apostólico em Madrid, deixou
escrito:
– «Devo, porém, dizer, da maneira
mais peremptória, que as honras desta obra diplomática se devem
especialmente às notabilíssimas qualidades de Mons. Ragonesi, à sua
tolerância, ao seu tacto, à sua visão dos acontecimentos»
(33).
Posteriormente, decorridos cerca de
vinte anos, quando a Santa Sé pensou em transferir a Nunciatura para
outro edifício mais acomodado, foi ainda o mesmo Dr. Egas Moniz que,
não escondendo o seu aprazimento por continuar a ser útil à Igreja,
lhe vendeu o seu palácio, na Avenida de Luís Bivar.
___________________________________
NOTAS:
(1)
– Salazar, Discurso na Assembleia Nacional, proferido a 25 de
Maio de 1940, a propósito da assinatura da Concordata e do Acordo
Missionário.
(2)
– Afonso Costa, Discurso proferido em Braga a 24 de Abril de
1'911.
(3)
– O Tempo (jornal), de 26 de Março de 1911, que relata aquela
sessão.
(4)
– Acta Apostolicae Sedis (Órgão oficial da Santa Sé), Ano III,
31 de Maio de 1911, pgs. 217-224.
(5)
– Voz da Verdade, n.º 36, de 7 de Setembro de 1911.
(6)
– Egas Moniz, UM ANO DE POLÍTICA, Lisboa, 1919; pgs. 110-111.
(7)
– António José de Almeida, Declaração Ministerial de 16 de
Março de 1916.
(8)
– Egas Moniz, ob. cit., pg. 113.
(9)
– Mons. Jerónimo de Alcântara Guerreiro, MONS. ALOISI MASELLA
E O ARCEBISPO DE ÉVORA D. AUGUSTO EDUARDO NUNES, Évora, 1968, pgs.
98-99.
(10)
– Cunha e Costa, A EGREJA CATHOLICA E SIDONIO PAES, Coimbra,
1921, pg. 55.
(11)
– Egas Moniz, ob. cit., pg. 87.
(12)
– Cunha e Costa, ob. cit., pg. 55.
(13)
– Ib., pg. 5.
(14)
– O resumo biográfico do Dr. Egas Moniz é o seguinte, conforme
consta da Bibliografia Científica e Literária de Egas Moniz,
Edição do Centro de Estudos Egas Moniz, 1963:
Nasceu em Avanca, do concelho de Estarreja, a 29 de Novembro de
1874; Fez a instrução primária numa escola de Pardilhó, do mesmo
concelho; cursou os estudos liceais no Colégio de S. Fiel, dos
Jesuítas, e, o último ano, no Liceu de Viseu; após os Preparatórios
de Medicina, em Coimbra, desde 1891, matriculou-se em 1894 na
Faculdade de Medicina; terminado o curso em 1899, doutorou-se em
Medicina a 14 de Julho de 1902; de 1903 a 1911 foi professor da
mesma Faculdade de Medicina, em Coimbra (Anatomia, Histologia e,
mais tarde, Patologia Geral), sendo transferido para a Faculdade de
Medicina de Lisboa em 1911, onde ocupou a cadeira de Neurologia,
então criada; jubilou-se em 1944, por ter atingido o limite de
idade. Tornou-se mundialmente conhecido pela descoberta da
angiografia cerebral e da leucotomia pré-frontal, o que abriu novos
processos no tratamento de doenças mentais; por isso, em 1949,
foi-lhe merecidamente atribuído o Prémio Nobel de Medicina e
Fisiologia. Faleceu em Lisboa a 13 de Dezembro de 1955.
Na sua actividade política foi também deputado em várias
legislaturas, na vigência tanto do antigo Regime Monárquico como da
República Democrática.
(Vd. Arquivo do Distrito de
Aveiro, Vol. XXXV, Aveiro, 1939, pg. 197, nota 1).
(15)
– Egas Moniz, ob. cit., pg. 114.
(16)
– Ib., pg. 115.
(17)
– Ib., pg. 115.
(18)
– Ib., pg. 116.
(19)
– Ib., pgs. 116-120.
(20)
– Ib., pg. 121.
(21)
– Ib., pg. 125.
(22)
– Ib., pg. 125.
(23)
– Ib., pg. 126.
(24)
– Leão XIII; transcrito na Carta-Encíclica de 3 de Maio de 1892,
dirigida aos católicos franceses.
(25)
– Egas Moniz, ob. cit., págs. 128-136.
(26)
– Ib., pg. 138.
(27)
– Cit. por Mons. José Augusto Ferreira, FASTOS EPISCOPAES DA
IGREJA PRIMACIAL DE BRAGA – IV, Braga, 1935, pg. 435.
(28)
– Acta Apostolicae Sedis, cit., Ano X, 1 de Agosto de 1918,
pg. 349.
(29)
– Revista cit., Ano XII, 2 de Fevereiro de 1920, pgs. 32-33.
(30)
– Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, de 7 de Maio
de 1940, Introdução.
(31)
– Jornal da Tarde, de 13 de Julho de 1918.
(32)
– O Dia (jornal diário), de 9 de Julho de 1918.
(33)
– Egas Moniz, ob. cit., pg. 140. |