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N.º 10

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1970 

O Museu Marítimo e Regional de Ílhavo

Pelo Director do Museu Dr. Frederico de Moura

O «Homem do Leme» - Escultura de Américo Gomes. Clicar para ampliar.

Em 6 de Agosto de 1933, o Dr. António Gomes da Rocha Madail lia aos seus conterrâneos, nos Paços do Concelho de Ílhavo, um notável relatório em que traçava o esqueleto do que viria a ser o museu da sua terra, dando, assim, concretização ao sonho de um grupo de impenitentes bairristas, à frente do qual se encontrava Américo Teles, que era o elemento aglutinante de todas as boas vontades e que, ainda hoje, é o coração pulsátil de uma obra que, em grande medida, a ele se deve.

Trata-se de um trabalho meticulosamente estruturado e culturalmente fundamentado e que continua a servir de vertebração sistemática à instituição e de que veio a ser publicado, sob a designação de «Etnografia e História», uma exígua edição, hoje, deploravelmente esgotada, dado que foi apenas de 300 exemplares.

O «Homem do Leme» – Escultura de Américo Gomes

Nesse trabalho inicial eram consideradas, objectivamente, todas as possibilidades que Ílhavo tinha de concretizar o seu Museu sem que, nem ao de leve, a erudição e a cultura do seu autor o deixassem resvalar para entusiasmos fáceis, que são o caminho que conduz à utopia. A propósito desse modelar trabalho, o Prof. Mendes Correia disse, com inteira justiça, que «não se trata de um plano ambicioso, desordenado ou com os exclusivismos que são o defeito de muitos especialistas. Antes pelo contrário, ao mesmo tempo que se confina, modestamente – mas seguramente – no terreno das possibilidades reais da sua Terra, – estabelece, metodicamente, os tópicos de uma ampla messe de documentos e materiais que definem a região e a gente, os caracteres locais, as tradições, as actividades dominantes, desde a Geologia e a Geografia, à História, à Arte, à vida espiritual, desde o Mar e desde a Ria – teatro da labuta e dos sonhos de tantos ilhavenses – à terra, à faina mercantil e agrícola».

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Sumariamente, pode-se enunciar assim o plano que então foi estabelecido:

1.º) Como elemento basilar uma secção de Arquivo que haveria de recolher o mais possível de documentação gráfica referente aos aspectos geológico, topográfico, hidrográfico e climático, enriquecido com boas fotografias, gravuras e outras espécies de documentação; / 24 /

2.º) Pesca – Ria, litoral e Alto, que recolheria o mais possível de redes, anzóis, agulhas e respectivos muros, canastras, oleados, macolas, foquins, etc.

3.º) Navegação – Com o maior acervo possível de barco, actuais e históricos, quer de transporte, quer de recreio, quer à vela, quer a remos, quer a motor, com particular interesse pelas embarcações específicas da Ria de Aveiro;

4.º) Sala de Fauna e Flora marítimas;

5.º) Vida agrícola, com particular atenção para a especificidade da lavoura da região, designadamente quanto ao chão de areia e à adubação à custa dos moliços;

6.º) Indústrias locais, com particular atenção para a salicultura, a construção naval e a cerâmica, muito especialmente o que diz respeito às porcelanas da Vista-Alegre;

7.º) Artesanato (olaria, tecelagem, vestuário regional, etc.);

8.º) Recordações históricas da terra;

9.º) Artistas locais;

10.º) Obras de arte, embora de autores estranhos à terra mas que tenham qualquer relação com o meio ou documentem paisagens, usos e costumes.

 Galera de Guerra do século XVIII – Precioso exemplar em marfim. Clicar para ampliar.
Galera de Guerra do século XVIII – Precioso exemplar em marfim.

E sobretudo, já se aventava, talvez ainda no campo das hipóteses possíveis, a tentação de uma etnografia comparativa que dilataria as colecções para fora de um âmbito puramente local, possibilitando estudos de genética etnográfica.

Por fim, uma Biblioteca completaria o plano de aspirações então formulado.

Apontou-se, resumidamente, o projecto, dada a impossibilidade de, num trabalho deste género, nos podermos deter sobre a argumentação robusta com que Rocha Madail fundamentava as suas aspirações e a sua sistematização.

A concretização das aspirações levou ainda muito tempo e acarretou um trabalho árduo e teimoso de recolha, de selecção e de exposição museológica restringida e perturbada pela exiguidade do edifício que foi adaptado a uma função para a qual não tinha sido construído. Com o tempo, com o aumento do recheio e com a degradação que a casa foi sofrendo, mercê das intempéries e da velhice, que não mereceu qualquer socorro de restauro, as coisas complicaram-se de tal forma que a exposição museológica de hoje enferma de defeitos a que nenhuma ortopedia pode dar solução.

Na verdade, os objectos expostos amontoam-se de modo a não deixar os imprescindíveis espaços vazios, para que as peças possam ser convenientemente apreciadas e a circulação se possa fazer em condições aceitáveis. Por outro lado, este estado de coisas, inibe, totalmente, a direcção do Museu de trazer à luz do dia uma grande quantidade de objectos merecedores de exibição e que jazem inumados em arrecadações de empréstimo, à espera da hora em que a construção de um edifício próprio, que se impõe, venha possibilitar um arranjo museológico que, devendo ser selectivo, permita tirar das colecções o máximo que elas / 25 / comportam em documentação científica, em função pedagógica e em valor estético.

Reconstituição de uma xávega. Clicar para ampliar.
Reconstituição de uma xávega.

Sendo, como é, um Museu essencialmente de etnografia marítima, é sob esse aspecto que tem de ser encarado. E pode-se, sem excessos deformantes de bairrismo, dizer que sob esse ponto de vista o seu recheio é notável.

Se os argumentos de autoridade podem valer alguma coisa ao menos como testemunhos qualificados não me é difícil apoiar o meu juízo de valor sobre opiniões de conhecedores do assunto, pondo à cabeça o parecer do Prof. Dr. Jorge Dias, uma das maiores competências em assuntos de Etnologia e que se exprime nestes termos:

«Este Museu importantíssimo deve-se ao seu director e fundador (Rocha Madail) e a um grupo de ilustres ilhavenses que reuniram uma preciosa colecção de miniaturas de embarcações e barcos da Ria e do Mar, aprestos, vários tipos de redes, vestuário popular, ex-votos e louças regionais. É um Museu Etnográfico regional valiosíssimo, muito digno de ser visitado e que muito honra esta pequena e simpática terra».

E acentua, como não podia deixar de ser, que «Pena é que a falta de instalações adequadas não permita dar-lhe o desenvolvimento que era de esperar viesse a conseguir pelo que vemos realizado, etc., etc.».

Jean Meirat, o conhecido nautógrafo francês, refere-se assim ao Museu de Ílhavo:

Utensílios de uso nas Xávegas. Clicar para ampliar.

«Aux amis des Musées de la Marine qui vont visiter le Portugal nous croyons devoir signaler la petite ville d'lIhavo, sur Ia Côte, à 5 km au sud d'Aveiro, pour I'intérêt que présente son musée municipal».

Por sua vez, D. Sebastião Pessanha, outra autoridade em assuntos de etnografia faz, entre outras, as seguintes referências:

«Este pequeno, mas adorável Museu de Ílhavo, só poderia ser uma realidade com uma feição nitidamente etnográfica, pobre todo o concelho de outros valores afins, e a própria realização de tão feliz iniciativa se encarregou de demonstrar que foi acertado o caminho seguido, muito havendo, ainda, neste campo, para arrecadar e pôr a bom recato.»

Utensílios de uso nas Xávegas.

E acentua: «Sem instalação condigna e adequada, como sucede com a maioria dos nossos museus, é, porém, um modelo de arrumação metódica e de bom gosto, que muito contribuem para a valorização do seu já valioso recheio.»

Poderiam multiplicar-se os testemunhos, alguns de grande valia, como os de Jaime Cortesão, Artur de Magalhães Basto, Aarão de Lacerda, Alfredo de Magalhães, etc., etc., se não fosse, apenas, a título exemplificativo que se transcreveram para aqui algumas opiniões.

Impossível enunciar nesta sumária memória mesmo o essencial dos documentos etnográficos recolhidos, mas, como simples amostra, diremos que na sua secção marítima, desde a canoa ao dongo africano, desde o / 26 / chaveco argelino ao palhabote, desde o pangaio da índia ao «kayak» esquimó, desde a Caravela e a Nau dos Descobrimentos ao paquete dos nossos dias, a colecção reúne tal profusão de modelos (muitos, rigorosamente construídos em escala) que dificilmente encontraremos outra que emparceire com ela.

Notável também a colecção de agulhas de marear e um rico mostruário de poleame que tem 42 peças: notável da mesma forma a colecção de trabalhos de marinheiro em fio que reúne 153 espécies.

Os barcos da nossa ria estão, como é natural, completamente documentados, e lá se encontram a bateira mercantil, o moliceiro (o das Gafanhas e o Mirão), o barco saleiro, a bateira labrega, a ílhava, a caçadeira, senda de lamentar que a precariedade das instalações não tenha permitido recolher exemplares autênticos, o que se fará quando as futuras instalações em edifício próprio o permitirem.

Redes e apetrechos de pesca estão também completamente representados, bem como uma interessante miniatura da instalação de uma Xávega com o seu Palheiro, o Barco de Mar, e o carro de bois de rodas apropriadas para areia e de tudo aquilo que constitui a utensilagem empregada naquela actividade.

Importantíssima a documentação que diz respeito à Salicultura com uma miniatura, em escala, de uma marinha de sal e exemplares autênticos das alfaias onde estão recolhidas as almanjarras, o anafador, o basculho, a trangueira, o círcio, a moeira, o pajão, o pé de pou, o ugalho, o rapão, e onde nem sequer falta o sal, o sal de espuma, a ândua, o torrão, etc.

Documentados, também se encontram com modelos, rigorosamente construídos em escala, a «Seca do Bacalhau» com seus armazéns e utensílios e uma xávega com seu barco em crescente cuja misteriosa origem talvez possa ir catar-se no petroglifo de «Haggeby» na costa da Suécia, com seu carro de bois de rodas de largo rasto para rodarem sobre a duna, o Palheiro e todos os aprestos de uma actividade popular que ameaça desaparecer definitivamente se o turismo não a vier conservar ou a criar, para exemplo, um sucedâneo deturpado para turista ver.

O túmulo do Bispo, de Claude Laprade, na Capela da Vista Alegre. Clicar para ampliar.

O túmulo do Bispo, de Claude Laprade, na Capela da Vista Alegre.

Seria fastidioso nesta mera notícia espevitadora estar a fazer enumerações exaustivas que, futuramente, terão o seu lugar no catálogo quando a disposição, tanto quanto possível definitiva, da exposição museológica permitir fazer o roteiro do Museu ao mesmo tempo da catalogação.

Entretanto não poderá deixar de se chamar a atenção do leitor para a já preciosa colecção de porcelanas, vidros e meios cristais da Vista-Alegre que se amontoam (é o termo), na exiguidade da sala de exposição e na insuficiência das vitrinas que a contêm. Do mesmo modo é de realçar a escultura e a pintura que o Museu possui e que, apesar de modesta, tem já motivos reais de interesse e, sobretudo, de corroboração do núcleo etnográfico que constitui a medula de toda a instituição. Na verdade, a maior parte das obras plásticas que enriquecem o museu estão ligadas à parte paisagística da região e às actividades piscatórias, marítimas, não apenas regionais, mas de sentido muito mais lato ou a razões de ordem iconográfica / 27 / em relação com ilhavenses que se tenham notabilizado.

A título meramente exemplificativo interessa referir que se encontram, entre muitas outras, obras dos seguintes artistas: Alberto de Sousa, Alfredo Morais, António Vitorino, Cândido Teles, Cândido Craveiro, Rei D. Carlos, Fausto Gonçalves, Francisco José de Resende, Fausto Sampaio, João Carlos, Manuel Tavares, Martins Barata, Sousa Lopes, Tomazzini, em pintura e desenho, e Abel Salazar, Américo Gomes (a escultura «O Homem do Leme», documentada em fotogravura nesta Revista) Euclides Vaz, Henrique Moreira, Sousa Caldas, Raul Xavier, etc., sem falar de outras menos conhecidas mas que, por razões ligadas à especificidade das obras, mereceram representação.

 Par de preciosas jarras pintadas por Victor François Chartier Rousseau. Clicarm para ampliar.
Par de preciosas jarras pintadas por Victor François Chartier Rousseau.

Claro que o Museu de Ílhavo quer ser – e é, realmente e nuclearmente – um museu de etnografia marítima; e é nesse sentido que a sua função tem maior interesse para o visitante e para o estudioso que lá encontrará excelente material para gastar tempo e actividade com real proveito. Mas foram cuidadosamente aproveitados dentro das possibilidades todos os elementos corroborantes, quer importados da actividade artística, quer do elemento natural (fauna e flora, por exemplo, onde são notáveis as colecções de algas). Por outro lado, não podia deixar de se interessar por variadas manifestações de artesanato regional (olaria, tecelagem, trajes, etc.) e por uma indústria de tanta expressão artística como a porcelana da Vista-Alegre que, no concelho, há perto de cento e cinquenta anos, tem enobrecido o vidro e o caulino com os primores de um apurado fabrico e com o virtuosismo dos seus artífices, pintores e escultores.

E não se estranhe que um Museu que se chama "Marítimo e Regional» não tenha esquecido aquilo / 28 / que recorda os seus homens notáveis e as peças de valor artístico que, embora de origens dispersas, foram recolhidas dentro do concelho e com ele tenham relação.

Imperioso é que uma obra, tão amorosamente concebida e realizada, e tão sistematicamente organizada, encontre apoio para a concretização da sua aspiração máxima – um edifício capaz onde possa recolher e expor (sobretudo expor) para um destino pedagogicamente fecundo o que tanto custou a recolher e tantos anos de estudo sério gastou ao seu sonhador e ao seu concretizador.

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O alçado do futuro Museu de Ílhavo.

Estão dados os passos iniciais já visíveis no terreno onde virá a ser implantado, na aprovação, pelas entidades superiores, do projecto do edifício e, até, na existência de uma quantia que, bem medida, deve orçar pelo milheiro de contos.

Esperamos todos – e confiadamente – que, num futuro próximo, a mão de dar de entidades e instituições venha em socorro de uma obra que não merece a condenação do armazenamento em que neste momento se encontra e que tão expressivamente tem sido lamentado pelos conhecedores do assunto que a têm visitado com visível e expresso interesse.

 

páginas 23 a 28

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