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N.º 10

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1970 

D. Manuel Trindade Salgueiro

Por D. Manuel de Almeida Trindade

Estou a vê-lo. Alto, franzino, quase transparente. Tenho nos ouvidos o timbre da sua voz, a que o gesto nervoso e amplo mais vivacidade emprestava. Parece-me sentir ainda a cadência dos seus passos, que o faziam adivinhar ao longe. A frase de Pascal, que ele tantas vezes citou na vida: «I'homme c'est un roseau...» o homem é uma cana, mas uma cana que pensa, quase que se lhe poderia aplicar à letra. A encimar aquele corpo débil, que uma aragem faria vergar, havia uma cabeça – uma bela e inconfundível cabeça. Ela era o espelho da sua personalidade: testa ampla, emoldurada por madeixas de cabelos, que o tempo embranquecera; olhos fundos, que tanto eram capazes de um olhar de enternecimento e doçura, como de um brilho de indignação ou da mística fixidez de alguém que contempla o Absoluto. Face cavada de sulcos profundos, cuja mobilidade permitia o gesto do rosto, a completar aquele com que todo o seu ser físico comentava a palavra, que lhe saía dos lábios.

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D. Manuel Trindade Salgueiro foi um homem de Ílhavo. Dizer que foi um homem de Ílhavo é dizer que foi um homem que trazia o mar no coração e nas veias. Se se encostasse o ouvido ao seu peito, talvez se ouvisse dentro dele, como acontece aos búzios, o murmúrio das ondas.

Os homens de Ílhavo têm a vocação do Oceano. A sua terra é o mar. Ali vivem, ali trabalham e ali morrem também. Mais do que o lavrador, o seu destino está pendente do incerto e do imprevisto. Quando saem para o mar, acompanha-os sempre a dúvida do regresso. Talvez esteja aí a razão por que são tão profundamente religiosos. O Senhor dos Navegantes podia ali ser invocado antes mesmo de Ílhavo ser terra cristã. Junto dos altares da igreja paroquial há sempre luzes acesas em sinal de prece pelos que andam no mar, e as paredes da igreja e das capelas cobrir-se-iam facilmente de ex-votos de promessas feitas por homens em perigo, ou pelas mulheres e filhas deles que ficaram em terra à espera de eles voltarem.

Nem sempre as preces são atendidas. Há lâmpadas que parecem arder inutilmente. Há orações que se assemelham às pérolas perdidas no fundo dos Oceanos e parece não servirem a ninguém. Esse é um mistério cuja solução se encontra escondida no coração de Deus. As almas simples aceitam-no com resignação. / 22 / A fé dá-lhes a resposta antecipada daquilo que não conseguem por ora compreender.

D. Manuel Trindade Salgueiro era filho de um homem do mar – de um homem que perdeu a vida no mar. Nos cemitérios das outras terras, pelas lápides sepulcrais pode refazer-se a história das gerações. Os filhos podem ajoelhar-se junto dos jazigos dos pais: o pó das sepulturas é feito da carne dos seus maiores. Em terra de pescadores, porém, o cemitério dos homens é, muitas vezes, o mar.

Um homem do mar, que perdeu o pai no mar, sente no marulhar das ondas o que os outros descobrem na brancura das campas ou na silhueta esguia e recolhida dos ciprestes. Talvez esteja nisso a razão por que D. Manuel Trindade Salgueiro gostava tanto do mar. Quando voltava a Ílhavo, o seu passeio predilecto era até junto da amurada da Barra, em frente do Oceano, por onde todos os dias entram e saem os barcos que andam na faina da pesca.

O homem de Ílhavo tem um modo de ser especial. Senhor absoluto e plenamente à vontade dentro do barco, sente-se estranho em terra. A terra é o domínio da mulher. É ela que governa o dinheiro, que matricula os filhos na escola, que trata do baptizado ou dos papéis do casamento. Em terra o homem sente um complexo de inferioridade, ou, quem sabe, de superioridade, como se valessem pouco as coisas da terra, comparadas com aquelas, mais importantes, que ele vive em cima das ondas.

Tenho pensado no que teria sido aquela criança, órfã de pai desde os mais tenros anos, se, em vez do pai, lhe tivesse faltado a mãe. Em Ílhavo esta circunstância reveste um significado especial.

D. Manuel Trindade Salgueiro foi um modelo de homem, de intelectual, de sacerdote e de bispo.

Homem dotado de qualidades invulgares de carácter, de inteligência e de sensibilidade, acordava facilmente nos homens com os quais contactava, mesmo que não comungassem do fervor da sua fé religiosa, a sintonia do coração.

Nítida vocação de intelectual, foi um contemplativo da verdade, que ele procurou repartir com os outros, no magistério da palavra e da pena, no seminário, na cátedra universitária e no púlpito da sua catedral.

Sacerdote e bispo, dominava-o a paixão de levar os homens a Deus. Em papel, que traz a sua inspiração, escreveu ele esta palavra de S. Francisco de Sales: Senhor, que eu aproxime de Vós todos aqueles que se aproximam de mim.

Um homem de tal robustez espiritual a morte não o vence. As suas virtudes e o seu talento falam dele para além da morte.

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Nota - Relativamente a D. Manuel Trindade Salgueiro, ver as fotografias do túmulo no Claustro da Sé de Évora, obtidas por Manuel Bóia em 2008.
 

páginas 21 a 23

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